Edição 374 | 26 Setembro 2011

Uma obra para refletir sobre nossa época

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Márcia Junges



IHU On-Line – Em que aspectos Lima Vaz promoveu uma análise crítica do pensamento marxista?

Álvaro Mendonça Pimentel – Eis uma questão que precisaria de um longo desenvolvimento, porque, como se sabe, desde muito cedo Vaz participou ativamente do debate a respeito do marxismo. O pesquisador que quiser enfrentar tal desafio encontrará farto material, inclusive todas as notas tomadas por Vaz, mostrando que seu juízo crítico a respeito do marxismo encontra-se respaldado pelo estudo da obra de Marx e de eminentes marxólogos. Todo esse material inédito encontra-se no Memorial Padre Vaz, instalado atualmente na FAJE. Aí o historiador da filosofia terá acesso aos cadernos de notas e a dezenas de inéditos do nosso filósofo.

Mas, voltando à questão, eu destaco dois aspectos de grande interesse ainda hoje. Um referente à pastoral eclesial, outro de cunho mais teórico, respectivamente: a) Diante dos diversos marxismos, ou seja, das sistematizações inspiradas no pensamento de Marx, Vaz demonstrou, por um lado, a impossibilidade de um “marxismo cristão” ou de uma “pastoral marxista”, uma vez que o pensamento marxista exclui qualquer referência transcendente. Mas, por outro lado, assim como o jusnaturalismo foi uma condição para a doutrina dos direitos humanos, e esta, por sua vez, não fere, antes é confirmada pela fé cristã; assim também, Vaz percebia na análise marxista elementos que incidem sobre aspectos fundamentais da sociedade industrial moderna, compreendida como “civilização da produção organizada e (teoricamente) ilimitada de bens”. Ora, não é de se estranhar que esse e outros aspectos da análise marxista, com a crítica que eles representam a um modo de civilização potencialmente autodestrutivo, tenham sido assimilados pelo discurso cristão. E, assim, a previsão de Vaz, feita nas décadas de 1960 e 1970, de que “no século XXI o confronto com o marxismo será uma página virada na longa história do pensamento cristão”, parece hoje realizar-se. b) O aspecto de cunho mais teórico que desejo salientar é, justamente, o da negação de qualquer referência transcendente nas doutrinas marxistas. Vaz viu nesse aspecto uma perversão da compreensão da consciência humana. O fruto de tal perversão é a criação de uma “consciência revolucionária” que, estranhamente, por um lado, deve tecer-se num processo histórico e é, portanto, resultado desse processo; mas, por outro lado, é aquela que compreende e guia tal processo revolucionário e, portanto, o transcende e o produz! Ela é fruto da imanência, mas arvora-se um conhecimento transcendente, algo como o fim absoluto da história! Em sua contradição, ela se torna uma impossibilidade teórica e deriva, finalmente, para a linguagem mitológica. De fato, Vaz denuncia um ato de fé marxista que, teoricamente, não se sustenta.

IHU On-Line – Qual é a influência de Platão, Tomás de Aquino e Hegel em sua síntese filosófica?

Álvaro Mendonça Pimentel – É preciso distinguir um ato filosófico de uma “síntese” filosófica. Ou melhor, explicar o que se entende por síntese. Por exemplo, alguém poderia compreender tal questão como se filosofar significasse simplesmente organizar uma série de contribuições da tradição. E que avaliar uma “síntese filosófica” corresponderia, portanto, a ver se esses elementos se encontram bem organizados em determinado autor e, neste, melhor organizados que em outros. Mas isso significaria identificar a filosofia a um jogo de quebra-cabeça, em que a mesma figura se encontraria mais ou menos completa, mais ou menos fiel ao modelo original.

Não é assim que entendo a obra do Lima Vaz. Sem dúvida, Platão, Santo Tomás e Hegel são autores de grande importância para ele. Se considerarmos, por exemplo, a estrutura dialética de seus grandes cursos de antropologia filosófica e de ética (acima citados), sentimos imediatamente o ambiente hegeliano e platônico do filosofar de nosso autor. No entanto, tal dialética não faz de Vaz um hegeliano, pois seu ponto de partida não é “a força prodigiosa do negativo”, mas sim a superabundância ontológica de Deus, que cria livremente. E aqui o pensamento de Tomás de Aquino é fundamental. Esse é um exemplo de confluência e mútua correção que só um pensador como Vaz, profundo conhecedor da tradição filosófica, seria capaz de realizar. Ele introduz na dialética o dom ontológico e, na ontologia, o dinamismo histórico, transformando, assim, um método e um conteúdo da tradição. Portanto, se é importante conhecer as influências sofridas por um autor como Vaz, é mais importante perceber como essas influências encontram-se por ele transformadas – e não apenas nele reorganizadas! – obedecendo a uma intuição original e pessoal. Muitos outros exemplos como esse, incluindo, aliás, vários outros autores, poderiam ser dados.

IHU On-Line – Qual é a atualidade e importância dessa síntese e em que ela consiste?

Álvaro Mendonça Pimentel – Creio que a principal contribuição do pensamento de Lima Vaz não está numa “síntese” que se mostre atual, mas sim em sua coragem de pensar os problemas atuais à luz da grande tradição filosófica. Platão, Tomás de Aquino e Hegel viveram em mundos que não são mais os nossos. Se quisermos filosofar hoje, não basta conhecê-los bem e elaborar uma síntese. A filosofia nasce da vida, das questões que se colocam na existência humana. E a tradição filosófica, representada aqui por essa tríade de gigantes, nos ensina, não as respostas, mas um modo de vida que permite tratar nossas questões e elaborar nossas respostas.

