Edição 251 | 17 Março 2008

Um mergulho na narrativa bíblica

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Graziela Wolfart

Para o especialista na narrativa dos textos bíblicos Robert Alter, a erudição levantou graves questões sobre a confiabilidade da Bíblia como relato histórico

Robert Alter, autor de A arte na narrativa bíblica, constata: “a Bíblia nos dá muitas representações penetrantes da natureza humana, da família, do domínio da política e muito mais, o que ainda é relevante para nossas vidas individuais e coletivas”. E, sobre a atualidade da Bíblia, ele é enfático: “os insights da literatura e de outras artes permanecem frescos e relevantes, mesmo depois de dois milênios e meio”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele fala sobre as características que marcam os textos e os diálogos da Bíblia Sagrada e ressalta a importância das convenções literárias dos textos antigos para compreendermos mais nitidamente o que se passa neles. Um dos principais críticos literários americanos, Robert Alter é professor da Universidade Berkeley, nos EUA. Entre seus livros publicados em português, citamos Anjos necessários: tradição e modernidade em Kafka, Benjamin e Scholem (Rio de Janeiro: Imago, 1992); Em espelho crítico  (São Paulo: Perspectiva, 1998), e, claro, A arte da narrativa bíblica (São Paulo: Companhia das Letras, 2007). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que sentido podemos comparar as narrativas bíblicas com os grandes clássicos da literatura?
Robert Alter
- As narrativas bíblicas me parecem plenamente comparáveis aos grandes clássicos da literatura, antigos e modernos. Elas refletem um senso insidioso de estrutura narrativa e de uso e sofisticados estilos de prosa. Elas nos dão vigorosas representações de caráter, freqüentemente com grande profundidade psicológica. Como Erich Auerbach  argumentou muito tempo atrás, os personagens bíblicos desenvolvem-se no tempo, diferente dos personagens homéricos que são imutáveis, e isso os torna mais próximos dos personagens na grande tradição realística do romance.

IHU On-Line - Quais elementos artísticos e narrativos são mais comuns nos livros bíblicos? Em que medida eles enriquecem os textos no sentido literário?
Robert Alter
- Se eu tivesse que escolher um único elemento artístico que é manifestado de diferentes maneiras através da Bíblia, seria o uso da repetição com significante diferença. Isso se vê na poesia, onde o verso é construído sobre um princípio que parece com sinonimidade entre duas metades paralelas do verso, mas onde, na verdade, o desenvolvimento quase sempre toma lugar – aumento, intensificação, focalização, concretização do material, da primeira metade do verso na segunda. Nas narrativas, o tempo todo frases e sentenças inteiras são repetidas, quer por diferentes personagens, quer por um personagem ou por um narrador. Mas, na vasta maioria dos casos, existem pequenas mudanças abruptas da repetição literal: itens são substituídos ou apagados, novos itens adicionados, a ordem dos termos mudada. E essas mudanças abruptas do literal são quase sempre pontos onde um novo sentido é revelado. No nível do argumento (mote), geralmente parece como se a mesma história estivesse sendo contada sobre personagens diferentes, mas um exame cuidadoso mostra que elementos do argumento compartilhado são modificados para mostrar-nos algo específico a respeito do personagem cuja história está sendo narrada.

IHU On-Line - Como a compreensão da composição literária da Bíblia facilita na interpretação do sentido dos relatos bíblicos?
Robert Alter
- Qualquer escritor literário trabalha com um conjunto complexo de convenções e técnicas que são compreendidas geralmente pelos leitores porque são automáticos na cultura. O problema com a Bíblia é que, ao longo dos séculos, conforme esses textos são lidos estritamente em termos teológicos, perdemos as chaves para essas convenções. Na tentativa de recuperar os princípios artísticos com os quais os antigos escritores hebreus compuseram seus trabalhos, podemos ver mais plenamente o que está acontecendo nas histórias – quais são as implicações de uma inserção particular de diálogo, da recorrência de um tema, de um paralelo entre dois episódios etc.

