Edição 255 | 22 Abril 2008

Anticoncepcionais e Igreja: Humanae Vitae, 40 anos depois

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Graziela Wolfart

Para o teólogo Márcio Fabri dos Anjos, a encíclica de Paulo VI ainda é a referência principal da Igreja quando o assunto é fecundidade

Márcio Fabri dos Anjos, doutor em Teologia, é docente e pesquisador do programa de pós-graduação em Bioética do Centro Universitário São Camilo, de São Paulo, e membro da Câmara Técnica de Bioética do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, ele analisa a questão da contracepção para a igreja católica, a partir do 40º aniversário da encíclica Humanae Vitae, celebrado este ano. A Humanae Vitae (em português “Da vida humana”) foi escrita pelo Papa Paulo VI (nascido em 1897, foi Papa da Igreja Católica de junho de 1963 até sua morte, em agosto de 1978, e comandou a Igreja durante a maior parte do Concílio Vaticano II, sendo decisivo na colocação em prática das suas decisões) e publicada em 25 de julho de 1968. Inclui o subtítulo “sobre a regulação da natalidade”, que descreve a postura da Igreja Católica em relação à pílula anticoncepcional e outras medidas que se relacionam com a vida sexual humana. Confira outra entrevista com Márcio Fabri dos Anjos, intitulada "Um diálogo entre a fé e a ciência para melhor compreender a morte", publicada na IHU On-Line número 162, de 31-10-2005. Eis a entrevista:

IHU On-Line - 40 anos depois do seu lançamento, o que faz da Humanae Vitae um documento ainda atual? O senhor acredita na necessidade de uma revisão desta Encíclica?
Márcio Fabri dos Anjos
- A fecundidade e seu desempenho ético são questões para a vida humana em sociedade e para os próprios indivíduos. A Igreja participa neste assunto com as reflexões e orientações desta Encíclica. Outros documentos da Igreja já apareceram depois deste, especialmente a Familiaris Consortio  e Veritatis Splendor.  Mas a Encíclica Humanae Vitae, de 1968, continua sendo a referência principal e ficou marcada por sua posição restritiva aos anticoncepcionais. Ela foi cercada de polêmicas desde o início, mas conserva a atualidade enquanto que os anticoncepcionais são um tema atual. A Encíclica continua sendo uma expressão da posição oficial da Igreja Católica sobre o assunto. Muita coisa tem mudado nestas últimas décadas, daí ser uma necessidade renovar a reflexão e a palavra que acompanham este tema. A Encíclica é um instrumento que trouxe uma contribuição para o seu tempo. Uma revisão hoje não significaria refazer este documento, mas tomar suas questões de fundo com o novo contexto em que se situam, e com os dados da consciência crítica que também cresceu durante este tempo. É preciso manter o foco que a própria Encíclica teve no seu contexto: meditar e transmitir uma palavra de Deus num assunto tão importante como a fecundidade humana e a responsabilidade ética em seu desempenho.

IHU On-Line - Em que sentido a encíclica Humanae Vitae contribui para a reflexão sobre a contracepção sob o ponto de vista da Igreja? O senhor a considera inovadora ou conservadora?
Márcio Fabri dos Anjos
- A Encíclica foi polemizada, e por isto mesmo provocou reflexão. Ela se colocou diante do avanço tecnológico que representaram os anticoncepcionais hormonais, lançados no mercado em 1962. Mas, bem mais do que isto, estava subjacente uma pergunta que iria crescer: como lidar eticamente com as tecnologias tão próximas da fecundidade humana? Sem entrar no mérito de seus argumentos, a Encíclica representou um gesto de coragem ao enfrentar a mentalidade consumista, que passava muito rapidamente do poder técnico para o poder ético e tomava as tecnologias como simples bens de consumo, recusando qualquer interrogação ética sobre seu uso. A Encíclica veio como que na contramão desse entusiasmo. Levantou, entre outras, a pergunta sobre o respeito devido aos processos biológicos encontrados na natureza e sobre os limites da autonomia humana, como ir além da subjetividade, quebrar o encanto do fechamento em si mesmo para formar juízos morais. Os argumentos da Encíclica para mostrar isto foram em parte contestados, mas provocaram tensas e intensas reflexões na teologia católica. Mas, de modo geral, a Encíclica teve o mérito de plantar a suspeita sobre a passagem rápida do poder técnico para o poder ético.
 
