Edição | 15 Agosto 2011

Ceticismo, naturalismo e sentimentalismo: as contribuições de Hume

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Márcia Junges



IHU On-Line – Hoje, há um “cisma” entre fé e ciência, tendo Hitchens e Dawkins como alguns de seus maiores expoentes. Em que medida o ceticismo humeano participa da fundamentação desse debate?

Lívia Guimarães – Pode-se seguramente afirmar que Hume contemplou, em sua análise da crença religiosa, a quase totalidade de perspectivas e desdobramentos possíveis no contexto da época. Com respeito à justificação da crença religiosa, ele desafiou as credenciais da revelação (Dos milagres), o argumento pelo desígnio, o argumento cosmológico e, mais difusamente, argumentos fideístas (Diálogos sobre a religião natural e De uma providência particular e de um estado futuro). Na História natural da religião (1757) e, mais brevemente, no Da superstição e entusiasmo, Hume propôs uma explicação psicológica de sua origem nas paixões e circunstâncias humanas. Ainda nesses textos, Hume investigou as consequências da religião para a felicidade individual, o bem-estar social e a estabilidade política. Os efeitos morais, ele abordou de forma geral na segunda Investigação, ao defender que, além de desnecessária, a religião sequer favorece a moral podendo, inclusive, prejudicá-la. Os efeitos da religião sobre a estabilidade, autoridade e liberdade políticas, ele aprofundou no livro História da Inglaterra. Além da jutificação, causas e consequências, morais e cognitivas, individuais e coletivas, da crença, Hume esboçou uma tipologia das religiões (politeísta e monoteísta, vulgar e não vulgar, supersticiosa e entusiástica).

Decerto, Hume foi um cético irreligioso. Mas, o que significa ser cético? A resposta não é fácil. Não existe consenso na tradição de intérpretes sobre as posições de Hume. Um caso ilustrativo seria a questão dos milagres, onde interpretações apontando a existência de um argumento a priori na parte I do ensaio conflitam com as que atribuem a Hume somente um argumento a posteriori. Robert Fogelin e Anthony Flew representaram, nas décadas de 1980 e 1990, os extremos desta controvérsia. Em um ponto ainda mais fundamental, há divergência sobre se a posição assumida por Hume acerca da religião se qualificaria, afinal, como ateísta, teísta, deísta ou fideísta. Ou, ainda, se, segundo ele, a crença religiosa é injustificada e deve ser por isso abandonada ou se, assim como a crença em objetos externos, relações causais, identidade pessoal, e tantas outras, pertence ao grupo das crenças naturais, cuja falta de justificação não implica em abandono. João Paulo Monteiro, Norman Kemp Smith, Stanley Tweyman, J.C.A. Gaskin, Terence Penelhum, Paul Russell, Thomas Holden, são alguns dos autores nesse debate.

Ademais, não creio que se possa afirmar que Hume teve uma única resposta para todas as questões relativas à crença religiosa. Sobre este e outros problemas, sua posição varia entre os textos. Por um lado, a História natural da religião torna insustentável a ideia de um teísmo esclarecido, admitindo, na melhor das hipóteses, uma interminável oscilação entre teísmo não vulgar e vulgar (este último bastante próximo do politeísmo). Por outro, a parte XII dos Diálogos faz o teísmo invulgar parecer perfeitamente sustentável para todas as pessoas reflexivas. Enquanto a História natural favorece a conclusão de que a crença religiosa pode se declarar falsa, os Diálogos, em parte, favorecem uma suspensão cética do juízo acerca de sua validade.
Por vezes, sua resposta parece evoluir com o passar do tempo. O exemplo mais claro está na superstição e entusiasmo. Enquanto o ensaio de 1741 declara que, por favorecer a liberdade e tolerância, o entusiasmo é preferível na política, a História da Inglaterra aponta uma grave ameaça para a sociedade no efeito desestabilizador do entusiasmo. Ao mesmo tempo, a superstição que, no ensaio se alia unicamente à submissão, na História, ao ser transplantada para a Inglaterra pelos normandos, traz, segundo Hume, algumas consequências benéficas, acrescentando refinamento e sofisticação à sociedade saxônica. Hume chega a reconhecer que os sentimentos religiosos são agradáveis, que é possível a ocorrência de milagres e que uma sociedade perfeita reservará um lugar para o clero e para as práticas religiosas.

