Edição 366 | 20 Junho 2011

A delicada ligação entre opção religiosa e ascensão socioeconômica

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Graziela Wolfart



IHU On-Line - Como conciliar as marcas históricas da Igreja com o momento social e econômico vivido pelos brasileiros atualmente?

Joel Portella Amado - Com uma forte capacidade de distinguir o que é histórico do que é dado de fé. Esta distinção existe, embora nem sempre seja fácil de encontrar. Quando surgem momentos históricos como o atual, em que as transformações são demasiado profundas a ponto de usarmos a expressão mudança de época, torna-se aguda a questão da distinção entre o que faz parte irrenunciável da Fé Cristã e o que, por outro lado, é expressão cultural desta mesma fé. A atual mudança de época tem uma característica da qual não podemos nos esquecer. Ela aconteceu em um período muito curto. Não se passaram muitas gerações para que as transformações acontecessem. Podemos mesmo dizer que tudo ocorreu dentro do tempo de uma geração. Hoje, temos pessoas que viveram o pré-concílio, atravessaram os tempos de forte compromisso sociotransformador e agora se veem diante dos desafios de um cristianismo vivenciado de modo bem distinto. Três concretizações da fé em muito pouco tempo. Dentre estas condições irrenunciáveis ao cristianismo, sabemos que a sensibilidade aos pobres, aos excluídos, é parte integrante da fé e não apenas expressão cultural. A Conferência de Aparecida assim o confirmou, destacando que a opção preferencial pelos pobres faz parte integrante daquele que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza. O que pode ocorrer é a recompreensão desta opção na hora de concretizá-la. Este é um desafio aberto à história e à vida das comunidades.

IHU On-Line - Como a questão do consumismo, marca da chamada nova classe média, se relaciona com a dimensão comunitária essencial à vivência da fé?

Joel Portella Amado - Em princípio, como dois pontos não conciliáveis. O consumismo, com todos os demais “ismos” a ele ligados, fere diretamente a experiência cristã, atingindo o ser humano naquilo que ela tem de mais sublime: a articulação entre o encontro com Deus e o encontro com o irmão. O consumismo, bem sabemos, substitui a relação com o outro pela relação com os bens, no sentido de satisfazer o próprio eu. O encontro com o irmão só ocorre quando efetivamente acontecem alteridade e gratuidade e estas só podem ser experimentadas quando, de fato, acontece vida comunitária. Conheço algumas experiências de comunidade em classe média, onde exatamente a vida de comunidade se tornou fonte de “recompreensão” da vida global, com forte crítica ao consumismo. Em um dos casos, chamou bastante minha atenção a preocupação quanto a educar os filhos para um mundo que não seja consumista. Os resultados, até o momento, têm sido interessantes. Os pais reconfiguraram as opções de trabalho, fazendo-se mais presentes junto aos filhos. As famílias têm o compromisso de participar em projetos assistenciais e ecológicos. Neste momento, estas famílias se aproximam de um período de teste para esta opção, pois os filhos estão ingressando na adolescência e vão sofrer a pressão do consumismo. O futuro haverá de nos mostrar os resultados.

IHU On-Line - Como a chamada nova classe média pode viver hoje a espiritualidade cristã?

Joel Portella Amado - A espiritualidade cristã é sempre marcada por alteridade e gratuidade. Podem diversificar as concretizações histórico-culturais. Permanecem, contudo, estas duas características como indispensáveis. Sem o reconhecimento do outro como efetivamente outro, capaz de me interpelar e me fazer rever meus rumos, não posso dizer que realmente me encontro no caminho do Deus revelado por Jesus Cristo. Se este Deus é um contínuo mostrar-se e esconder-se, de modo a não ser dominado nem manipulado, mas estabelecer relacionamento, não há como pensar em qualquer tipo de espiritualidade, seja para quem for, se não houver esta capacidade de se abrir ao outro e se abrir de modo o mais gratuito possível. Neste sentido, penso que um bom caminho espiritual para as chamadas novas classes médias passa não apenas por relações fraternas entre os membros das comunidades, mas também pelo contato muito direto com os crucificados da terra e, pensando ecologicamente, com a Terra crucificada. Os cristãos, diz S. Paulo, seguem a Cristo e Cristo Crucificado, loucura e escândalo. Seguir a Cristo Crucificado implica necessariamente sensibilidade para com os crucificados. É, portanto, impossível viver uma espiritualidade fecunda sem abertura aos pobres e sofredores. Repito que pode variar o tipo de sofrimento e o modo ele é enfrentado. Não pode, todavia, carecer de solidariedade.

IHU On-Line - Considerando a recente ascensão econômica do extrato social brasileiro em questão, o senhor vislumbra que cenário religioso?

