Edição 360 | 09 Mai 2011

“Se a Doutrina Social da Igreja quiser permanecer viva, precisa se renovar continuamente”

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Moisés Sbardelotto

IHU On-Line – Na Mater et Magistra, João XXIII nos propôs um “método” para a concretização dos “princípios e [das] diretrizes sociais”: ver, julgar e agir (n. 235). Qual é o significado mais profundo dessa tríade?

Ildefonso Camacho –


IHU On-Line – Aproveitando a data festiva da Mater et Magistra, como o senhor avalia a figura de João XXIII em seu contexto histórico? Qual é o significado de seu papado e de seu legado?

Ildefonso Camacho –
Foi um papa que sintonizou profundamente com a época em que lhe coube viver. Nesse sentido, converteu-se em símbolo de uma igreja que buscava um reencontro com a sociedade moderna, da qual tanto havia se afastado desde o século XVIII pelo menos. Por isso, canalizou muitas expectativas que haviam surgido dentro da própria Igreja Católica ao longo do século XX, mas também despertou não poucas ilusões fora dela, que começavam a ver aí sintomas de aproximação.

Essa atitude chegou a se plasmar na convocatória de um Concílio ecumênico, algo que seus dois imediatos predecessores, Pio XI e Pio XII, não conseguiram, dos quais, nos estudos históricos, consta que o propuseram em algum momento. Claro que o Concílio que João XXIII pensou, acabaria sendo muito diferente do que seus antecessores idealizaram. Porque João XXIII, que começou falando de um Concílio cuja principal tarefa seria a união dos cristãos, foi logo o reconduzindo em torno àquela palavra italiana que se tornou universal: aggiornamento. Com ela, o pontífice queria expressar a necessidade, muito aguda para ele, de que a Igreja se colocasse em dia, se não quisesse perder o trem da história. O eco que o Concílio teve, mostra que João XXIII não estava equivocado em suas pretensões.


IHU On-Line – Qual a sua análise da atual doutrina social da Igreja desde a publicação da Mater et Magistra até à recente encíclica Caritas in Veritate (2009), de Bento XVI, que também se ocupa desse tema? Que aspectos foram corrigidos, aprofundados ou superados desde então? Que outras questões também mereceriam uma maior atenção no contexto da sociedade contemporânea?

Ildefonso Camacho –
Antes de tudo, e levando em conta a importância que antes atribuíamos ao “ver”, o mundo mudou muito nesses 50 anos que nos separam da Mater et Magistra. A Doutrina Social da Igreja reflete essa mudança: não trata hoje os mesmos temas que em 1961, nem os trata da mesma maneira. Aí radica a riqueza, mas também a limitação da Doutrina Social: se quiser permanecer viva, precisa se renovar continuamente.

Simplificando muito as coisas, dois fatos maiores marcam o nosso mundo com relação ao da Mater et Magistra. O primeiro é o avanço do processo de globalização: é quase tópico dizê-lo, mas não podemos ignorá-lo. João XXIII intuiu que as coisas iriam por aí, mas ainda não podia analisar em detalhe esse processo. Limitou-se a constatar mudanças que apontavam nessa direção e a dar algumas sugestões de fundo. De certo modo, foi profeta...

O segundo fato maior é o avanço da secularização, que modifica o lugar que a Igreja e as religiões em geral ocupam na sociedade. A relevância do religioso decai como fator estruturante da sociedade: a palavra das autoridades religiosas encontra um eco reduzido. A sobrevivência do religioso requer uma forte experiência pessoal e convicções inquebrantáveis: isso se dá em determinados grupos, mas já é mais difícil falar de uma religião dominante que se impõe quase que por osmose. Ao mesmo tempo, observa-se um certo renascer do religioso, mas com uma forte dose de subjetividade e uma grande resistência a se enquadrar em instituições religiosas muito organizadas (como é o caso da Igreja). Evidentemente, esse é um desafio de grande envergadura para a Igreja e para todas as religiões. Bento XVI reflete continuamente essa preocupação em suas intervenções.

Por outra parte, hoje não vivemos aquele ambiente otimista e esperançoso dos anos 1960, a época do Concílio. A recente crise econômica, os contínuos conflitos bélicos, a insegurança crescente (como consequência do terrorismo, porém não só dele...), são alguns fatos dominantes. E vivemos tudo isso a partir de um individualismo que se impõe por toda a parte: passaram os tempos da fé nos grandes projetos coletivos, e refugiamo-nos em um “salve-se quem puder” ou em uma competição selvagem que nos faz sentir “em um mundo sem lar” (para recordar o título de uma obra de Peter Berger, que foi muito lida há uns 30 anos).
Nesse contexto, torna-se difícil manter a esperança, uma virtude tão cristã. Oxalá fôssemos capazes, nós, cristãos, e as pessoas que têm uma fé monoteísta, de despertar e manter algo de esperança em nosso mundo e de comunicá-la aos demais.


IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Ildefonso Camacho –
Para terminar, só gostaria de voltar sobre a pessoa de João XXIII que está na origem desta entrevista. E o faço convidando a nos aproximarmos de sua figura com o desejo de imitar a sua índole. Nem todos nós podemos fazer as mesmas coisas, nem temos a mesma preparação ou os mesmos meios. Mas todos podemos manter essa índole de abertura, de interesse pelos problemas do mundo, de “mão estendida” a tudo o que vai aparecendo de positivo, de diálogo com todas as pessoas de boa vontade. Não esqueçamos que João XXIII foi o primeiro papa a dirigir uma encíclica “a todos as pessoas de boa vontade” [na Pacem in Terris, de 1963].

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