Veja, por exemplo, o que se diz hoje constantemente sobre a fragmentação do ser humano. Trata-se, é claro, de uma fragmentação de discursos sobre o ser humano, da ausência de uma imagem unificada de nosso ser e, mesmo, de discursos concorrentes e mutuamente excludentes. Somos seres fundamentalmente biológicos, sociais, ou culturais? Vaz propõe então uma antropologia filosófica. Ele não é o único nem o primeiro a fazê-lo no século XX. Mas ele o faz a seu modo, com seu estilo próprio de escritura. E o ser humano que se desenha ao longo do discurso dialético é um excesso de ser que não se esgota no discurso, mas que aí se unifica. Vencendo a tendência contemporânea a dilacerar o sentido presente na linguagem, Vaz convida seu leitor a rememorar os modos de expressão do ser humano e o conduz, nessa rememoração, a percorrer os grandes problemas teóricos e culturais de nosso tempo. O mesmo ocorre nos escritos de ética, quando Vaz decide enfrentar o niilismo contemporâneo. Ou em seus textos metafísicos em que ele pergunta pelos fundamentos últimos do real.

IHU On-Line – Qual é a importância e o maior legado de Lima Vaz dentro da filosofia brasileira?

Álvaro Mendonça Pimentel – A filosofia acadêmica brasileira cresceu de modo admirável nas últimas décadas. Seu principal desenvolvimento concentrou-se no estudo e na recepção da tradição filosófica. Grandes professores de filosofia enveredaram pela trilha da filologia. Com isso, o acesso e a interpretação dos textos da tradição encontra-se hoje facilitado. Comentários detalhados e tecnicamente impecáveis, escritos por professores brasileiros, começam a surgir no mercado editorial especializado.
Nesse contexto, a obra do Lima Vaz (e de alguns outros pensadores contemporâneos) desponta como uma contribuição diferente. Vaz também praticou o comentário detalhado de textos importantes, traduziu grandes autores da tradição e deu atenção a vários debates teóricos ao longo de sua carreira. O que eu disse acima a respeito do marxismo é um exemplo, talvez o mais marcante; mas haveria outros, como é o caso de seu confronto com Heidegger. No entanto, o que marca a obra de Vaz é a sua reflexão sobre o nosso tempo, as nossas questões, as urgências de nossa cultura. Ele a teceu lentamente ao longo de vários anos. Ele ordenou seus argumentos sempre em largos quadros teóricos, tratando integralmente as questões contempladas, vencendo as tendências parciais e as tentações fáceis dos modismos de autores. Ler Vaz é situar-se nesses horizontes amplos, ganhar os vários ângulos de cada questão por ele tratada e perceber, nas entrelinhas, o que não se diz, o que não se pode talvez mesmo dizer, a intuição que guia um grande autor e que ele apenas nos sugere, para que nós também a encontremos por nós mesmos.

IHU On-Line – O que é o humanismo teocêntrico que Vaz propõe em Raízes da Modernidade? Como esse conceito ajuda o sujeito a viver e superar o tempo de incertezas de hoje?

Álvaro Mendonça Pimentel – Falar em “humanismo teocêntrico” pode parecer contraditório. Afinal, humanismo não consistiria numa centralidade do humano? Dever-se-ia, pois, preferir a expressão “humanismo antropocêntrico”? Triste expressão, seja porque encerra um pleonasmo (homo = anthropos), seja porque desconhece as matrizes históricas formadoras do humanismo. Ler Vaz traz-nos, ao contrário, a alegria de beber nas fontes geradoras da ideia de humanismo e que se encontram na cultura grega e seu legado metafísico, na cultura latina com seu legado ético-jurídico e teológico e, finalmente, na cultura bíblico-cristã e sua herança religiosa. O humanismo teocêntrico nada mais é do que esse longo percurso ideal e histórico em que a consciência humana se diferenciou e, portanto, se enriqueceu, situando o ser humano como um movimento de realização, que não se esgota em sua história, tampouco em suas obras, mas abre-se a Deus, simbolicamente representado nas formas da metafísica, realmente conhecido na afirmação de Deus e no ato de fé.
A filosofia não vale um minuto de aflição se ela não é também sabedoria, ou seja, se a coragem de pensar não traz consigo a força para viver. Nesse sentido, contra o desalento de um ser humano que se compreenderia como mero acidente de um universo determinista, ou como ser puramente biológico e condicionado geneticamente, o humanismo teocêntrico vem defender a dignidade única do humano, sua liberdade e capacidade criativa. Se a realidade última é mero determinismo; não há espaço para a liberdade e a criatividade, para a novidade e a comunhão, para a amizade e o amor. Não há lugar para a diferença, pois tudo se encontra determinado pelas mesmas leis universais e necessárias, tendendo à mera identidade formal. Não há, finalmente, sequer razão suficiente para lutar pela justiça e para dedicar-se à tarefa política.
Mas se, na origem do mundo, encontra-se uma liberdade criadora que chama ao ser outras liberdades, então se pode conceber nossa existência, por sua vez, como prolongamento da criação livre, voltada à construção de um mundo humano. Afirmar Deus e afirmar a humanidade são tarefas teóricas inseparáveis, cujas consequências práticas são enormes, como se pode ver. Ninguém está obrigado a fazer metafísica, mas é preciso ter clareza do que se encontra em jogo quando se adere sem exame crítico a posturas teóricas que supõem sempre uma metafísica qualquer. Eis o que Lima Vaz nos ensina e nos recorda ao propor para nossa época um “humanismo teocêntrico”.

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