IHU On-Line - Na sua opinião, por que os textos da Bíblia são escritos em prosa, e não em verso? Qual a razão de ter tantos diálogos nos relatos?
Robert Alter
- A prosa é, para começar, o sinal do literário em contraposição à composição oral – uma significativa mudança no mundo antigo. A poesia é literalmente memorável, prestando-se à memorização, considerando que a prosa tem uma flexibilidade e nuance que é um pouco diferente. Eu também assino embaixo da explicação proposta por estudiosos de que os escritores hebreus quiseram diferenciar seu trabalho dos épicos poéticos amarrados em mitologia pagã das culturas vizinhas. O diálogo é extremamente proeminente nessas narrativas em prosa. Por isso, em parte, foi uma cultura que sublinhou a importância da linguagem e como o uso e a manipulação da linguagem têm conseqüências práticas. É também uma tradição narrativa que destaca a interação de figuras individualizadas falando entre si e respondendo umas às outras. Em Homero, existem grandes, comoventes discursos (falas), mas são falas, e não exibem o notável dar e receber do diálogo que se encontra na Bíblia hebraica.

IHU On-Line - Qual é o grau de confiabilidade da Bíblia enquanto relato histórico? Enquanto texto literário, o senhor considera-a uma obra coesa ou contraditória?
Robert Alter
- A erudição levantou graves questões sobre a confiabilidade da Bíblia como relato histórico, e os registros arqueológicos muitas vezes não confirmam o que encontramos na Bíblia. Mas isso não compromete a autoridade da Bíblia como coleção de trabalhos literários. As narrativas, para usar uma distinção proposta por Hans Frei,  são “como-história” em vez de rigorosamente históricas, e isso deve ser suficiente para nós, leitores. Não diria que a Bíblia é um trabalho coerente por que é, além de tudo, uma antologia histórica de escritos hebreus abrangendo quase 900 anos e que, portanto, reflete os pontos de vista e agendas de muitos escritores diferentes que freqüentemente discordam entre si. A heterogeneidade acrescenta interesse a ela, na minha opinião.

IHU On-Line - Como entender a atualidade da Bíblia? O que explica o interesse do leitor contemporâneo em revisitar textos da cultura ocidental de tantos séculos atrás?
Robert Alter
- Acho que a grande literatura jamais fica datada. Édipo Rei ainda é um persuasivo drama sobre o fútil esforço humano para escapar da necessidade do destino, mesmo que não partilhemos as idéias de Sófocles a respeito de oráculos e deuses. A Bíblia nos dá muitas representações penetrantes da natureza humana, a família, o domínio da política e muito mais (eu mencionaria as histórias de Jacó e José e seus irmãos e a de Davi como exemplos especialmente poderosos), que ainda são relevantes para nossas vidas individuais e coletivas. Se você já teve um irmão, a comovente história da alienação de José e seus irmãos e então, após vários anos de separação, o grande ápice de revelação, “Eu sou seu irmão José”, tocou você. Faria clamor semelhante para a poesia bíblica – os Salmos, Jó, os Profetas. No que concerne à tecnologia, novos desenvolvimentos devem fazer dos velhos obsoletos, mas os insights da literatura e de outras artes permanecem frescos e relevantes, mesmo depois de dois milênios e meio.

IHU On-Line - Qual é a especificidade do Gênesis enquanto obra literária?
Robert Alter
- Não estou certo de que seja possível reduzir o Gênesis a um único sentido específico. É organizado em dois grandes painéis de diferentes tamanhos – primeiro a História Primitiva e então as Narrativas Patriarcais. A conexão temática entre elas poderia ser o padrão do reverso da primogenitura, uma idéia que tem amplas implicações teológicas e históricas para a antiga Israel. Quando o moribundo Jacó, abençoando seus dois netos, cruza suas mãos, a despeito dos protestos de José, colocando a mão direita na cabeça do mais novo e a esquerda na do mais velho, temos um tipo de ideograma sumarizado do Livro do Gênesis.

IHU On-Line - O senhor se diz um arqueólogo literário. Qual é a principal riqueza em relacionar teologia e literatura?
Robert Alter
- Como indiquei em minha resposta à terceira questão, cobrir as convenções literárias dos textos antigos nos habilita a enxergar mais nitidamente o que se passa neles. Esses escritores foram, claro, impelidos por motivos religiosos urgentes – não estou certo se o termo abstrato “teologia” se aplica rigorosamente a eles –, mas eles escolheram depositar sua visão religiosa na maior parte em artística narrativa e forte poesia. Então, se você vê mais claramente como a narrativa e a poesia funcionam, você também chegará a uma profunda compreensão das nuances e complexidade de suas visões religiosas.

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