Edição 251 | 17 Março 2008

Teologia e Literatura: a cena alemã

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Paulo Soethe

O coordenador do PPG em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paulo Soethe, é autor do artigo que segue, sobre teologia e literatura. Graduado em Letras Alemão-Português, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre e doutor em Letras, pela Universidade de São Paulo (USP), o Prof. Dr. Paulo Soethe cursou pós-doutorado na Universidade de Tübingen, na Alemanha.

A presença decisiva da Teologia no mundo acadêmico e intelectual alemão, a despeito da recente e irreversível secularização da sociedade, tem seu fundamento histórico no caráter decisivo que o pensamento e a prática teológicas desempenharam na constituição da identidade cultural e lingüística naquele país. A língua alemã ganha status e legitimidade cultural a partir da tradução da Bíblia por Lutero. A organização da sociedade, da economia, das relações de poder e mesmo a delimitação das grandes unidades administrativas de toda a região ocorrem sob o signo da identidade confessional. Isso envolvia naturalmente longos debates e a busca de fundamentação teológica para as ações. É central a presença da teologia na história das grandes Universidades, seja na matriz luterana, como na pequena Tübingen, onde ninguém menos que Hölderlin, Hegel e Schelling, por exemplo, chegam a dividir o mesmo quarto na moradia estudantil, todos como estudantes de teologia evangélica-luterana, seja em Münster e Regensburg, que agora voltam a estar em evidência, na frente católica.

A Teologia como disciplina acadêmica e universitária de grande importância, se chegou a estar em questão nas décadas mais recentes, já dispunha de tamanha legitimidade e consolidação, que só fez, a partir do desafio, aprimorar ainda mais seus pressupostos metodológicos e epistemológicos, consolidando-se ainda mais, do ponto de vista científico. Com isso, nos debates recentes em face do fenômeno da secularização, ganhou também a reflexão sobre a Teologia da Cultura, e em particular a área de estudos de Teologia e Literatura.

Se vigia até o final do século XIX sobretudo um modelo confrontativo entre estética e religião, em que a autonomia da arte revelava-se incompatível com o rigor e clareza da doutrina, os esforços voltam-se a partir de então para a superação desse modelo e para o destaque do valor heurístico, cognitivo e mesmo espiritual dos textos estéticos para a reflexão e prática teológicas. A obra de um Paul Tillich (1888-1965), apesar da compreensão idealista da cultura (“Religião é a substância da cultura e cultura a forma da religião”), lega, do ponto de vista metodológico, postulados fundamentais, como o da correlação: “A chave para a compreensão teológica de uma criação cultural é seu estilo” (Teologia sistemática). Na tradição católica, até mesmo pela relação menos conflitiva entre arte e doutrina, os esforços de reflexão e diálogo frutificam em obras densas e com grande potencial de aderência, como as de Romano Guardini (1885-1965) e Hans Urs von Balthasar (1905-1988).

Em Guardini, cabe o destaque à compreensão de determinados escritores como profetas, cujas obras ganham status de revelação, por sua força questionadora da nova realidade humana à luz de preocupações existencias profundas. Hölderlin, Dostoiévski e Rilke são objetos de suas grandes obras. Balthasar, de sua parte, em meio à atmosfera do renouveau catholique, preocupa-se de maneira clara com valorizar obras que do ponto de vista temático sirvam doutrinariamente ao cristianismo. Portanto, apesar da grandeza de suas análises, a abordagem e prática que assume excluem boa parte da produção contemporânea, e praticamente não encontram continuidade para além da abrangência datada do contexto cultural católico de sua época.

Nesse contexto, é preciso dizer que o conceito de literatura cristã foi objeto de grandes debates na primeira metade e meados do século XX (com a participação de escritores importantes como Elisabeth Langgässer ou mesmo Heinrich Böll, em frentes diversas), mas deixou de ser uma questão produtiva a partir dos anos 1960. Tenho conhecimento de que o debate voltará à cena em breve, já que uma nova geração de teólogos empenha-se por revalorizar o conceito e recolocá-lo em discussão.

A partir dos anos 1970, estabelece-se o que Georg Langenhorst (2005, p. 49 ss.) chama de paradigma do diálogo. Esse paradigma recebe fortes impulsos das novas necessidades da Didática da Religião, disciplina importantíssima na Alemanha, pela oferta regular de aulas confessionais católicas e evangélicas em todas as escolas. Mas ganha autonomia também na área de Teologia em se mesma. Esse paradigma caracteriza-se por considerar a literatura em sua multiplicidade de realização, o que implica respeitar sua especificidade e autonomia, sem cooptá-la ou instrumentalizá-la para fins religiosos ou teológicos. Além disso, caracteriza-se também por estabelecer com a literatura, fonte de desafios e questionamentos, um diálogo criativo e atento sobretudo aos processos de realização poética, que não se permite desconsiderar a unidade indissolúvel entre forma e conteúdo.

