Edição 385 | 19 Dezembro 2011

Maria de Magdala, a grande “Apóstola dos Apóstolos”

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Moisés Sbardelotto


IHU On-Line – Em seu artigo Mary of Magdala, Apostle to the Apostles , você diz, entre outras coisas, que Maria Madalena “não era uma prostituta”. Em sua opinião, o que levou a essa confusão em torno da figura de Maria Madalena?

Chris Schenk – Uma explicação é uma leitura errônea comum do Evangelho de Lucas, que nos diz “sete demônios saíram dela” (Lucas 8, 1-3). Para os ouvidos do primeiro século, isso significava apenas que Maria tinha sido curada de uma doença grave, e não que ela era pecadora. Segundo biblistas como a Ir. Mary Thompson, a doença era comumente atribuída ao trabalho dos espíritos maus, e não associada com a pecaminosidade pessoal. O número sete simboliza que a sua doença era crônica ou muito grave.
Além disso, como o conhecimento das muitas discípulas de Jesus desapareceu da memória histórica, suas histórias se misturaram e se borraram. A terna unção de Maria de Betânia antes da paixão de Jesus estava ligada à mulher “conhecida por ser uma pecadora”, cujas lágrimas lavaram e ungiram os pés de Jesus na casa de Simão. Os textos de unção combinaram todas essas mulheres em uma só pecadora público-genérica: “Magdalena”. A identificação equivocada de Maria como uma pecadora pública reformada alcançou um status oficial com uma poderosa homilia sobre o perdão do Papa Gregório Magno (540-604).
Doravante, Maria de Magdala se tornou conhecida no Ocidente não como a forte mulher líder que acompanhou Jesus através de uma morte tortuosa, que testemunhou por primeiro a sua Ressurreição e proclamou o Salvador Ressuscitado à Igreja primitiva, mas como uma mulher devassa com necessidade de arrependimento e de uma vida de penitência escondida (e de preferência em silêncio). Curiosamente, a Igreja Oriental nunca a identificou como uma prostituta, mas honrou-a ao longo da história como “a apóstola dos apóstolos”.

IHU On-Line – Por que podemos falar de Maria Madalena como uma “mística”, com tão poucos elementos bíblicos (pelo menos nos Evangelhos canônicos) sobre essa mulher de Magdala? Qual seria a “mística” de Maria Madalena?

Chris Schenk – Embora não saibamos exatamente como foi a experiência da Ressurreição para Maria de Magdala, sabemos que ela teve uma experiência tão poderosa do Cristo ressuscitado que a levou a correr para contar aos seus discípulos irmãos: “Eu vi o Senhor”. Talvez bastante compreensivelmente, eles não acreditaram nela à primeira vista. Mas, qualquer que tenha sido a experiência de Maria, eu gosto de pensar que ela era uma mulher profundamente mudada, e que a mudança observável provavelmente preparou o caminho para que os outros discípulos se abrissem para receber as suas próprias experiências do Cristo ressuscitado.
Parece claro para mim que, embora os discípulos tenham experimentado uma “corporalidade” de Cristo nessas experiências da Ressurreição, não era a mesma de uma ressuscitação de uma pessoa morta. Jesus estava vivo de fato e se deu a conhecer a eles, mas ele também estava mudado o suficiente, tanto que eles não o reconheceram à primeira vista. O Evangelho de João nos diz que Maria primeiramente o confundiu com o jardineiro e, só depois de ouvir Jesus chamar o seu nome e literalmente “virar-se” [para trás], é que ela o reconheceu. Os discípulos de Emaús (Lucas 24, 13-35) não reconheceram Jesus ao longo de toda aquela longa jornada, somente no partir do pão. Assim, qualquer que tenha sido a experiência da Ressurreição, ela não foi um reconhecimento direto, mas envolveu algum sentido liminar e místico para além das nossas capacidades perceptivas usuais. É dessa forma que eu acredito que Maria de Magdala pode ser considerada uma mística.

IHU On-Line – Nesse sentido, qual é o significado mais profundo desse relato do momento mais memorável da experiência mística de Maria Madalena, ou seja, o fato de ela ter sido a primeira pessoa – e mulher – a testemunhar a Ressurreição?

Chris Schenk – Assim como muitas mulheres antes de mim, eu experimentei uma “noite escura do patriarcado” depois de perceber o quão íntima e profundamente toda a história ocidental (a única história com a qual estou familiarizada) tornou as contribuições das mulheres tudo, menos invisíveis.
O fato de Deus ter confiado por primeiro a proclamação da Ressurreição a uma mulher me diz que, embora os seres humanos discriminem, Deus não discrimina. Eu considero a inclusão das mulheres no discipulado de Jesus na Galileia e o delicado equilíbrio de gêneros por parte de Deus no evento da Ressurreição, que modificou o cosmos, profundamente consoladores, especialmente agora, quando vemos um aparente ressurgimento do medo do feminino entre muitos líderes homens da Igreja institucional.

IHU On-Line – Na história da Igreja, outra Maria, a mãe de Jesus, ocupa um lugar central há séculos – especialmente na América Latina. Que semelhanças e diferenças você vê entre estas duas grandes figuras femininas do cristianismo, Maria, a mãe de Jesus, e Maria Madalena?

