Edição 251 | 17 Março 2008

“Quase todas as grandes obras da literatura mundial têm dimensão religiosa”

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Graziela Wolfart

Autor do Manual de teologia e literatura, o alemão Georg Langenhorst não acredita num diálogo entre as duas áreas, mas em encontros excitantes e frutíferos

Na visão do teólogo alemão Georg Langenhorst, “a literatura escreve contra o esquecimento, fornece modelos de vida exitosa, serve para a auto-reflexão e para um olhar em direção a uma vida melhor, tanto para indivíduos como para comunidades”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele fala sobre essa complexa relação e afirma que “o olhar sobre a literatura pode possibilitar uma visão mais livre sobre o modo como a religião está hoje ancorada na vida”. Professor na Faculdade de teologia católica da Universidade de Augsburg, Alemanha, Langenhorst é autor de diversas publicações, especialmente sobre a relação entre teologia e literatura. Aqui, citamos alguns dos seus livros: Gedichte zur Bibel (Poemas da Bíblia),(München: Kösel-Verlag, 2001); Gedichte zur Gottesfrage (Poemas à pergunta de Deus), (München: Kösel-Verlag, 2003); e seu fundamental Manual de “teologia e literatura”, publicado em alemão, sob o título Theologie und Literatur. Ein Handbuch (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2005). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a importância de relacionar teologia e literatura em nossa sociedade, marcada pela secularização?
Georg Langenhorst
- No contexto das culturas européias contemporâneas, a teologia ainda é pouco percebida. Os teólogos não desempenham um destacado papel, nem no discurso intelectual, nem nos folhetins, nem na mídia. As igrejas perderam muito de sua força formadora de cultura. Este retrocesso, no entanto, faz com que nessas culturas cresça um novo interesse por religião, fora das igrejas e independentemente delas. Os artistas não precisam mais temer, como outrora, serem isolados e funcionalizados pelas igrejas. Precisamente na literatura de língua alemã, percebe-se uma nova desenvoltura em questões de religião. Em romances, peças teatrais e poesias, existe uma rica, variegada e desafiadora ocupação com religião, confissão ou fé em Deus. Assim, o olhar sobre a literatura pode possibilitar uma visão mais livre sobre o modo como a religião está hoje ancorada na vida.

IHU On-Line - Em que medida o pensamento e a prática teológicas contribuem para a constituição da identidade cultural e lingüística de uma sociedade?
Georg Langenhorst
- A identidade de qualquer sociedade e de qualquer estado é estruturalmente co-determinada pelo fator religioso – seja no apelo à determinada confissão, seja em miscigenações pós-modernas, ou em sua recusa. A Europa está profundamente marcada pelo cristianismo, mesmo que muitas pessoas já não pratiquem o “ser cristão”. A defesa do direito, da moral e da ética, o ritmar do ciclo anual, as festas e os rituais são e permanecem cristãos, mesmo que muitos já não o saibam. No momento, a teologia só contribui para tal fim com bem poucos elementos criativos. Há algumas décadas, sobretudo o Islã introduz um novo elemento religioso. Não é possível, ainda hoje, fazer valer ambas as tradições lado a lado, seja por interpenetração, por estimulação recíproca ou por miscigenação.

IHU On-Line - Qual a contribuição da tradução da Bíblia feita por Lutero para a língua e a literatura alemã? 
Georg Langenhorst
- Sem a tradução da Bíblia por Lutero a língua alemã não poderia ter se desenvolvido e se imposto da mesma forma como um idioma nobre. Até hoje esta tradução de Lutero é valorizada em amplos círculos – também no âmbito do catolicismo - como documento lingüístico e como fonte espiritual.

IHU On-Line - Quem são os grandes nomes referenciais, quando falamos de teologia e literatura?
Georg Langenhorst
- A disciplina acadêmica de “Teologia e Literatura” foi determinantemente inspirada pelo teólogo e filósofo evangélico Paul Tillich.  Embora ele mesmo não tenha lecionado esta disciplina, sua abertura em cultura e teologia facilitou o surgimento da área de “Literatura e Teologia”. A partir de Tillich, formou-se uma tradição específica nos EUA e na Inglaterra. Nathan A. Scott e Amos Niven Wilder,  e mais tarde David Jasper,  Terry Wright e outros, estabeleceram ali uma tradição fortemente direcionada para a filosofia e a teoria literária. Na Alemanha, sempre houve um interesse mais intenso pela própria literatura e seu significado teológico. Foram seus precursores Hans Urs von Balthasar  e Romano Guardini, motivados por Tillich, surgiram, principalmente, do lado evangélico, Dorothee Sölle  e, do lado católico, Karl-Josef Kuschel como protagonistas da pesquisa sistemática. Sobretudo Kuschel é considerado “patrono acadêmico” da disciplina de “Teologia e Literatura.

