Edição 250 | 10 Março 2008

1968 e a construção de um novo discurso político

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Graziela Wolfart e Márcia Junges

O argentino Ernesto Laclau recorda o episódio de Maio de 1968 e analisa as transformações políticas ocorridas nesses 40 anos

Para o pensador argentino Ernesto Laclau, “a importância do Maio de 68 se articula dentro de um projeto de construção política viável”. Na entrevista que concedeu por telefone para a IHU On-Line, ele fala sobre a herança do episódio de maio de 1968 na França, sobre democracia, sobre os novos movimentos da política latino-americana e sobre populismo. Ernesto Laclau é um dos filósofos mais lúcidos da política contemporânea. Vive em Londres há cerca de 40 anos. Atualmente, é professor de teoria política na Universidade de Essex, Inglaterra, e na Northwestern University. É licenciado em História pela Universidade de Buenos Aires e obteve o PhD pela Universidade de Essex. Entre seus livros traduzidos para o português, citamos Política e ideologia na teoria marxista: capitalismo, fascismo e populismo (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979) e Misticismo, retórica y política (Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2002). Com Chantal Mouffe, escreveu o importante livro Hegemony & socialist strategy: towards a radical democratic politics (London: Verso, 1985).

IHU On-Line - Quais são os maiores impasses e desafios da democracia atualmente?
Ernesto Laclau
– Isso depende muito de que parte do mundo estamos falando. No caso da América Latina, as principais dificuldades são a possibilidade de organizar uma alternativa continental ao projeto norte-americano. Creio que, nesse momento, a democracia no continente depende da consolidação de regimes populares que estão surgindo, mas que têm claras dificuldades de implementação.

IHU On-Line – Passados 40 anos do Maio de 1968, em que consiste, especificamente, o conceito de democracia radical que o senhor e Chantal Mouffe  defendem?
Ernesto Laclau
– Creio que 1968 foi muito importante na construção de um discurso político novo. Mas precisamos ver também as limitações que esse discurso teve em seu momento. Em primeiro lugar, Maio de 1968 foi um evento europeu. E esse evento europeu teve lugar num momento em que se autonomizavam uma série de lutas que aconteciam nos Estados Unidos e na Europa. Tudo isso criou uma idéia de uma certa autonomia das lutas sociais, o que antes não havia. Por exemplo, nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, houve um avanço das lutas democráticas na Europa Ocidental sob a hegemonia dos partidos comunistas. Isso significou um avanço da democracia, e na Itália ficou muito claro. Mas, quando chegamos aos anos 1960, o que vemos é uma irrupção de novas forças que já não podiam ser absorvidas dentro do universo simbólico comunista tradicional. No entanto, os limites dessa experiência também estão claros: não se pode chegar a uma autonomização das lutas sem fazer um esforço para modificar também os sistemas de relações políticas. 

IHU On-Line - Esse tipo de democracia resultaria em uma concepção agonística de política, inspirada nos moldes gregos, primando pelo respeito à alteridade e pela não homogeneização do sujeito. Poderia explicar melhor essa idéia?
Ernesto Laclau
– Sim, claro. O que ocorre é que, por exemplo, se pensarmos pelo marxismo clássico, temos uma teoria de uma homogeneização das lutas sociais. A idéia central da estratégia política do marxismo clássico foi a de que a sociedade capitalista estava avançando para uma simplificação da estrutura social. As classes médias estariam fadadas a desaparecer e, ao final da história, teríamos uma confrontação radical entre a burguesia e a massa proletária homogênea. Evidentemente, a história não avançou nessa direção. O que se deu foi uma heterogeneização da estrutura social e, então, o problema da articulação política entre pontos de ruptura, que são muito distintos em sua natureza, passaram a ocupar o lugar central.   
 
IHU On-Line - Qual é a maior importância do Maio de 1968?
Ernesto Laclau
– Creio que 1968 representou um momento de ruptura dentro da política de esquerda européia e dentro da política norte-americana, nos momentos de protesto contra a Guerra do Vietnã. Ou seja, alcançou a explosão de novos antagonismos, novas demandas e novos valores. De outro lado, 1968 não chegou a constituir o imaginário hegemônico, que poderia mostrar a definição de um novo tipo de estado. E, depois, explosões similares, como, por exemplo, o referendo do NÃO, que aconteceu na Europa, no ano passado, não chegou a se traduzir numa formulação política de tipo novo. Ou seja, creio que a política tem duas faces. Uma é de caráter ruptural, e a outra é a de transformar esse momento ruptural na base para uma nova reestruturação do Estado. Deste ponto de vista, 1968 precisaria mostrar suas potencialidades, o que não acontece até o momento.

IHU On-Line – Qual é a maior herança que o Maio de 68 deixou para a política e a democracia latino-americana?
Ernesto Laclau
– Em primeiro lugar, 1968 foi, do ponto de vista da América Latina, algo muito distinto. Na Argentina, assistimos a toda a experiência do Cordobazo  e todas as mobilizações, mas não foi uma conseqüência direta do Maio de 68 na Europa. Mas, em termos de imaginário político, o episódio teve importância universal. Insisto que a importância não deve se transformar no absoluto. A importância do Maio de 68 se articula dentro de um projeto de construção política viável.

