Edição 337 | 09 Agosto 2010

O diálogo do pensamento cristão com o mundo

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Graziela Wolfart

 

IHU On-Line - Como a missão da Companhia de Jesus e o trabalho dos CIAS no sentido de promover a justiça social se relacionam com a forma como a economia mundial está sendo conduzida? Não há uma contradição entre o capitalismo (na forma como o conhecemos) e a promoção da justiça social?

Antonio Abreu - As nossas diversas ferramentas combinam diálogo e crítica. Tanto o diálogo quanto a crítica se têm que munir com a reflexão e conhecimento da realidade, do processo histórico, e ser iluminados pelo que o seguimento de Jesus Cristo nos revela sobre o mundo e a nova humanidade que Ele instaura. A fé, como tal, não indica os rumos concretos que a organização do “outro mundo possível” deve tomar. Podemos supor fundadamente que estes rumos serão diversos, matizados, conforme as realidades históricas, geográficas, étnicas. Mas certamente uma forma de gestão econômica que privilegia o lucro como fim e a hegemonia do capital financeiro sobre o atendimento às necessidades humanas na esfera real da produção, liminarmente não corresponde ao que desejamos como ambiente para a igualdade, liberdade e fraternidade. O desafio é como descobrir passos, viáveis e seguros, que permitam alternativas eficazes e realistas na linha do que desejamos; ao mesmo tempo em que gerem bens e serviços e moldem, de forma nova, as relações entre as pessoas e grupos. Intuo que mais do que a análise crítica dos mecanismos de opressão - sem a deixar de lado - na missão dos CIAS, deve crescer a animação refletida de estruturas e métodos realistas, eficientes, capazes de se manter e se reproduzir para gerar o novo; que nos tornemos – sem deixar a penosa tarefa teórica – canteiros de trocas de experiência e de avaliação delas. Na crítica que deve ser feita ao capitalismo temos de nos acautelar com o vírus fariseu (ou maniqueu?) na tradição católica, de descobrir o “intrinsecamente mau” no Outro – do Islã à Reforma, do socialismo marxista ao capitalismo financeirizado. O “vírus”, entre outras coisas, dispensa argumentos objetivos e racionais e o diálogo franco, mesmo com os companheiros e aliados; divergências na compreensão dos mecanismos concretos da realidade se reduzem a um torneio de condenações adjetivosas ao “mal-em-si”; a lucidez não conta ponto. Tal postura, em geral, se associa com arrogância e etnocentrismo e é o contrário de semente do mundo novo.

IHU On-Line - Como compreender a promoção da justiça social considerando que as instituições de ensino jesuíticas são, em sua maioria, pagas?

Antonio Abreu - Pois é, excelente pergunta. O P. Luis da Grã, segundo provincial jesuíta do Brasil, é exemplo de resposta radical. Nas congregações provinciais do século XVI ele e Nóbrega  - fraternalmente movidos pelo mesmo Espírito – se enfrentam a respeito. Da Grã julgava que no Brasil a Companhia não devia ter escolas para filhos dos colonos. (Mas assim, não teria sido expulsa mais cedo?). Da Grã raciocinava assim:
- ou os colégios são pagos: priorizamos a educação das famílias que podem pagar;
- ou somos subsidiados por El-Rei em Lisboa: dependemos dos provedores da fazenda real no Brasil, de seus interesses e amizades;
- ou El-Rei nos concede terras para “fundar” os colégios: vamos ter de administrá-las e ter escravos para operá-las.
Nóbrega acreditava que o bem que se podia fazer nos colégios compensava os riscos e problemas da solução a se encontrar. Para ele, era decisivo que nós, jesuítas, vivêssemos os Exercícios, tivéssemos coração (pessoal e comunitário) de pobre. No século XVIII, às vésperas da supressão , o Colégio do Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, tinha a fazenda - primorosamente administrada - da Santíssima Cruz do Senhor Jesus, hoje o subúrbio de Santa Cruz. Graças ao trabalho dos negros em Santa Cruz, podia estudar de graça no Morro do Castelo o menino pobre, talentoso e esforçado, filho do padeiro – português. A contradição não é fácil de se administrar. A experiência da vida religiosa sugere (com todo respeito e carinho que Nóbrega merece), que não é tão simples ter – pessoal e comunitariamente – coração de pobre, dispondo de meios ricos de trabalho e convivendo com o discreto charme da gente “de bem”.

IHU On-Line - Como o senhor caracteriza o contexto econômico e social mundial da época da criação dos CIAS, que justificam seu surgimento? O que mais mudou de lá para cá?

Antonio Abreu - Os anos do surgimento dos CIAS são de reconstrução da Europa e de independências no Terceiro Mundo. A renovação bíblica, patrística e litúrgica, que vai desabrochar e se generalizar no Vaticano II , exatamente por sua eclesiologia renovada, começa a germinar em nova postura da Igreja frente ao mundo. O sucesso da ajuda internacional na reconstrução e a “descoberta” (pelos cristãos de vanguarda) das desigualdades existentes no mundo suscitam a meta de se ajudarem os povos “atrasados” a superarem o “subdesenvolvimento”. A imagem ainda é a de que estes países estão para aqueles industrializados, como o poldro para o cavalo, num estágio “anterior” da evolução comum. Décadas mais tarde fica claro que a relação é mais como a do jumento para o cavalo: espécie parecida, mas outra. Não deixa de existir também em muitas cabeças eclesiásticas o desejo de uma resposta positiva ao avanço do comunismo, que se expande não só pelas armas russas. Pessoalmente, tenho uma experiência traumática com um superior da Companhia – “anticomunista positivo” animado e transparente - de sua insensibilidade (bem intencionada) para com a diversidade de nossos povos e a necessidade de reflexão autônoma a respeito de nossas realidades. O P. Geral Janssens  havia enviado um visitador para animar o trabalho social nas províncias da América Latina. Foi avisado que ele entrevistaria jovens jesuítas voluntários para o trabalho social. Eu, noviço, sonhava com realizar a paixão de meu pai pela dignidade humana, iluminado pela fé de minha mãe no amor de Deus. Conversava com um companheiro, paulistano, advogado e ex-jucista (que depois deixou a Companhia), sobre um serviço novo na PUC-Rio ou na FEI , para formar cristãos a partir da fé para a ação social e política. Então fui alegrinho e esperançoso falar com o visitador. Cortou-me rente: “Oigo que Usted es más bien un intelectual. En América Latina solo nos hacen falta hombres de acción. Lo que hay que pensar, los franceses y los belgas ya lo han pensado todo” .

O que mudou de lá para cá?

Primeiro, crescentemente se descobriu que o problema do “subdesenvolvimento” era mais o do “desenvolvimento desigual associado”, com mecanismos políticos expostos; não era só econômico, mas ainda mais social e político. A seguir, cresceu a consciência de que para chegarmos ao “outro mundo possível” (e desejável) não bastava mudar mecanicamente as estruturas socioeconômicas (que não deixam de ser decisivas), mas se impunha a revolução cultural do respeito à diversidade de gênero, étnica e de cultura, superação das desigualdades nestas relações. A justiça socioeconômica e de direitos iguais continuava importante, mas se completava por uma nova ética do cuidado. 

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