Edição 249 | 03 Março 2008

Como não perder ou sacrificar as conquistas da revolução? Eis o desafio

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Alessandra Barros

Para o escritor e jornalista Eric Nepomuceno, Raúl Castro, na condução do presente de Cuba, poderá estabelecer mudanças de rota, não de rumo, e eliminar alguns problemas crônicos que assolam a ilha há décadas

Eric Nepomuceno é jornalista e escritor. Foi correspondente do Jornal da Tarde na Argentina e da Veja na Espanha e México. Trabalhou na Rede Globo como editor e foi cronista do Caderno B, do Jornal do Brasil. Seus livros de contos e de não-ficção ganharam vários prêmios, inclusive o Jabuti pela tradução de autores de língua espanhola, como Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano, Juan Rulfo, Julio Cortázar e Jorge Luis Borges. É autor de 14 livros (romances, contos e ensaios), entre eles Caderno de notas (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979), obra que visualiza o processo da Revolução Cubana e os significados históricos do “cordobazo”. Dedicou anos de pesquisa sobre um dos mais chocantes episódios de conflito agrário do Brasil, o massacre de Eldorado do Carajás, em 17 abril de 1996, tema da sua obra O Massacre - Eldorado do Carajás: uma história de impunidade. Atualmente, escreve para os principais diários hispânicos e brasileiros.

Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, ele analisa a renúncia de Fidel Castro e afirma que este momento em Cuba tem tudo para ser de renovação.

IHU On-Line - Para o senhor, a renúncia de Fidel já era prevista?
Eric Nepomuceno
- Sim, era. Fidel Castro sempre foi um homem de atividade incessante, que dormia pouquíssimas horas por dia, participava de tudo que era tipo de ato, reunião, manifestação, debate. Era uma vida no limite permanente do esgotamento. Quando se tornou clara a gravidade de seu estado físico, quando sua recuperação se mostrou lenta e, além do mais, limitada, ficou claro, ao menos para mim, que ele não continuaria formalmente à frente do governo cubano. Trata-se, também, de uma estratégia política de transmissão de mando, de poder, sem maiores traumas. Ao longo de 19 meses, Raúl Castro e um grupo específico de dirigentes levaram o barco sem enfrentar problema algum. Muito melhor, para Cuba e os cubanos, foi essa transmissão ter sido feita com a presença de Fidel Castro do que com sua ausência.
 
IHU On-Line - Qual é o futuro de Cuba com a renúncia de Fidel? O que representa Raúl Castro na condução do futuro de Cuba?
Eric Nepomuceno
- Creio que haverá essencialmente uma transferência de mando e responsabilidade administrativa. O futuro sem Fidel vinha sendo estruturado desde pelo menos 1991, e com Fidel. Houve uma abertura econômica muito significativa - e bastante ignorada no Brasil -, que assegurou a sobrevivência de Cuba, bloqueada por um lado (os Estados Unidos) e abandonada à deriva por outro (o fim da União Soviética e a dissolução do bloco socialista). Ao mesmo tempo, surgiram delicadas e sérias distorções no processo da Revolução. Não é bem que despiram um santo para vestir outro: vestiram um santo, e esse santo revelou-se contraditório, problemático. Raúl Castro, na condução do presente de Cuba, poderá estabelecer mudanças de rota, não de rumo, e eliminar alguns problemas crônicos que assolam a ilha há décadas, a começar pelo excesso de burocracia, pelas restrições absurdas e injustificadas a uma série de direitos e benefícios reclamados pelas novas gerações, melhorar os mecanismos emperrados da distribuição de bens e serviços e, finalmente, incrementar os salários dos trabalhadores. Creio, pelo que conheço de Cuba, das gerações intermediárias que já ocupam há décadas cargos decisivos na administração, e do próprio Raúl Castro, que o processo cubano será sensivelmente arejado.