Dogmatismo e perseguição
As tensões na análise de Hume exibem a condição humana, ela própria constituída por oscilação e instabilidade, e suscitam um problema ao qual Hume acabou por dedicar seus maiores esforços de pensamento: emergindo sobre bases fracas e instáveis, a religião pode se elevar a níveis de fanatismo perigosos, e poderosamente afetar a sociedade e determinar a vontade. Até mesmo em eras ilustradas, apesar do remédio do ceticismo e da reflexão, a fé vulgar segue perturbando os seres humanos. Portanto, como lidar com costume, educação, preconceito, ignorância, e paixão? De onde vem a força da religião? E de onde vem sua fraqueza?
No entanto, a sua é uma pergunta é bastante difícil. Um dos legados de Hume aos dias de hoje consiste no projeto realizado de uma filosofia sem religião. Há, porém, autores cuja proposta vai além disso, ao manter que a filosofia de Hume impossibilita a religião. A favor, não necessariamente da proposta, mas do princípio em que repousa, creio realmente que Hume admita a quase impossibilidade de se manterem tais fronteiras rígidas nas mentes e sociedades humanas.

No início desta entrevista, procurei descrever Hume como um praticante da ciência ou “filosofia moral”. Na introdução do Tratado, ele anuncia o projeto, que também resume sua concepção de filosofia, de estudar as operações e princípios da natureza humana, segundo um método natural de investigação. O método consiste na observação e generalização, sob a forma de leis, das regularidades detectadas em padrões ordenados e estáveis do comportamento humano. Ele pretende, assim, explicar nossa experiência moral, epistêmica, estética e política. No Tratado, isso equivale, primeiro, a mostrar como funciona a mente e, a partir de um certo ponto, como funcionam mentes e seres humanos nas diversas circunstâncias de suas vidas. Portanto, Hume confia na prática científica, desde que qualificada, ou seja, concebida como probabilística, falibilista e revisável. Sua ciência é uma narrativa causal que se interrompe muito antes de se alcançarem causas primeiras ou princípios últimos, que em tudo extrapolam a experiência humana. Hume chega a dizer algo como: “quanto mais cresce nosso saber, mais ainda cresce a consciência de nossa ignorância”.
Ao ler Hume, no momento, eu não aproximaria o estatuto da crença filosófica ao da fé religiosa; não incluiria a crença religiosa no conjunto das crenças naturais (inevitáveis, sem elas, pereceríamos), nem das crenças racionais. Também não vejo em Hume um apologista da verdade da ciência, e do supremo poder do conhecimento. Estudioso da natureza humana, ele me parece serenamente convencido de sua fragilidade e variabilidade no agir, no sentir e no pensar. Se fosse arriscar uma resposta, eu acrescentaria que Hume teme, acima de tudo, as perdas e perigos, da perseguição e do dogmatismo, científico ou religioso.

IHU On-Line – Em que medida o sujeito enquanto um “grande feixe de percepções transitórias”, como propôs Hume, antecipa o surgimento do sujeito “fragmentário” da pós-modernidade?

Lívia Guimarães – Esta é outra pergunta difícil. Para Hume, a mente é um feixe de percepções. Observando que facilmente fazemos a distinção entre sentir e pensar, ele distingue as percepções em duas categorias: impressões e ideias. As impressões (que temos ao ver, ouvir, sentir, amar, odiar, desejar) são fortes e vívidas; são irresistíveis e nos afetam e dispõem involutariamente. Ideias são cópias fracas e esmaecidas das impressões. Hume conclui que as ideias simples são causadas pelas impressões simples, ao notar que se assemelham e são posteriores a estas e que, faltando a impressão original, também falta a ideia correspondente. Mas, enquanto as impressões de sensação (dos órgãos sensórios e prazer e dor) causam as ideias, as próprias ideias causam novas impressões de reflexão (paixões, desejos e emoções). Por sua vez, estas últimas são novamente copiadas em ideias, e assim por diante. Hume relega o estudo das sensações aos anatomistas e escolhe, como ponto de partida do Tratado, ideias das sensações, delas seguindo para as demais percepções.