Destaca-se aqui no meio evangélico-luterano o nome de Dorothee Sölle (com seus conceitos de realização e, posteriormente, com sua prática de uma teopoesia). No meio católico, cabe destaque à obra de Dietmar Mieth, que publica em 1976 dois grandes livros, com destaque a relação entre ética e estética em nossa área de estudos: Dichtung, Glaube und Moral. Studien zur Begründund einer narrativen Ethik e Epik und Ethik. Eine theologisch-ethische Interpretation der Josephsromane Thomas Manns. Suas considerações baseiam-se na valorização do caráter único da ficção como campo que possibilita a “totalidade da experiência sensitiva”. A ficção literária, segundo Mieth, oferece a possibilidade de se abordar projetos de vida éticos individuais em seu todo, pela figuração da vida das personagens e relações entre elas, mas sem risco de incidência em extrapolações indevidas de casos particulares, dado que o texto literário ficcional conta, de saída, com validade e legitimidade gerais. A consideração da literatura como objeto de reflexão ético-teológica coloca em primeiro plano o interesse pela gênese estrutural da pessoa em geral, sem tanto destaque à obrigatoriedade e validade de preceitos isolados e descontextualizados. A literatura tem, com isso, a força para constituir modelos éticos, à medida que a ética comportamental ganha plasticidade, mostrando-se capaz de contemplar a complexidade e multiplicidade da vida.

Por fim, o pensador com maior produção e adesão na área de Teologia e Literatura, colega de Dietmar Mieth na Universidade de Tübingen, é Karl-Josef Kuschel. Kuschel inicia sua produção na esteira das obras de Hans Küng e Walter Jens. O teólogo e o literato desenvolveram diversas atividades conjuntas, publicaram juntos um livro sobre escritores (Advogados da humanidade, 1989) e conclamaram em 1984 um simpósio em Tübingen, que se pode considerar o evento de fundação dos Estudos de Teologia e Literatura na Alemanha, enquanto área acadêmica estruturada e integrada. As publicações de Kuschel concentram-se na reflexão sobre uma cristopoética e uma teopoética na obra de grandes autores da literatura universal, sob um método confrontativo que analisa a resposta dos escritores ao fato da religião e das questões suscitadas pela fé. O advento da modernidade e seu espírito de liberdade reflexiva, o postulado de uma literatura universal, baseada no amplo reconhecimento da obra de grandes escritores, e a reflexão sobre literatura a partir de um interesse pautado pelo diálogo inter-religioso são as marcas centrais da produção de Kuschel. Um de seus grandes méritos é haver agregado em torno de sua pessoa uma geração de jovens teólogos formados nessa área, que a consolidaram em uma renomada série junto à editora Matthias Grünewald intitulada justamente Teologia e Literatura, com 13 títulos publicados. Poderíamos chamar o grupo “Círculo de Hechingen”, já que ele vem se reunindo há vários anos nessa cidade para simpósios semestrais. Destaque acadêmico encontram nesse Círculo especialmente Christoph Gellner (Universidade de Lucerna) e Georg Langenhorst (Universidade de Augsburg).

Este último, Georg Langenhorst, destaca-se certamente como liderança na área acadêmica e sucessor de Kuschel na cena alemã. Com vasta produção, publicou recentemente o já mencionado manual Theologie und Literatur – ein Handbuch. Havia organizado em 2004 importante congresso internacional na área na cidade de Würzburg, o que resultou em publicação de uma coletânea com os trabalhos, também em 2005. Langenhorst, em seu programático manual, despede-se do paradigma de um diálogo entre Teologia e Literatura. Decepcionado pela ausência de uma interlocução efetiva com escritores e estudiosos de Literatura, entende ser mais produtivo, em seu contexto, assumir que a discussão da área se dá mesmo internamente na Teologia, e procura portanto rever pressupostos teóricos cultivados até o momento. Aponta em seu manual a necessidade de internacionalização da cena alemã, e talvez aí se surpreenda com o envolvimento muito maior de colegas da áreas de Letras em outras realidades, como a latino-americana, que agora se consolida e avança, com a Fundação da Alalite. A esposa de Georg Langenhorst, Annegret Langenhorst, é teóloga e hispanista, autora de um dos livros na série organizada por Kuschel, sob o título O Deus dos europeus e a(s) história(s) dos outros. A cristianização da América na literatura contemporânea da América Hispânica (1996).

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