Joel Portella Amado - Eu vejo o cenário religioso brasileiro como desafiador. Digo isto não apenas por causa da ascensão econômica que deu origem a esta conversa e que fará repensar muitas formas de compreensão do Evangelho. Refiro-me também a diversos outros aspectos que estão interagindo com esta realidade. A mencionada mudança de época deslocou uma série de fatores que, até não muito tempo, permitiam a transmissão e a vivência da fé. Pensemos, por exemplo, na instituição familiar, com todas as transformações pelas quais tem passado. Pensemos no ecumenismo e no diálogo inter-religioso. Pensemos na incapacidade de determinadas estruturas pastorais não mais corresponderem às expectativas das pessoas. Imaginemos os novos sentidos para o protagonismo do laicato e mesmo a concretização da identidade dos ministros ordenados. Em cada um destes itens, poderíamos permanecer longo tempo refletindo. No momento, porém, importa reconhecer que o cenário é complexo, que as certezas estão débeis e que um novo momento histórico deve ser buscado e construído. Às religiões cabe o importante papel de contribuir para que este novo seja um salto qualitativo diante do que experimentamos com a época histórica que talvez esteja indo embora. Digo isto porque, se as religiões se mantiverem numa perspectiva de aguda modernidade, ou seja, afirmando-se individualmente, o cenário religioso será de competição e concorrência por clientela. Se, ao invés, encontrarem, ainda que gradativamente, espaço para o diálogo e o convívio fraterno, em busca do bem comum, a contribuição poderá ser grande.

IHU On-Line - Que caminhos religiosos o senhor acredita que devem tomar os brasileiros movidos pela sede do consumo? Que maneiras de buscar o sagrado eles podem optar e como a Igreja Católica deve agir nesse sentido?

Joel Portella Amado - Por certo, afastar-se deste caminho consumista. O problema é que só largamos algo quando temos outro maior. Em nossos dias, o consumismo é a forma concreta, palpável, das metas e ideais que marcam a vida de boa parcela de nossa gente. A descrença diante de metas no médio e longo prazo, a tão falada crise das utopias, este processo, enfim, acabou por imanentizar por demais os sonhos e as causas. Tudo tende a acontecer dentro da história, em um prazo que não pode ultrapassar o aqui e o agora. Consequentemente, o único caminho para interpelar esta realidade é o da experiência concreta de fraternidade e de solidariedade, já mencionados nas questões anteriores. A fraternidade deve ser experimentada através da vida comunitária e a solidariedade, através do compromisso com os sofridos. A vida em comunidade implica possibilitar e acompanhar o fortalecimento da rede de pequenas comunidades. A solidariedade implica não deixar que os excluídos permaneçam como tal. Implica trazê-los aos primeiros lugares da agenda pastoral, com ações bem concretas. Pode ocorrer que tanto no aspecto da fraternidade quanto – mais ainda – no da solidariedade, seja necessário dar passos que alguns considerariam como retrocesso. Não penso, contudo, que seja retrocesso. É muito mais concretização atual dos valores eternos do Evangelho.

IHU On-Line - Como a Igreja Católica pretende convencer seus fiéis de que o dinheiro não é importante se ela ostenta tanta riqueza?

Joel Portella Amado - Só existe um caminho para o convencimento, seja ele em que esfera for. Trata-se do testemunho. Foi por isso que eu me referi, na questão anterior, a trazer a solidariedade para os primeiros lugares da agenda pastoral. O testemunho sempre fez parte da experiência cristã. Nestes tempos em que muito se fala, mas pouco se diz, nestes tempos de crise dos grandes sentidos e discursos, o testemunho adquire um papel ainda mais importante. Assim como as pessoas tendem a se mobilizar em torno de uma pessoa famosa, de um artista, tendem igualmente a se sensibilizar diante da dinâmica testemunhal, que é tanto individual quanto comunitária. No campo individual, o testemunho se destaca porque estamos passando por um momento histórico de forte individualização. As instituições não são capazes de neutralizar ou se sobrepor aos atos individuais. Assim, o bem ou o mal que um cristão ou uma cristã vier a fazer terá a força de confirmar ou não sua opção pelo Reino de Deus. O importante é reconhecer que também as instituições, mesmo estando num período de baixa cotação enquanto instituições, também são chamadas a dar o mesmo testemunho, assumindo, em suas opções, a simplicidade, o despojamento, o espírito de serviço e o diálogo com o diferente, entre outros aspectos.
Com relação à velha questão da riqueza da Igreja, convém avaliar do que estaríamos efetivamente falando. É provável que a fala esteja se referindo a determinados bens culturais que fazem parte do patrimônio da humanidade e que estão sob os cuidados da Igreja. É possível que esteja também se referindo a testemunhos que, de fato, precisariam ser revistos. Seja qual for o caso, penso que é importante olhar também para diversas situações em que a Igreja não ostenta riqueza. Conheço boa parte da Igreja do Brasil. Tenho partilhado da simplicidade e da solidariedade de tantos católicos, que aprendi a não me preocupar tanto com o outro lado da moeda. Preocupo-me, por certo, com a presença transconfessional de um certo tipo de pensamento da prosperidade que relaciona sucesso, especialmente financeiro, com a ação de Deus. Nestes casos, de fato, só mesmo o que Jesus mencionou em Mc 9,29.

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