IHU On-Line - Quatro décadas depois da publicação da Humanae Vitae, em que se avançou na Igreja e na sociedade em relação ao debate sobre a contracepção humana?
Márcio Fabri dos Anjos
- Os avanços podem ser pensados em muitas direções, mas todos eles me parecem abrigados na grande transformação cultural destas últimas décadas. Muda-se radicalmente a forma de estarmos no mundo e em sociedade, a forma de compreender, de fazer, de relacionar. A contracepção ganha, assim, outros contornos com inúmeras interfaces da pluralidade social e ética. A sociedade, de modo geral, lhe dá um enfoque bem mais pragmático, e o debate aparece talvez quando entram questões de saúde coletiva e pública, ou quando se trata de criticar a Igreja por suas posições oficiais neste assunto. Alguns vêem nisto os sinais do quanto nossa cultura se guia por uma razão instrumental. A teologia da libertação alertou para o fato de se estabelecerem estruturas socioculturais que institucionalizam costumes e métodos lesivos aos seres humanos, como a esterilização em massa e o atropelo da autonomia, particularmente dos pobres, no controle da natalidade. Ao mesmo tempo, é inegável que os avanços tecnológicos interpelam diretamente as formas de se exercer a responsabilidade ética. De posse do conhecimento científico e de novos instrumentos, fica muito mais clara a responsabilidade humana para agir ou se omitir. Sob o ponto de vista religioso, a teologia tem focalizado a inteligência humana em sua missão de ser criativa dentro dos processos da criação; uma missão confiada por Deus mesmo ao seres humanos. A afirmação medieval de São Tomás de Aquino – “com tal sabedoria Deus fez o ser humano que o fez providência de si mesmo” - é sugestiva neste sentido.

IHU On-Line - Qual é o peso da tradição sobre a “lei natural" para sustentar os argumentos defendidos pela Humanae Vitae?
Márcio Fabri dos Anjos
- A compreensão da “lei natural” como guia para a ação humana traz variações que tem percorrido a história do pensamento filosófico e teológico. Por um lado, se reconhece a sabedoria das leis que presidem os processos biológicos e cósmicos de modo geral. As ciências correm atrás de sua decodificação e não há como não se maravilhar diante de sua grandeza. Por outro lado, volta a pergunta sobre o papel da inteligência humana diante destas leis dadas. Antes da Humanae Vitae, o Concílio Vaticano II (1962-65) já acentuava a “natureza da pessoa humana e de seus atos”, como uma referência a suas características específicas. Nesta linha, se ressalta que a inteligência humana não é simplesmente para perceber o que se passa nos processos biológicos, mas também para agir criativamente neles. Desta forma, o artificial é de algum modo natural, enquanto é natural sermos inteligentes. Isto sugere o rompimento do rótulo prévio da suspeita sobre o artificial e centrar a pergunta que vem em seguida: como ser éticos no manejo das artificialidades. Além disto, se acentua que, por nossa condição humana, sempre associamos instrumentos e procedimentos em uma rede de significados. Sem a consideração desta rede se torna inviável fazer avaliações éticas. A interpretação sobre “lei natural” teve, então, certamente um peso na linha de argumentação da Encíclica. Serviu para não se desprezar tão levianamente a sabedoria presente nos processos biológicos dados. A polêmica em torno dos transgênicos hoje ajuda em parte a perceber uma questão ecológica subjacente também na anticoncepção. Mas permanece o desafio de descobrir, em diferentes áreas, a ética da ação e intervenção da inteligência humana nos processos da vida.

