Edição 250 | 10 Março 2008

“1968 reduz enormemente a carga de hipocrisia da sociedade”

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Alessandra Barros

Para o jornalista Juremir Machado da Silva, 1968 significou a cristalização de um movimento de emancipação moral

Na opinião do Prof. Dr. Juremir Machado da Silva, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, a principal mudança provocada pelo Maio de 68 foi em relação ao “comportamento moral e sexual”. Juremir centrou sua fala na evolução das relações interpessoais, como resultado do episódio que recordamos na matéria de capa desta semana. Também escritor, jornalista e historiador, Juremir Machado é doutor em Sociologia, pela Universidade de Paris V: René Descartes. Em Paris, de 1993 a 1995, foi colunista e correspondente do jornal Zero Hora. Atualmente, além de professor do curso de Jornalismo da Famecos e coordenador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUCRS, assina coluna no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre/RS.

Juremir Machado da Silva apresentou o IHU Idéias de 11-09-2003, intitulado 11 de setembro: Ano III. Uma reflexão a partir de Jean Baudrillard. Sobre esse tema, concedeu uma entrevista na 74ª edição da IHU On-Line, de 08-09-2003. Juremir Machado da Silva é autor dos Cadernos IHU Idéias número 30, intitulado “Getúlio, romance ou biografia?”, inspirado no tema Getúlio, 50 anos depois, apresentado por ele em 26 de agosto de 2004, também no evento IHU Idéias.

Confira a entrevista a seguir.

IHU On-Line - Maio de 1968 é considerado por alguns historiadores e filósofos como o acontecimento revolucionário mais importante do século XX. Na sua opinião, qual é a  importância e o impacto desse movimento na sociedade?
Juremir Machado da Silva
– De fato, foi um acontecimento relevante, talvez o principal pelas conseqüênciais positivas e duradouras. Entre tantos fatos importantíssimos, como a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a Revolução Russa e a queda do Muro de Berlim, fica difícil estabelecer com segurança qual foi o mais importante deles. Mas Maio de 1968 foi um tipo muito específico de “revolução”, com mais efeitos benéficos do que negativos. No fundo, a Revolução Russa foi um processo que se acentuou, depois se desconstruiu e hoje já não existe mais. Pode-se dizer que surgiu, teve seu apogeu e sua decadência. Já Maio de 1968 deixou frutos comportamentais que ainda estão presentes. Acredito que o episódio foi fundamental por modificar as relações interpessoais e as relações hierárquicas. Mudaram as relações entre pai e filho, professor e aluno, patrão e empregado.

Mas a principal mudança foi em relação ao comportamento moral e sexual. Se hoje as pessoas podem fazer sexo antes do casamento sem ter de dar explicações, nem sentir culpa ou fazer qualquer penitência, é graças a esse período. Se as relações e hierarquias se dão de forma mais fluidas, é fruto de 1968. Se os adolescentes podem trazer os namorados (as) para dormir em casa, é reflexo desse período. 1968 significou a cristalização de um movimento de emancipação moral. Conforme o filósofo francês Gilles Lipovetsky,  passamos de uma moral sacrificial, imperativa e autoritária, para um tipo de moral à la carte, na qual persistem valores afirmados e fundamentais, mas que reduziu a tentação de legislarmos sobre a vida dos outros. Os laços se afrouxaram. Passou-se a apostar muito mais na importância do bem-estar, do prazer e da satisfação pessoal, e não apenas na imposição de normas constrangedoras e até destrutivas para a vida das pessoas. Penso que o grande legado desse movimento é o afrouxamento dos laços da moral sacrificial, tornando a sociedade mais aberta, de comportamento mais flexível. Entramos em uma esfera comportamental do imaginário fluido, mais flexível e transparente. E isso reduz enormemente a carga de hipocrisia da sociedade. 
É claro que também existem aspectos negativos. O escritor francês Michel Houellebecq,  autor de Partículas elementares, por exemplo, é um crítico de 1968. Defende que o episódio não foi tão importante assim, que teria apenas contribuído para a desestruturação da família. Para Houellebecq, foi apenas o resultado do rock’n’roll. 