IHU On-Line - Como se dará essa transição? Serão necessárias reformas?
Eric Nepomuceno
- Será uma transição que em nenhum momento afetará a continuidade do processo cubano. Acho importante e necessário que agilizem a produção e a distribuição de bens, maior abertura para que cidadãos criem pequenas empresas privadas prestadoras de serviços, um profundo abalo na estrutura absurda da burocracia transbordante. Instauradas essas mudanças, se poderá, com muito mais eficácia, combater os focos de corrupção, que existem e são delimitados, melhorar a qualidade do atendimento prestado à população e, enfim, melhorar o poder de renda dos cubanos.
 
IHU On-Line - O senhor acredita na realização de eleições convencionais na ilha?
Eric Nepomuceno
– Nas eleições convencionais, da democracia burguesa representativa (me atenho ao aspecto histórico no termo, sem nenhum sentido pejorativo, ao contrário), penso que não. Nem a curto nem a médio prazo. O sistema representativo cubano tem mecanismos próprios, que poderão até mesmo ser bastante flexibilizados. Mas acredito ser muito difícil implantar partidos políticos e promover disputas eleitorais convencionais.
 
IHU On-Line - Esse é um momento de renovação para os cubanos?
Eric Nepomuceno
- Talvez seja, tem tudo para ser. O importante, em todo caso, e cada cubano tem plena consciência disso, é não perder ou sacrificar as conquistas da revolução, e não permitir o retorno de um capitalismo predador, primário, rasteiro. É preciso conhecer Cuba seriamente, para entender que renovação é algo que acontece permanentemente na ilha, embora não se espalhe e ramifique como seria desejável. É hora de isso acontecer, sempre que, repito, não se sacrifique conquista alguma. Recordo claramente que em 1992, no auge de uma crise que levou Cuba à beira do colapso total, com as pessoas praticamente sem ter o que comer, Fidel Castro chamou a atenção para um dado que o mundo, na torcida exaltada pelo fim da revolução, ignorou: nem naquele período de escassez absoluta, de miséria total, foi fechada uma só escola, desativado um só leito de hospital.
 
IHU On-Line - Como Fidel Castro ficará na história?
Eric Nepomuceno
- Como uma das figuras mais carismáticas, mais poderosas e controversas não só do século XX, mas dos últimos cem anos. O homem que soube conduzir um processo que resgatou e tornou invulnerável o sentido de dignidade para o povo cubano. Que sobreviveu a dez presidentes norte-americanos, a uma invasão armada planejada, apoiada e financiada pelo governo do presidente John Fitzgerald Kennedy, a um sem-fim de atentados terroristas, cometidos não só contra Cuba, mas contra a sua pessoa. Enfim, que soube construir uma história pessoal em perfeita harmonia com a história de seu tempo. Creio que Fidel Castro, em última instância, tem uma estatura histórica superior à de Cuba. Maior do que a dimensão de seu país.
 
IHU On-Line - Qual foi o seu papel para Cuba e toda América Latina?
Eric Nepomuceno
- Jamais vi Fidel, como nenhuma das figuras míticas da Revolução Cubana - Che Guevara, Camilo Cienfuegos em lugar de destaque especial, mas também Juan Almeida, Ramiro Valdéz e tantos outros -, como um modelo. Creio, porém, que foi um exemplo positivo em muitos aspectos, e que cometeu erros graves em outros. Ou seja: exemplo das possibilidades e das contradições do ser humano transformado em condutor de um processo histórico, sim. Modelo, não.
 
IHU On-Line - O senhor esteve várias vezes com Fidel.  O que mais lhe atrai na sua personalidade? O que faz dele um mito político vivo?
Eric Nepomuceno
- Sua própria trajetória, única. Sua capacidade de sobrevivência. Sua dedicação obsessiva à causa de seu país e de sua gente. Sua integridade de aço. García Márquez, amigo de Fidel, diz que o que mais o impressionou sempre na figura do líder cubano - para o bem e para o mal - é que nada do que ele fez deixou de ser colossal, pois colossal é sua maneira de ver e entender a realidade e o mundo. Compartilho essa impressão. E Fidel Castro é, claro, uma personalidade fascinante, um homem cativante e, enfim, um excelente cozinheiro e um conversador extraordinário.

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