Edição 249 | 03 Março 2008

Uma mulher que se reinventa e se redescobre

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Graziela Wolfart e Alessandra Barros

A antropóloga Mirian Goldenberg analisa as transformações nos modelos familiares e aponta que as tendências indicam o fim da família e do casamento como os conhecemos até agora

Mirian Goldenberg é antropóloga e professora do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, ela afirma que, “em pouco mais de três décadas, assistimos a uma enorme transformação do corpo carioca: do exercício do prazer à busca da perfeição estética, da liberdade à submissão aos modelos, do erotismo à falta de desejo”. Goldenberg é doutora em Antropologia Social, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autora de Toda mulher é meio Leila Diniz (Rio de Janeiro: Record, 1966); A outra (Rio de Janeiro: Revan, 1990); A arte de pesquisar (4ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000); Nu & Vestido (Rio de Janeiro: Record, 2002); De perto ninguém é normal (Rio de Janeiro: Record, 2004); Infiel: notas de uma antropóloga (Rio de Janeiro: Record, 2006); e O corpo como capital (Rio de Janeiro: Estação das Letras e Cores, 2007). Seu site pessoal é www.miriangoldenberg.com.br

IHU On-Line - Na obra Novos desejos, a senhora traz o tema “De Amélias à operárias”, em que expõe os conflitos de mulheres economicamente ativas, tanto nas relações conjugais como na família. Em que fase está esse debate?
Mirian Goldenberg
- Acredito que o que está ocorrendo, no Brasil, é, na verdade, a multiplicidade e flexibilidade dos atuais arranjos conjugais. Assim, o que está em crise é um determinado modelo de família e de casamento. Como o modelo hegemônico permanece como um valor enraizado em cada um, fortalecido pela socialização e educação e pela Igreja, muitos dos que vivem outras formas de relacionamento conjugal sentem-se, ainda hoje, desviantes. A pluralidade de formas de casamentos e famílias existentes em nossa cultura demonstra que homens e mulheres continuam querendo casar e constituir famílias, sem, no entanto, reproduzir o modelo tradicional de conjugalidade.

A crise dos modelos de família

Portanto, ao falar de família e de casamento, o plural impõe-se. Já não há um único modelo, mas vários. O divórcio, a união livre, as recomposições familiares abalam o que se chamava, até há pouco tempo, de “modelo de família ocidental”. Este modelo será ainda mais abalado com as novas técnicas de procriação. A doação de óvulos, a fecundação por inseminação artificial ou in vitro, a possibilidade de clonagem de seres humanos, levam a que se ponha em causa os princípios fundamentais sobre os quais se assenta o nosso sistema de parentesco: sexualidade e parentesco são dissociados, paternidades e maternidades são multiplicadas (genética e socialmente), o nascimento de um filho não provém necessariamente de um casal.

Dois fenômenos recentes enfraqueceram a força da união permanente na família brasileira. O primeiro é a intensificação da vida erótica do casal, uma vez que o apego sexual é notoriamente instável e os casais que se apóiam em tal base sujeitam-se a ser facilmente fragmentados. Na medida em que a gratificação erótica se torna um elemento essencial na existência do casal, o risco de dissolução matrimonial aumenta. O segundo, as mulheres tornaram-se mais independentes economicamente e podem romper com uniões indesejadas. As mulheres independentes economicamente têm consideravelmente mais poder – e um maior sentido de autonomia pessoal – do que as que não são. Com a capacidade das mulheres se sustentarem veio a capacidade de serem livres. 

Na inexistência de novos modelos estáveis, o estabelecimento de padrões de divisão do trabalho na família fica na dependência do confronto interpessoal entre os cônjuges. Como se valorizam e se exigem, simultaneamente, o apoio emocional e o prazer sexual recíprocos, a relação conjugal recebe uma sobrecarga de exigências. A impossibilidade de satisfazer todas as condições colocadas como necessárias à manutenção da parceria conjugal igualitária encontra solução na crescente aceitação social do divórcio, que acarreta a fragmentação da família original e a constituição de outra, através de novo casamento.