Chris Schenk – Nossa... Esse é um assunto que merece uma discussão muito mais longa e estudada do que a breve resposta que eu sou capaz de dar aqui. Basta dizer que – assim como o testemunho das primeiras líderes bíblicas independentes como Maria de Magdala, Febe, Lídia, Ninfa, Prisca e até mesmo a Maria de Nazaré histórica foi ou suprimido ou apagado da memória histórica –, elas foram substituídas por homens líderes da Igreja que levantaram uma reflexão teológica sobre Maria como Virgem Mãe por honra e reconhecimento.
Em Mary, the feminine face of the Church, Rosemary Ruether  compara a Maria bíblica com Maria de Magdala e as outras discípulas que, como vimos, desempenham um papel central e às vezes não convencional nos Evangelhos. Embora haja muitas evidências no Novo Testamento sobre o papel de Maria de Magdala e das outras discípulas, a tradição da Igreja glorificou Maria, a mãe de Jesus, como a mulher fiel que permaneceu lealmente ao seu lado. Muitos estudiosos acreditam que o papel de Maria de Magdala foi suprimido porque ela apresentava um modelo de liderança feminina independente que os posteriores homens líderes da Igreja queriam evitar. Eles queriam evitar esse modelo por causa da tensão na Igreja primitiva em torno do fato de mulheres cristãs exercerem a liderança pública em uma cultura greco-romana que acreditava que a liderança feminina só era apropriada em ambientes privados.

O culto à Virgem Maria

O culto à Virgem Maria ganhou proeminência no século IV, quando o cristianismo estava se tornando a religião obrigatória do Império Romano, cujo povo adorava Deus há muito tempo tanto na metáfora masculina como feminina. Muitos estudiosos encontraram semelhanças entre o culto à Maria e o culto à Grande Deusa Mãe (Ísis, Ártemis), proeminente no mundo mediterrâneo no qual o cristianismo rapidamente se espalhou. A glorificação e a veneração a Maria foram ao encontro de profundas necessidades espirituais e psicológicas para um povo cujos corações estavam acostumados a adorar a Deus com um rosto feminino. Estudiosos identificam muitas formas concretas pelas quais essa adaptação aconteceu. Lagos e nascentes onde as divindades femininas eram honradas passaram a ser associadas a Maria, a Virgem Mãe. Santuários e templos à Deusa foram rededicados a Maria, Mãe de Deus. Finalmente, como a teóloga Elizabeth Johnson observa, “não foi por acidente que a doutrina do século V da Theotokos [Mãe de Deus] foi proclamada em Éfeso, cidade famosa pela sua adoração entusiástica da deusa grega Diana” .

Esse fenômeno foi visto mais recentemente, quando consideramos como a veneração de Nossa Senhora de Guadalupe se espalhou rapidamente por todo o México, cujos povos nativos haviam sido devastados muito recentemente pela conquista e doenças vindas pelas mãos dos invasores espanhóis do século XVII. A compreensão indígena do sagrado não tinha nenhuma categoria para qualquer ser divino que não incluísse também o feminino. Tepeyec, o local da revelação guadalupana, era o antigo lugar da grande deusa da terra Tonanzin. Tonanzin significa “mãe” na história nativa Nahuatl. Finalmente, os povos nativos encontraram um ser divino com o qual eles poderiam se relacionar. O Pe. Virgilio Elizondo fez esta tradução da mensagem de Nossa Senhora de Guadalupe por meio de Juan Diego  para o povo recentemente derrotado: “Saibas e entendas tu, o menor dos meus filhos, que eu sou sempre Virgem Maria, Mãe do verdadeiro Deus por quem se vive. Desejo vivamente que me seja erguido aqui uma casita, para nele mostrar e dar todo o meu amor, compaixão, auxílio e defesa a ti, a todos vós, a todos os moradores desta terra e aos demais que me amam, que me invocam e em mim confiam. Ouvirei ali os seus lamentos e remediarei todas as suas misérias, penas e dores” .
Elizabeth Johnson, CSJ, fala de forma muito bela ao observar que uma das razões pelas quais Maria tem sido tão importante na história da Igreja é que: “Maria tem sido um ícone de Deus. Para inúmeros fiéis, ela tem funcionado no sentido de revelar o amor divino como misericordioso, próximo, interessado, sempre pronto a ouvir e a responder às necessidades humanas, confiável e profundamente atrativo, e tem feito isso em um grau impossível quando se pensa em Deus simplesmente como um homem ou homens de poder. Consequentemente, em devoção a ela como uma mãe compassiva que não vai deixar que um de seus filhos se perca, o que realmente está sendo mediado é uma experiência mais atraente de Deus?” .

Então, embora seja uma tragédia da história que, pelo menos até recentemente, as discípulas de Jesus e de São Paulo ou foram apagadas da memória histórica ou degradadas a prostitutas em favor do modelo totalmente puro e, no fim das contas, inacessível de Maria, a virgem-mãe, o outro lado da moeda é que, de alguma maneira, Deus encontrou uma forma de preservar o acesso humano ao divino feminino na experiência cristã. É claro que o ensino oficial da Igreja nunca afirmou que Maria é divina, mas as reflexões de muitos teólogos e as experiências de oração dos fiéis muitas vezes sugerem que outra coisa está em ação.
De fato, Johnson encontra na tradição mariana um “filão de ouro que pode ser ‘explorado’, a fim de recuperar o imaginário e a linguagem femininas sobre o santo mistério de Deus”. Na tradição mariana, sugere ela, “onde quer que a ultimidade do divino seja evocada nas Escrituras, na doutrina ou na liturgia ou onde quer que a ultimidade da confiança do fiel seja convocada, podemos supor que a realidade de Deus está sendo nomeada em metáforas femininas” .

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