IHU On-Line - Como a Encíclica ajuda a compreender a posição da Igreja sobre amor, casamento e reprodução/fecundidade?
Márcio Fabri dos Anjos
- A questão dos anticoncepcionais rotulou excessivamente a Encíclica. Ela consta de uma primeira parte que coloca a fecundidade e reprodução humana dentro de um grande berço antropológico e espiritual. Supera uma conhecida dicotomia do amor humano ao propô-lo de indissociável como corpóreo e espiritual. Enfatiza o ideal de se buscar a procriação no contexto de um amor fiel e marcado pela gratuidade e bem querer. Mas a leitura da Encíclica que predominou foi sua proibição de métodos artificiais para evitar a gravidez. Creio que este zelo disciplinador esterilizou a força ética da própria Encíclica. Reforçou nela os aspectos da negação e fez perder o dinamismo maior de uma proposta construtiva. Com isto, se enfraquece também a capacidade crítica da teologia cristã para propor um ambiente de compromisso e respeito para as relações sexuais, superando o consumismo do prazer reduzido às individualidades ou ao momento fugaz. E dá lugar para o rótulo: “a Igreja é contra”. Dentro da própria Igreja, acredito que o discurso disciplinador inibiu a palavra de conforto e animação para as pessoas em suas situações concretas, e muitas vezes dramáticas, marcadas pelo sofrimento. Ao fixar uma lei geral e absoluta, se dispensa (e se proíbe) de considerar as particularidades. Resultou uma espécie de esquizofrenia moral em que a prática dos fiéis se distanciou muito da teoria, e entre os próprios padres se calou sobre o assunto. Perde-se, assim, a chance de afirmar os valores maiores que devem impulsionar as ações éticas, e a serviços dos quais se colocam os instrumentos.

IHU On-Line - O que significa, hoje, condenar a contracepção, principalmente falando da camisinha, em nossa sociedade marcada pela Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis (infelizmente, muitas vezes, dentro do próprio casamento)?
Márcio Fabri dos Anjos
- A epidemia do vírus HIV e de outras doenças sexualmente transmissíveis representa casos concretos em que a própria vida é posta em perigo. Tornam-se um problema de saúde coletiva. Diante disso, alguns afirmam o receio de que a admissão de preservativos seja confundida como um incentivo à banalização das relações, ferindo o sentido ético dos relacionamentos. Outros, mesmo admitindo que o uso de preservativos não seja em si um ideal, acreditam que seu uso pode ser visto eticamente como um mal físico menor, diante da defesa concreta e real da vida. A oferta de preservativos nestes casos tecnicamente se diria uma colaboração material. Os cardeais Dom Paulo Evaristo  (São Paulo) e Dom Carlo Maria Martini  (Milão) fizeram afirmações nesta direção. Em todos os âmbitos da ação, persiste a pergunta sobre o sentido ético dos procedimentos e instrumentos adotados. O caso das freiras missionárias, que na ameaça de serem estupradas pelos vencedores de outra tribo em guerra tomaram anticoncepcionais, ajuda a perceber outro lado da questão. Sugere que o preservativo pode significar defesa contra uma agressão, e não simplesmente anticoncepção. De modo semelhante, o preservativo usado por um marido portador de HIV teria o sentido de respeito pela vida e saúde de sua esposa. Isto mostra como existem modelos diferentes para a avaliação ética de meios que funcionam também como anticonceptivos. O debate entre estes modelos é tenso e vem de longa data na Igreja Católica. Acho uma pena que, em meio a tudo isto, não fique transparente o compromisso que a Igreja tem, e realmente desenvolve, na defesa da vida e da saúde de pessoas portadoras de HIV e de outras doenças sexualmente transmissíveis.

IHU On-Line - Em que medida a Humanae Vitae contribui para a reflexão sobre o aborto e a preservação da vida humana, principalmente se lembrarmos das pesquisas com células-tronco embrionárias?
Márcio Fabri dos Anjos
- O tema da anticoncepção faz pensar na prevenção do aborto e da gravidez indesejada, especialmente de adolescentes. São questões trazidas por quem trabalha no campo da saúde coletiva. A prevenção diante desses males indesejáveis é urgente e indispensável. A Encíclica desenha uma pauta ideal para acolher a fecundidade. Mas a realidade da sociedade plural brasileira está muito distante deste ideal. Esta distância desafia a capacidade pedagógica da Igreja Católica em educar e contribuir para a formação da consciência eclesial e social nestes assuntos. Acredito que ela tem prestado um importante serviço de alertar sobre o ethos cultural violento que atropela e trata com descaso as pessoas e o ambiente. O mais difícil é passar do ideal para as medidas adequadas da gestão em meio à conflitividade real. Quanto a isto, as concepções cristãs podem, sim, se apresentar como contribuição de cidadania, mas se inserem em um contexto de sociedade plural. Já o assunto das pesquisas com células-tronco embrionárias abre outro tema extremamente importante que não caberia aqui, ou seja, o debate sobre o estatuto de defesa do embrião humano em sociedade.

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