Edição | 15 Agosto 2011

Ceticismo, naturalismo e sentimentalismo: as contribuições de Hume

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Márcia Junges

Dogmatismo e perseguição científica ou religiosa estavam entre os grandes temores do pensador, avalia Lívia Guimarães. Base sentimental da ação foi um de seus grandes temas de estudo

Tido como o filósofo mais influente de língua inglesa, Hume ofereceu legados inestimáveis à filosofia. Uma delas, enumera a filósofa Lívia Guimarães, é apontar a “existência da falácia naturalista nas teorias morais que não distinguem valores de fatos, enunciados prescritivos de enunciados descritivos”. Além disso, tomando em consideração os resultados teóricos da “nova cena de pensamento”, pode-se dizer que “a maior contribuição de Hume esteja na intuição de que as paixões estão na origem de todos os nossos juízos e de que a moral, a estética e mesmo o conhecimento possuem uma base sentimental”. Resumidamente, ceticismo, naturalismo e sentimentalismo compõem as intenções e contribuições fundamentais do filósofo escocês. Lívia acentua que um dos maiores temores de Hume era endereçado aos “perigos do dogmatismo e perseguição científico ou religioso”. As declarações fazem parte da entrevista concedida pela pesquisadora por e-mail à IHU On-Line.

Graduada e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Lívia é doutora em Filosofia pela Catholic University of America e pós-doutora pela University of North Carolina at Chapel Hill e pela Universidade de Nova Iorque. Professora na UFMG, é membro do Comitê Executivo da Hume Society e co-organizadora do seu 40o. Congresso Internacional, que ocorrerá no Brasil, em 2013. Organizou a obra Leituras de Hume (Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2009) e é uma das organizadoras de Filosofia Analítica, Pragmatismo e Ciência (Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998).

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a importância e atualidade da filosofia de Hume 300 anos após seu nascimento? Quais são as maiores contribuições de seu pensamento para a ética, a epistemologia e a metafísica?

Lívia Guimarães – Hume é considerado o mais influente filósofo de língua inglesa. Suas contribuições abrangem, além da filosofia, o conjunto das ciências humanas (política, história, economia, demografia, sociologia, psicologia) que, em seu tempo, reunia-se sob o título de “filosofia moral”.
A importância do pensamento de Hume para a filosofia é inestimável. Seja pela formulação inovadora dos problemas filosóficos, seja pela plausibilidade da solução proposta, suas contribuições repercutem até os dias atuais. Hume estabeleceu a distinção entre verdades analíticas e sintéticas. Ele formulou o problema da indução, que é matéria de intenso debate na epistemologia e na metafísica: existem conexões necessárias entre os objetos? Ou seja, existem causas reais? Podemos conhecê-las? Ou as causas reduzem-se a regularidades empíricas? Acusou a existência da falácia naturalista nas teorias morais que não distinguem valores de fatos, enunciados prescritivos de enunciados descritivos. Articulou, em sua abordagem sobre o problema da liberdade, uma solução compatibilista, que procura conciliar liberdade e necessidade, afirmando que as ações livres são causadas por determinações da vontade, e que livres são as ações não coagidas. Na metaética, Hume contribuiu com a teoria segundo a qual juízos morais são expressões de gosto e sentimento emitidas sob um ponto vista geral e desinteressado, constituindo-se, assim, em importante referência para posições não cognitivistas. Embora melhor reconhecido como filósofo da virtude, Hume também inspirou posições consequencialistas e utilitaristas modernas. Finalmente, no Tratado da natureza humana Hume traçou os contornos da psicologia cognitiva, substituindo especulação apriorística pela investigação empírica da mente. E, nos textos posteriores ao Tratado, deu contorno às atuais ciências humanas, tendo sido conhecido, até o século XIX, antes como historiador que como filósofo.

Rejeição ao dogmatismo e superstição
A pergunta sobre a natureza da filosofia é central para Hume. A “nova cena de pensamento” que se lhe descortina em 1729, e que resultará na escrita do Tratado da natureza humana (1739-40), tem uma tradução possível na proposta naturalista de sua filosofia, que pode ser entendida em vários sentidos. Tanto o Tratado quanto a Investigação sobre o entendimento humano (1748) iniciam-se com essa pergunta e se desenvolvem como respostas a ela. No Resumo do tratado, Hume caracteriza sua filosofia como extremamente cética e, na Uma investigação acerca dos princípios da moral (1751), dá-lhe o título de ceticismo mitigado. Este ceticismo rejeita ideais racionalistas de explicação, com seus parâmetros de certeza e de evidência, mas não ameaça a aquisição do conhecimento. Ao contrário, ao refletir a vida comum e rejeitar o dogmatismo e a superstição, ele favorece a “ciência do homem” e chega mesmo a coincidir com ela, visto que as leis dessa ciência unificam os fenômenos sem, contudo, expressarem necessidades metafísicas.
Hume adota um naturalismo metodológico e filosófico, ao defender uma metodologia relacionada à das ciências naturais e buscar explicações livres de princípios sobrenaturais. Com efeito, a ciência da natureza humana, a teoria dos sentimentos morais, a epistemologia empirista e o próprio ceticismo dependem do abandono de pressupostos religiosos e teológicos. Podemos ainda dizer que Hume adota um naturalismo metafísico, se consideramos que, para ele, nada existe senão a natureza, entendida como aquilo que se dá à nossa experiência. Mas, observe, esse não é necessariamente um naturalismo normativo: para Hume, natural nem sempre equivale ao que é bom ou verdadeiro.

Base sentimental
Quanto aos resultados teóricos da “nova cena de pensamento”, talvez a maior contribuição de Hume esteja na intuição de que as paixões estão na origem de todos os nossos juízos e de que a moral, a estética e mesmo o conhecimento possuem uma base sentimental. Hume desenvolve esta intuição numa complexa psicologia das relações entre impressões e ideias, que relaciona a razão às paixões e propõe um novo conceito de sentimento, possuidor de elementos cognitivos e não cognitivos, dotando-o de ampla influência e autoridade. A análise da inferência causal confere ao sentimento um status epistemológico – a conexão necessária entre causa e efeito consiste num sentimento de determinação da mente, que concebe com força e vividez a ideia de um (a) quando tem a impressão do (a) outro (a); e crença diferencia-se de mera ficção por um sentimento, ou maneira de concepção, novamente, que é mais vívida e forte, podendo, desse modo, nos determinar e dispor. O juízo moral expressa um sentimento de aprovação de qualidades de caráter úteis ou agradáveis a seu possuidor ou aos demais (por qualidades desagradáveis ou prejudiciais, sentimos desaprovação). O juízo estético de gosto expressa uma emoção agradável, ao mesmo tempo em que estabelece uma determinação teórica acerca do belo, estabelecendo um padrão compartilhado. Em uma palavra, ceticismo, naturalismo e sentimentalismo talvez resumam as intenções e principais contribuições filosóficas de Hume.

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