Edição 251 | 17 Março 2008

O poder teológico da literatura

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Graziela Wolfart

O presidente da Soter, Afonso Soares, acredita que a teologia da revelação tem muito a aprender se adotasse um diálogo mais estreito com a literatura em geral e com a literatura bíblica em particular

Para o professor Dr. Afonso Maria Ligorio Soares, o ponto de intersecção entre teologia e literatura é que ambas “são aproximações possíveis das reivindicações humanas, das explicações humanas e da condição humana”. Na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, o presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (Soter) considera que o maior avanço nesse tema é assumir a tríplice possibilidade de aproximação entre a crítica literária, os estudos dos antigos textos sagrados e a teologia/ciência da religião, sem pretender suprimi-las ou confundi-las. Afonso Maria Ligorio Soares é chefe do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP e pesquisador do Programa de pós-graduação em Ciências da Religião da mesma instituição. É mestre em Teologia Fundamental, pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), e doutor em Ciências da Religião, pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), com pós-doutorado em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Atualmente, prepara tese de Livre-Docência em Ciências da Religião. É autor de, entre outros, Interfaces da revelação: pressupostos para uma teologia do sincretismo religioso (São Paulo: Paulinas, 2003).

IHU On-Line - Como o senhor caracteriza a relação entre a teologia e a literatura? Qual é a contribuição que uma área pode dar à outra? Quais os maiores avanços dessa discussão enquanto tema de pesquisa acadêmica e quais os principais “entraves” e desafios?
Afonso Soares
- Vou alargar a resposta para a área de Ciência da Religião que, embora distinta, possui evidentes afinidades com a Teologia. Vivemos uma época muito rica de reconhecimento das múltiplas possibilidades de diálogo interdisciplinar na busca de uma aproximação, o mais fidedigna possível, à realidade humana. Nesse sentido, não está isolada a Ciência da Religião quando, na tentativa de melhor (re)conhecer o fenômeno religioso, abraça-o de vários ângulos (antropologia, história, geografia, psicologia, história, física, teologia) e, dentre eles, a crítica literária.

Por sua vez, do lado da própria literatura vem-se construindo uma interessante reflexão que lê a obra de arte como expressão de uma busca de sentido que, comumente, se explicita na indagação filosófica, além de se crer respondida nas mais variadas religiões. Essa aproximação às vezes tem sido chamada de “teopoética” (K.J. Kuschel, Rubem Alves , Salma Ferraz  etc.).
A perspectiva que temos privilegiado aqui no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP entende que uma aproximação competente da Literatura na forma de crítica literária ajuda ao cientista da religião numa melhor compreensão de seu objeto de pesquisa (seja a religião, ou o sagrado ou seus termos equivalentes).

Por isso, nossa abordagem enfatiza o “poder teológico da literatura”, a saber, a capacidade que só a arte e o texto literário possuem de nos levar o mais fundo possível em nossa ardente busca de completude, de respostas, justamente na “morada do ser” (Heidegger).

Há um jogo interessante entre a literatura que se interessa pelo teologal como matéria-prima do discurso e o teológico (teologia) que se interessa pela literatura como “linguagem de empréstimo” (expressão usada por H. Lima Vaz ). O ponto de intersecção é que ambas, literatura e teologia, são aproximações possíveis das reivindicações humanas, das explicações humanas e da condição humana (filosofia, arte, literatura).
Concordo com um dos especialistas nesse diálogo literatura-teologia, José Carlos Barcellos  (infelizmente, recém falecido em fevereiro passado), quando distingue as três abordagens possíveis da mútua relação teologia-literatura:

A) a leitura teológica de uma obra literária (é o que faz, por exemplo, Antonio Manzatto quando lê os romances de Jorge Amado);

B) a percepção do próprio texto literário como portador de uma reflexão teológica (por exemplo: Adélia Prado e, cada vez mais, o próprio Rubem Alves)

C) os elementos religiosos, proposições teológicas presentes na obra literária como simples aspectos da cultura e da linguagem de um povo (neste caso, o poeta/romancista serve-se de elementos religiosos em sua obra apenas porque estão presentes na cultura e na linguagem; não quer, em princípio, questioná-los ou defendê-los a priori).

Enfim, há ricas possibilidades de diálogo entre a crítica literária, os estudos dos antigos textos sagrados e a teologia/ciência da religião. Mas como você pergunta por entraves e avanços, creio que o maior avanço é assumir essa tríplice possibilidade de aproximação, sem pretender suprimi-las ou confundi-las. O entrave está justamente no contrário: não perceber essa distinção ou reivindicar a legitimidade de um olhar (o do teólogo sistemático, por exemplo) em prejuízo de outro (o do crítico literário, no caso).