As ideias na mente não se encontram inteiramente soltas e desconectadas, nem se associam por mero acaso. Hume observa que há qualidades pelas quais uma ideia naturalmente introduz outra e que há uniformidade na maneira como se associam. Os princípios que as guiam, ele os caracteriza como uma “força gentil”, apontada pela natureza, e são: semelhança, contiguidade (no espaço ou tempo), causa e efeito. Definida em sentido amplo, a imaginação é a própria mente – um feixe de percepções unidas por esses princípios. Numa acepção mais restrita, a imaginação distingue-se da memória e da razão, em um contraste que retoma aquele entre ideias e impressões, segundo o critério da força e vividez.
Enquanto a imaginação combina ideias sem preservar a forma e ordem das impressões originais, na memória as ideias associam-se segundo sua ordem original. Essa distinção deve-se, contudo, apenas ao nosso sentimento interno: ideias de memória são sentidas vívida e fortemente, ou seja, nós as sentimos como se não pudessem ser outras. Mas, na imaginação, “uma percepção é fraca e lânguida e somente com dificuldade pode ser preservada firme e uniforme por um tempo considerável”. Num contraste paralelo, uma associação de ideias pode se constituir em mera concepção imaginada, ou em crença, como é o caso da associação por causação, do que força e vividez resultam de experiência regular passada – numa expressão de Hume, de evidência “moral”, baseada na razão provável.

Abordagens pós-modernas
Com o passar do tempo, uma ideia de memória pode se enfraquecer ao ponto de tornar-se praticamente indistinguível de uma ideia de imaginação. E é possível a uma ideia imaginada adquirir vividez quase (ou até) comparável à da memória. Poemas e romances produzem vivas imagens, onde a “natureza se confunde inteiramente”. Isso também ocorre nos sonhos, febre e loucura. Mentirosos acabam por acreditar em suas mentiras. Do mesmo modo, podem atingir a força de crenças ideias que seriam ficções não resultantes de experiência passada uniforme ou, em outras palavras, do princípio de causalidade, mas dos princípios instáveis e triviais da imaginação (semelhança, contiguidade) e do artifício (educação, eloquência).
Este é apenas o ponto de partida de um modelo de mente que vai incluir, além das crenças, as paixões e os sentimentos. Neste modelo, a pergunta sobre a identidade pessoal, ou sobre o “eu”, deverá buscar a impressão da qual se origina a ideia. Não a encontrando, Hume encontra o feixe, que talvez não seja fragmentado ou, melhor dizendo, cuja ênfase ele talvez prefira colocar não na fragmentação, mas nas possibilidades de associação entre as percepções, embora deva-se notar que Hume pensa nas diferenças, talvez fragmentações, pelas quais passa um suposto “mesmo” eu, dadas suas relações e circunstâncias, por exemplo, entre amigos ou estranhos, solitário ou em sociedade, na cidade ou no campo, sob um governo monárquico ou republicano, dotado de poder ou destituído, jovem ou ancião, em diversas épocas e lugares, etc. Enfim, simplesmente por negar substancialidade ao “eu”, Hume já torna possíveis as abordagens pós-modernas. Gostaria de dizer só mais uma palavra nesta entrevista: quando Hume abandona o tradicional problema da substância, ele dirige sua atenção ao problema da causalidade. Isto vai trazer uma alteração radical na orientação de grande parte da metafísica futura. Esta, sem dúvida, é uma de suas grandes contribuições para o nosso tempo.

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