Edição 252 | 31 Março 2008

Leandro Sarmatz

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André Dick

Editoria de Poesia

O poeta e dramaturgo Leandro Sarmatz nasceu em Porto Alegre, em 1973, mas vive em São Paulo, onde trabalha como redator-chefe da revista Vida Simples (Editora Abril). É jornalista e mestre em Letras pela PUCRS. Publicou a peça Mães e sogras, que será encenada este ano na capital paulista e poemas em revistas como Cacto, Inimigo Rumor e Jandira. Sua poesia, especificamente, é uma das mais originais de sua geração, pelo influxo de imagens que costuma trazer. Sem ficar preso a formatos, os versos de Sarmatz têm tamanhos e dicções variadas, utilizando um ritmo polifônico. Vão desde um humor mais mórbido, como no poema “Resíduos” (com seus versos “O pouco que é vida ainda conserva / o muito que é morte e nos reserva, / quase réstia, no pesar do dia / o fim: reconhecimento desta / e de outras mortes, suntuosas”), ou “Sutileza metafísica” (com sua ode à reclusão: “Repara o quanto há de danoso / em cada pensamento e diz: ‘atenção, / para a ironia’ / Como uma espécie / de vigília, vê a rua no fundo / da janela e, tão logo desça à treva, / sai por aí dizendo o quanto a vida  é princípio e fim, pois toda a graça / está no achar-se em meio à perda: / em catar-se na miudeza, na arte / (quase municipal) de recolher-se”), até uma reflexão contundente sobre o holocausto, um tema raro na poesia brasileira. Nesse sentido, Sarmatz emprega imagens que se adequariam à poesia de Celan, mas não costuma fazer rupturas extremas com a sintaxe, certamente porque escreve em outro período e não quer reduzir sua visão a um silêncio verbal já diluído.

Ele, por exemplo, escreve no poema “Logocausto”: “Uma língua de mortos. Idioma anti-segredo, a sibilar no espelho / seu eco de cova no indo-europeu ainda. / Todas aquelas bocas costuradas, milhões de boca e mais nenhuma. / Onde haverá céu para suportar tantas vozes elevadas?”, falando, mais adiante, em “rios-palavras” que fertilizam “campos do idioma”. Em “Ecologia da memória”, por sua vez, escreve: “Dor sentida sem pausa como o ar rarefeito que aqui inspiramos / dor cinzenta e dura que nem conseguimos divisar no sangue / a cura e a doença / a noite e o dia / dor que penetra em cada poro, cova, kadish / que atravessa pulmões, coração, pênis, fígado, cérebro / e devasta os meses / e produz em meio à terra mitigada / uma semente espúria de nascença”. Há, sem dúvida, nessa filosofia sobre a morte, um certo pessimismo corrosivo, contrapondo-se a uma certa mitologia heróica, encontrado, por exemplo, em alguns fragmentos do poema longo em tercetos “Não”: “Basta de Heráclito, querida, / isso já parece familiar: / teus pais, quem sabe, / / ou mesmo os filhos que, / num dia chuvoso, / virão a nós e, conosco, / / servirão de bucha e merda / nesse mundinho hostil / e pobre onde os fizemos; / e os filhos deles, e os filhos / dos filhos, gerações inteiras / copulando e morrendo / / terão seus dias de sol, / suas noites frias e sem berço, / suas cruzadas metafísicas”.

Alguns de seus poemas também tem uma bela musicalidade, como “Anti-Ronsard”: “Flor cásutica, / ocaso em pétala, / fluxo de / linguagem / em outra, espiralada, / flor soturna e baça / - baixa - / na noite mais / decrépita: / / - acolhe-me, ó / tempo / em gesta, / tempo / sem mote, / desbastado em / toda crespa / época / (chamam- / na pétrea)”.

Outra marca de seus poemas é a citação de referências populares e de autores. Alguns deles possuem uma linguagem coloquial, recuperando diálogos de ruas, ou imagens do cotidiano, como em “Abrindo a correspondência”: “As poucas folhagens e arbustos / trespassam a porta da casa: cá dentro, / cá fora. / Uma forma educada / de se quebrar os pratos - / mansa, desentranhada, / pode ser a única que reconhecemos”. Em “SP:”, focaliza a imagem da metrópole paulistana: “Aqui não há inverno. Aqui não há tremor. / O sol se põe logo após o telejornal. / / Impossível uma ode; tampouco elegia. / A vida pulsa mesmo em quem já morre”. No poema “Corpo vivo”, elabora uma tensão vital ao ser humano: “Ao longo das fibras do desejo, pelas cordas / distendidas da energia, neste coroado / corpo desprezado eu beijo a gloriosa / simetria, a purgada carne / extremada e sintética alegria”.

Suas paisagens também não raramente evocam um ambiente europeu – como no poema “Síndrome de Estocolmo”, enviado especialmente à IHU On-Line, que faz parte do seu livro inédito Logocausto –, e uma ironia corrosiva, evidente no outro poema enviado, “Astúcia”, que, no Brasil, parece dialogar com a obra de Sebastião Uchoa Leite (1935-2003).

 

Síndrome de Estocolmo

A luz do sol me dá claustrofobia
         Ingmar Bergman

Arlanda Airport

Porque o branco e o frio tomaram conta
Porque a neve em grossas camadas nos cobriu.

Há gregos, sem dúvida, Hagar o Terrível, árabes:
lívido líquido humano, sangue em profusão.
Desfile imaginário de celebrações passadas.
Um enterro. Uma sombra sem sol. Pernas.

A bagagem poderia ter sido reduzida. Só
memória e silêncio, um mínimo apenas
de conversa. Mas é o oposto. A antítese
de tudo o que é calor, sim, um frio
ardente, abrasador. Mas frio. Mas frio.

Drottnigatan

A mesma cupidez capaz de, aqui e acolá, revelar-nos
a fonte inexeqüível dos mistérios da mercadoria.
A irmã de alguém passeia nua, abaixo de zero uns
20 graus. A velha cidade aparece, e suas muralhas
mal conseguem conter a revoada de salmões.
Parece difícil, no entanto, discursar a respeito
das similitudes entre memória e fato, ficção e olvido,
quando tudo parece vedado em um tupperware
jogado no meio da calçada como uma carniça.

Gamla Stam

Walt Disney, meu caro, você teria amado
tudo isso: casinhas semi-enterradas, ruelas,
beco beco beco.
Mistura improvável de bazar e parque
numa ilha habitada por artesãos hindus,
peruanos cantantes, judeus do leste,
putas da Polônia e sombras mutiladas
da última guerra da Bósnia-Herzegovina.

No apartamento de Strindberg

Aqui viveu, neste elevador subiu
aos céus da arte teatral e desceu
ao inferno da vida comezinha o dramaturgo
August Strindberg, o maioral local.
Aqui gritou.
Aqui escreveu.
Aqui leu Die Fackel, de Karl Kraus.
Mas aqui não há banheiro.
(Tanta merda tinha que dar nisso.)

A grande Estocolmo

É o trem que passa ou a vida?

Num bairro operário

A grande fábrica da Scania simula um cenário
pós alguma coisa em seu caráter eminentemente
industrial.
Vapor desmancha a neve. Aziz vai ao trabalho,
preocupado com o ar e com a Arábia.

Arlanda Airport II

Permanecer
para sempre esquecido
desta terra, deste sangue.

Aprisionar
em algum canto da memória
este lapso, esta carne, este espaço.

 

Astúcia

Perito em mim menos eu mesmo

      não consigo demonstrar esforço:

se fizer o que gosto com desgosto

      é melhor roer meu próprio osso.

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