IHU On-Line - Qual é a importância literária de textos com linguagem poética escritos por místicos cristãos, como São João da Cruz ou Santa Teresa de Ávila? E o que o senhor pensa da qualidade literária dos textos de oradores sacros, como Antônio Vieira?
Afonso Soares
- Há que se ver caso a caso. Os exemplos citados – São João da Cruz,  Santa Teresa de Ávila  e Antônio Vieira  – são, evidentemente, uma feliz síntese entre experiência mística e qualidade literária dos textos dela decorrentes. Mas o casamento não é automático. Pode haver santos analfabetos ou ruins de poesia convivendo com artistas da palavra que repudiam qualquer insinuação de leitura mística de seu talento literário. Para mim, está justamente aí o fascínio dessa aproximação; ela não é óbvia. E, muitas vezes, estará onde não imaginaríamos que estivesse. Por isso, tendo a preferir uma abordagem que enfatize o “poder teológico da literatura” (por ser mais imprevisível) antes de investigar o poder literário da teologia, embora também seja importante essa perspectiva de estudo.

IHU On-Line - Qual é a sua opinião sobre a Bíblia enquanto obra literária?
Afonso Soares
- Compartilho da descoberta confessada por Robert Alter  em A arte da narrativa bíblica (recentemente publicado no Brasil pela Companhia das Letras): a Bíblia tem muito a ensinar a quem quer que se interesse por narrativa. Sua arte, diz Alter, “parece simples, mas é maravilhosamente complexa” e bem por isso é um “exemplo magnífico das grandes possibilidades da narrativa”. Basta acompanharmos o que têm escrito Northrop Frye  (O código dos códigos. São Paulo: Boitempo), Harold Bloom  (Jesus e Javé. Rio de Janeiro: Objetiva), e Jack Miles  (Deus, uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras).
Também concordo com Alter quando este afirma que os estudos da Bíblia como literatura precisam ir além da análise das estruturas formais e investir numa compreensão mais profunda dos valores, da perspectiva moral contida num tipo particular de narrativa. Essa volta à Bíblia como texto literário talvez seja uma das últimas chances de aggiornamento e conversão para a teologia cristã. Ler a Bíblia sempre incomodou os teólogos (escolásticos, acadêmicos, liberacionistas etc) porque tira nosso chão conceitual, estremece a precisão das formulações dogmáticas, nos joga na cara que fazer teologia (como diz Rubem Alves) não é falar sobre o mistério, mas estar diante dele. Creio que a teologia da revelação (teologia fundamental) teria muito a aprender se adotasse com carinho um diálogo mais estreito com a literatura em geral e com a literatura bíblica em particular.

IHU On-Line - Quem o senhor cita como grandes nomes da literatura de língua portuguesa em relação com a teologia?
Afonso Soares
- Eu diria apenas o seguinte: se são grandes nomes da literatura em língua portuguesa [e grandes não são necessariamente os mais famosos ou mais badalados na mídia], então já estão em relação com a teologia. Porque a boa teologia vai se deixar provocar pelo que escreveram ou estão escrevendo. Explicitar essa relação e tirar dela algumas conseqüências é tarefa de nós outros, do lado de cá. Há nomes para todos os gostos e pressupostos (porque a teologia é das raras ciências que põe a público seus pressupostos): de Antonio Vieira a Saramago e Lobo Antunes , sem esquecer Mia Couto  e os africanos; entre nós, Machado de Assis  a Guimarães Rosa,  de Cruz e Sousa  a Adélia Prado, sem esquecer os que desagradam os críticos porque populares (como Jorge Amado).

IHU On-Line - Falando sobre o ensino-religioso como disciplina escolar, qual seria o papel do recurso da literatura na discussão simbólico-religiosa em sala de aula?
Afonso Soares
- Eis uma discussão que não pode mais ser adiada. Estamos no começo de uma salutar aproximação entre Ensino Religioso e Ciência da Religião, que deveria paulatinamente ir afastando o fantasma dos modelos catequético e teológico para o ensino religioso nas escolas (sobretudo nas públicas). Muitos ainda não entenderam isso. Há pressões no Congresso Nacional (de evangélicos e católicos ultraconservadores) para fazer regredir a Lei que dispõe sobre o Ensino Religioso para o modelo catequético (cada um vai à escola e aprende a religião dos pais ou a do professor). O recurso à literatura, se bem informado dos resultados já atingidos nessa nova aproximação entre literatura e teologia, seria uma estratégia muito bem-vinda de sensibilização de crianças e jovens para o sentimento religioso, a espiritualidade, os valores, a cidadania e o respeito pelo outro em sua diversidade.

IHU On-Line - Qual é a contribuição da literatura para a teologia do diálogo inter-religioso?
Afonso Soares
- De forma semelhante, os resultados do diálogo entre crítica literária e reflexão teológica são preciosos para a descoberta de pontos comuns entre as religiões no que diz respeito à espiritualidade, aos valores e à disposição de aprender de quem é diferente. A área de mística comparada  tem feito avanços importantes nessa direção no cotejo dos textos sagrados de diferentes tradições espirituais. Uma literatura comparada possui potencial para uma bela contribuição nessa direção.

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