IHU On-Line - Pós-68, quais foram as mudanças para a sociedade? Quais são os pontos positivos e negativos? Houve melhora da educação nas universidades? Qual é a sua avaliação dessa melhora da relação entre professor e aluno, por exemplo?
Juremir Machado da Silva
– As relações hoje são muito mais de diálogo. Antes de 1968, de maneira geral, era vigente um modelo autoritário. O professor era magistral, impunha sua autoridade e passava seu conhecimento para um aluno que deveria ser o mais passivo possível ao receber, assimilar, temporar esse conhecimento. A situação de diálogo era muito menor, até mesmo na forma de tratamento. O professor tinha de ser chamado de senhor, e o aluno devia levantar quando ele entrava em sala de aula. Trata-se de um comportamento que aqui e ali pode ser que persista, mas de um modo geral se modificou. Hoje, o professor é um facilitador, animador, alguém que está na sala para discutir, preparado para ser contestado. O aluno tem liberdade de saber mais do que ele e apresentar esse conhecimento. Houve mudanças nos papéis. Desse modo, o professor está na aula para problematizar, discutir, passar conhecimento. A própria noção de ensino-aprendizagem se modificou. Não há mais predominantemente essa idéia de que alguém sabe e passa um saber que o outro não tem. Então, estabeleceu-se, também, na educação, uma relação dialógica, muito menos hierárquica, que propicia o debate, a interação, menos vertical e  muito mais interativa.  

IHU On-Line - Na época, a classe operária reivindicou melhores salários e condições de trabalho. Quais foram as conquistas dos trabalhadores? Como o senhor avalia, em pleno século XXI, a exploraçao da mão-de-obra nos canaviais, por exemplo?
Juremir Machado da Silva
– Esse foi o aspecto de 1968 que acabou sendo menos importante, de menor resultado. Claro que na Europa desenvolvida, na França, por exemplo, a situação dos trabalhadores é muito melhor do que a situação dos cortadores de cana brasileiros. Muitas conquistas foram feitas. Hoje, o estado francês até é criticado por ser excessivamente protecionista, pelos trabalhadores terem direitos que alguns consideram privilégios. Isso faz com que a França tenha dificuldade de competir nos mercados asiáticos, onde os custos de trabalho são mais baixos. Então, os trabalhadores europeus obtiveram conquistas nítidas. No aspecto militante, marxista, operariado, proletariado, tudo isso que estava também na agenda de 1968, foi o que menos acabou importando.

1968 marcou não por ter sido uma revolta operária, mas sim como revolta estudantil, comportamental, por modificar o imaginário, as relações entre as pessoas. Esse aspecto de reivindicação classista, profissional, salarial e de luta de classes acabou se esvaecendo, perdeu importância. Evidente que, em um país como o Brasil, as diferenças sociais continuam acentuadas e os trabalhadores precisam fazer suas reivindicações. Sem dúvida, é preciso avançar muito. Mesmo esses trabalhadores que não conseguiram dar o grande salto para benefícios maiores também beneficiam-se de alguma maneira, principalmente no asptecto das relações pessoais, por exemplo. Hoje, o pai não mata mais a filha porque ela transou antes do casamento; ou o marido mata a mulher porque foi traído, pois os comportamentos ficaram menos conservadores e mais flexíveis.

IHU On-Line - Na França, no final do século XX, ressurgiram no mundo manifestações violentas de racismo e xenofobia. Maio de 1968 foi uma reação a esses fenômenos, em prol dos direitos humanos?
Juremir Machado da Silva
– Maio de 1968 foi, de fato, um movimento muito mais anarquista, o que era demonstrado nos slogans: “imaginação do poder”, “é proibido proibir” e “um vento libertário”. Teve muito de poesia, próprio de estudantes em ação. Foi uma reivindicação de liberdade e de combate a todo o tipo de preconceito. Mas isso não quer dizer que esse período tenha vencido todos os preconceitos. Muitos deles persistem até hoje. Passaram por reestruturações e até fortaleceram-se. Principalmente no que se refere à Europa, percebe-se uma sociedade com problema de fluxo migratório. As populações dos países pobres passam a migrar para os países ricos da Europa. Como conseqüência, geram determinados tipos de choques que passam por muitos preconceitos, evidentemente contra esses migrantes, ainda sem solução, que provocam reações primárias, como xenofobismo e racismo. Esse fato demonstra que a Europa ainda não resolveu alguns dos problemas mais tradicionais e históricos, como o racismo. Cientificamente, o conceito de raça é sem validade. Mas, do ponto de vista das relações sociais, isso constantemente se atualiza, retorna, toma novas formas e produz os efeitos negativos de sempre. Maio de 1968 não conseguiu acabar com os preconceitos. Por isso, torno a enfatizar que 1968 tem como legado muito mais uma transformação comportamental no plano moral e principalmente nas relações entre pais e filhos, professores e alunos, nas relações hierárquicas, e mais ainda nas relações sexuais.