IHU On-Line - Como a democracia radical conjuga o respeito pela alteridade e a autonomia do sujeito moderno?
Ernesto Laclau
– O que está claro é que a situação atual, num capitalismo globalizado, no qual estamos avançando, traz uma pluralização dos pontos de ruptura e antagonismo. Ou seja, a questão é como unir forças que partem de pontos de luta muito diferentes. Por exemplo, no Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, há uma pluralidade enorme de workshops que se dedicam a criar problemas muito específicos (sobre as mulheres em Zimbábue, os gays na Califórnia etc.). Mas, com o tempo, há um esforço de criar uma certa “linguagem comum” que transite entre todos esses temas. Ou seja, o que estamos criando, de alguma maneira, me parece, é uma nova forma de universalismo, que produz efeitos políticos de grande alcance.   

IHU On-Line - Como o senhor interpreta a exaustão política dos eleitores expressa através da apatia (votos brancos, nulos, abstenções), ou, em outros termos, do niilismo passivo? O que essa postura revela sobre a democracia atual?
Ernesto Laclau
– Aqui temos que distinguir entre áreas geográficas. Por exemplo, se pensarmos na Argentina, o que aconteceu depois da crise econômica de 2001, a mais séria que o país sofreu, foi uma expansão horizontal enorme dos protestos sociais. Começaram as recuperações de fábricas, as mobilizações dos piqueteiros, e outras mobilizações de vários tipos. Isso, no entanto, não se traduz imediatamente ao nível do sistema político, porque, então, o lema era “que se vayan todos”. Kirchner manteve uma política de tratar de unir a proliferação horizontal dos protestos sociais à sua influência vertical dentro da estrutura política. Ou seja, com muitas dificuldades, está se criando um duplo processo, que teria de avançar em duas direções. Eu creio que na América Latina, em geral, essa é a situação. Se passarmos para a Europa, a questão é diferente. O que acontece lá é uma unificação dos setores dominantes. Por exemplo, se na França ganham os socialistas ou a direita, não temos uma diferença tão grande, porque os dois pertencem ao mesmo extrato tecnocrático. Não digo que isso não esteja acontecendo na América Latina, também de alguma maneira está acontecendo. Mas há opções de caráter mais radical. 

IHU On-Line - Como o senhor percebe e define a atuação da Nova Esquerda na América Latina? Quais são os principais desafios que ela tem pela frente?
Ernesto Laclau
– Eu acredito que, na América Latina, nós temos duas esquerdas: uma é a tradicional, a do “Partidão”, e que está praticamente desaparecendo em todos os lados. Resquícios dessa esquerda tradicional podem ser vistos na Argentina, na Venezuela, com o partido comunista, e no Brasil também. De outro lado, as opções continentais do que pode ser uma nova esquerda são muito mais amplas. Creio que, se pensarmos na possibilidade de uma nova esquerda na Argentina, isso está muito mais ligado ao kirchnerismo do que aos partidos que se consideravam tradicionalmente de esquerda. De outro lado, há, em alguns países que tem mantido a estrutura mais clássica, como o Uruguai e o Chile, uma esquerda de tipo mais tradicional, mas com um sistema político que é menos permeável aos novos processos de mudança.

IHU On-Line – Quem, na política latino-americana, hoje pode ser apontado como um líder populista? Em que sentido o populismo interfere na questão da democracia?
Ernesto Laclau
- Para mim, populismo não é um termo pejorativo, como o é para muitos cientistas sociais. Vejo o populismo como um tipo de discurso que trata de dicotomizar o espaço social entre os “de cima” e os “de baixo”. Esse discurso poderia ir numa direção de direita e numa direção de esquerda. Isso não quer dizer que algo é bom por ser populista. Pode ir em direções completamente diferentes. No entanto, contemplo uma situação na qual a multiplicação dos pontos de ruptura e antagonismo não pode ser reduzida a uma unidade, como era aquela de classe no sentido da esquerda tradicional. No momento atual da articulação política, uma dimensão populista será uma característica central de qualquer nova esquerda. Há muitos líderes populistas na América Latina hoje. Há Chávez, Cristina Kirchner e Ollanta Humala,  o líder peruano que perdeu as últimas eleições. No caso do Brasil, o problema é mais complexo. Porque o Brasil, tradicionalmente, teve uma extrema regionalização da política. Vamos comparar Vargas e Perón. Este último era líder de um movimento unificado, porque ao redor das três grandes cidades (Rosário, Córdoba e Buenos Aires), há toda uma classe operária e industrial no centro dessa política. Enquanto isso, no Brasil, o que temos é um regionalismo real. Então, Vargas precisou ser bom articulador para diferentes classes. De um ponto de vista populista, isso era muito mais complexo. Lula tem mantido um equilíbrio. Eu sou menos crítico a Lula do que alguns. Penso que Lula conseguiu alguns feitos importantes. Na reunião de Mar Del Plata,  o projeto da Alca não se implementou, em boa medida, porque o Brasil se opôs. Lula está fazendo um papel de ponte entre vários projetos latino-americanos. Eu, pessoalmente, tenho simpatia pela sua política. Lula pode ser apontado como populista até certo ponto. Ele tem que dirigir um sistema político no qual sempre haverá um certo equilíbrio entre o populismo e o institucionalismo.

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