IHU On-Line - Quais as implicações em considerar a literatura como objeto de reflexão ético-teológica?
Georg Langenhorst
- Na perspectiva ético-teológica, a literatura pode ter diversas funções. O aumento do valor ético da estética talvez seja pelo fato de expor, mais claramente do que ocorreria através de outras formas, a realidade no contexto da ficção. Além disso, a literatura tem a chance de apresentar visões, ou o possível, o utópico – que são importantes fontes de energia ética. A literatura escreve contra o esquecimento, fornece modelos de vida exitosa, serve para a auto-reflexão e para um olhar em direção a uma vida melhor, tanto para indivíduos quanto para comunidades.

IHU On-Line - De que modo a religião e a fé aparecem nos grandes clássicos da literatura universal? O senhor pode dar exemplos?
Georg Langenhorst
- Quase todas as grandes obras da literatura mundial têm dimensão religiosa. Permita-me mencionar exemplos da literatura de língua alemã. O mundo e a obra dos prêmios Nobel de literatura de língua alemã são impregnadas por uma coloração religiosa. Hermann Hesse  foi filho de um Pastor pietista. A controvérsia com a tradição evangélica perpassa sua obra, de Unterm Rad [Sob a roda] até Steppenwolf [O lobo das estepes]. Em Siddharta, ele conecta concepções cristãs e budistas. Nelly Sachs,  a lírica judaica, escreveu poesias caracterizando, sobretudo, o holocausto e a sobrevivência como judia após essa catástrofe. Em sua obra, são repetidamente invocadas, como focos orientadores, figuras bíblicas e temas do Antigo e do Novo Testamento. As obras de Heinrich Böll  e de Günter Grass  se desencadeiam principalmente nas cidades de cunho católico que são Colônia e Danzig. Sem uma análise das numerosas alusões ao ambiente de cunho católico, os romances destes dois autores seriam quase incompreensíveis.

IHU On-Line - Como falar de literatura e teologia considerando o avanço do diálogo inter-religioso?
Georg Langenhorst
- A disciplina de “Teologia e literatura” se abre sempre mais em duas direções: é cada vez mais superada a concentração sobre a respectiva literatura nacional – havendo uma abertura para a literatura mundial. Porém, sempre mais é superada a pura concentração no judaísmo e no cristianismo como grandezas orientadoras no âmbito da teologia. Ou seja, há uma abertura para as religiões mundiais. É excitante ver como, por exemplo, o Islã e o Budismo se tornam temas literários, configurando-se literariamente de modo bem diverso do que, por exemplo, o cristianismo.

IHU On-Line - Quais são os principais pontos do seu “Manual de Teologia e Literatura”? Podemos mesmo estabelecer um diálogo entre estas duas áreas?
Georg Langenhorst
- Meu Manual de teologia e literatura delineia a história da pesquisa desta disciplina acadêmica. Construída cronológica, estrutural e tematicamente, ela se concentra, em primeira linha, no desenvolvimento existente no âmbito do idioma alemão. Tendências internacionais sempre são, todavia, pelo menos mencionadas. Podemos falar de um “Diálogo entre Teologia e Literatura”? Não creio que isso tenha sentido. Os participantes diferenciados de tais encontros têm expectativas bem diversificadas. Os teólogos utilizam a literatura principalmente para uma auto-reflexão crítica, para a sensibilização lingüística e para a inclusão de textos literários no contexto catequético. Os cientistas literários estão à procura do saber religioso, como, por exemplo, o estudo da cultura bíblica, informações sobre a história da Igreja, ou sobre liturgia e religiosidade popular, para melhor poder entender e interpretar determinados textos. Os próprios escritores estão freqüentemente interessados por questões e impulsos existenciais. Ante tão diversificadas expectativas, não é possível um “diálogo” específico, porém certamente encontros muito excitantes e frutíferos. Com o conceito “diálogo” só se onera tais encontros e se despertam falsas e sempre novamente decepcionantes expectativas.

IHU On-Line - Como se estabelece a relação entre teologia e literatura na América Latina?
Georg Langenhorst
- Existe uma grande sociedade internacional que se dedica ao encontro de literatura e religião: a International Society for Religion, Literature and Culture (ISRLC). Aqui, se conectam muitas redes de pesquisas internacionais. Infelizmente, a temática central de “teologia e literatura” está nela desempenhando um papel cada vez menor. Na Alemanha, há neste campo um bom número de pesquisadores que se encontram e intercambiam regularmente. Que bom que agora também haja tal rede na América Latina, a Alalite. Nela, já há alguns anos, estão sendo conectados esforços existentes em torno de teologia e literatura, e vai se construindo uma troca desafiadora entre pesquisadores de diversas faculdades e países. Estou certo de que, em breve, hão de se formar contatos frutíferos através dos continentes. A união entre “teologia e literatura” poderá, então, conduzir a um palpitante diálogo intercultural entre a América Latina, a América do Norte e a Europa.

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