IHU On-Line - Na época, o que representava a nova esquerda francesa?
Juremir Machado da Silva
– A França, do ponto da vista da esquerda, teve várias vertentes. Uma maoísta, que continuou acreditando em um processo revolucionário, encantada, deslumbrada com o que estava acontecendo na China, e revelou-se um fracasso total. Os intelectuais franceses, muitas vezes, acreditavam em utopias autoritárias, como o stalinismo,  o Realismo Socialista Soviético e o maoísmo. Por outro lado, o sindicalismo francês estruturou-se de uma maneira mais consistente e realista. Chegou ao poder nos anos 1980, com o presidente François Mitterrand,  também resultante dessas mudanças, no entendimento da própria política: não mais fazer a revolução, mas reformas. A nova esquerda francesa beneficiou-se desse momento. Aos poucos, foram sendo incorporados ao ideário político aqueles valores defendidos pelos jovens de 1968. A política também se tornou diferente, menos conservadora e hierárquica para essa nova esquerda. Transformou-se em uma política mais imediata, menos monolítica. Passou a levar em consideração elementos até então considerados estranhos à política, até mesmo ao longo dos anos 1970 e 1980, como aspectos ambientais, ecológicos e, principalmente, o comportamento.
 
IHU On-Line - Quais foram os reflexos desse acontecimento na América Latina?
Juremir Machado da Silva
– Na América Latina, houve reflexos de várias ordens. Mesmo durante 1968, países como o Brasil tiveram repercussões imediatas do movimento. Mas, como sempre, os efeitos mais profundos chegaram com o passar dos anos. Podemos dizer que hoje o tipo de estruturação familiar, principalmente das classes médias, é diferente. Todo o comportamento atual aceito como lícito, padrão, que parece até incontestável e não imaginamos de uma forma diferente antes no Brasil, deriva diretamente desse período. Somos as gerações produzidas por 1968 no Brasil, assim como em outros países, como Uruguai e Argentina. Em todos os países com uma classe média bastante constituída, essa revolução produziu seus efeitos.

IHU On-Line – E, após 40 anos do episódio, está se construindo uma nova esquerda?
Juremir Machado da Silva
– Hoje, 1968 é mais uma lenda, um mito, que teve seus efeitos. Não sei se ainda produz conseqüências diretas. No Brasil, a nova esquerda já se constituiu há muito tempo. O PT, por exemplo, foi a nova esquerda no Brasil. Eles estão pensando uma “nova nova esquerda”. Claro que o PT incorpora muitas das questões trabalhadas pelo povo de 1968, que, para os partidos mais tradicionais, não diziam nada. A política também mudou. Está menos hierarquizada, de maior participação e discussão. Evidentemente, alguns temas ainda precisam entrar na pauta, sobretudo no caso brasileiro, onde há uma sociedade conservadora, de forte predominância religiosa. No futuro, alguns debates terão de acontecer, como a legalização do aborto, que é uma questão que eclodiu durante esse manifesto, em países como a França de 1968, e foram resolvidos há bastante tempo.

IHU On-Line - Nesse período, no Brasil, foi o ano da criação do AI-5. Estávamos em plena Ditadura Militar. Foi o ano que o cantor e compositor Geraldo Vandré lançou a música “Pra não dizer que não falei das flores”, considerada o hino da contestação à ditadura. Quanto às manifestações no Brasil, os estudantes e operários também estavam nas ruas em protesto à repressão?
Juremir Machado da Silva
– Existe esse paradoxo extremamente interessante. No Brasil, 1968 foi, ao mesmo tempo, um ano que teve algum tipo de repercussão do que está acontecendo no mundo em termos de demanda de liberdade. Houve fechamento político com o AI-5. Mas 1968 foi muito mais subterrâneo. O maior impacto não foi uma organização política, mas o uso da minissaia, do cabelo comprido, de um novo tipo de linguagem, elementos trazidos pelos hippies.  1968, no fundo, é um um conjunto de coisas. É uma nova maneira de pensar e de encarar a vida. Então, claro que, ao longo dos anos 1970, apesar de o Brasil estar em uma ditadura militar, esse efeito do manifesto ajudou a corroer esse regime, porque os jovens deram a sua contribuição, imbuídos desses novos ideais que continuaram entrando no Brasil, apesar da repressão. Aos poucos, esse jovens propuseram e desejaram outras coisas. Eles não queriam mais ser apenas os jovens que se preparam para o trabalho, para o casamento e para o respeito aos mais velhos, por exemplo. Uma série de outros valores corroeram e contribuíram para clamar por maior liberdade. No final dos anos 1960, no Brasil, houve a ditadura, mas também movimentos que estão no espírito de 1968, como a tropicália.  Parece que essas duas coisas caminharam lado a lado, se enfrentaram. Uma sufocou a outra durante algum tempo, mas finalmente quem venceu foi o espírito de 1968.

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