Essas tendências colocam em xeque a estrutura e os valores da família e do casamento tradicionais. Não se trata do fim da família ou do casamento, uma vez que outras estruturas estão sendo testadas e poderemos, no fim, reconstruir a maneira como vivemos uns com os outros, como procriamos e como educamos de formas diferentes e, quem sabe, talvez melhores. Mas as tendências indicam o fim da família e do casamento como os conhecemos até agora. Não apenas a família nuclear, mas a família baseada no domínio patriarcal, que tem predominado há séculos. Assim, não existe uma crise de família, mas uma crise da família patriarcal. Não é o fim da família, mas o surgimento de uma família nova e mais complexa, em que papéis, regras e responsabilidades não serão garantidos pela autoridade patriarcal e terão que ser permanentemente negociados. Isso inclui a necessidade de dividir o trabalho doméstico, parceria econômica e responsabilidade pelos filhos compartilhada. A dificuldade em ter de lidar com todos esses papéis ao mesmo tempo, quando não mais se encontram fixados em uma estrutura formal institucionalizada como a família patriarcal, explica a dificuldade em manter-se relacionamentos sociais estáveis.

IHU On-Line - Em comparação com as mulheres européias, a mulher brasileira tem muito a alcançar?
Mirian Goldenberg
- Em minha observação comparativa de dois universos (Alemanha e Brasil), as mulheres alemãs me pareceram muito mais confortáveis com o seu envelhecimento do que as brasileiras. Observei mulheres que pareciam muito poderosas na Alemanha, objetivamente (em suas profissões e relações conjugais), mas, também, subjetivamente. No Brasil, tenho observado um abismo enorme entre o poder objetivo das mulheres pesquisadas, o poder real que elas conquistaram em diferentes domínios (sucesso, dinheiro, prestígio, reconhecimento, e, até mesmo, a boa forma física) e a miséria subjetiva que aparece em seus discursos (decadência do corpo, gordura, flacidez, insônia, doença, medo, solidão, rejeição, abandono, vazio, falta, invisibilidade e aposentadoria). Observando a aparência das alemãs e das brasileiras, as últimas parecem muito mais jovens e em boa forma do que as primeiras, mas se sentem subjetivamente muito mais velhas e desvalorizadas do que elas. A discrepância entre a realidade objetiva e os sentimentos subjetivos das brasileiras me fez perceber que aqui o envelhecimento é um problema muito maior, o que pode explicar o enorme sacrifício que muitas fazem para parecer mais jovens, por meio do corpo, da roupa e do comportamento. Elas constroem seus discursos enfatizando as faltas que sentem, e não suas conquistas objetivas.

No entanto, a frase, “hoje eu posso ser eu mesma pela primeira vez na minha vida” foi repetida por algumas das brasileiras pesquisadas que percebem o envelhecimento como uma re-descoberta, altamente valorizada, de um “eu” que estava encoberto ou subjugado pelas obrigações sociais, especialmente no investimento feito no papel de esposa e de mãe. As idéias de re-encontrar-se, re-inventar-se, re-descobrir-se apareceu muito nos grupos de discussão, sempre associadas ao fato de fazerem, hoje, as coisas que mais gostam: conversar com as amigas, sair sozinha, ter tempo para si mesma, viajar, ler, estudar, ou, até mesmo, encontrar um novo prazer com o marido assumindo mais os próprios desejos, e não buscando agradá-lo. 

É interessante observar que tanto no discurso de vitimização quanto no de libertação, dois foram os eixos centrais das pesquisadas: o corpo e a relação conjugal, mais especialmente o casamento de cada uma delas. O corpo foi tanto objeto de extremo sofrimento (em função de suas doenças ou decadência) ou de extremo prazer (em função da maior aceitação e cuidado com ele). Os parceiros amorosos foram, também, objeto de extrema dor (alcoolismo, machismo, violência, autoritarismo, egoísmo, abandono, rejeição, faltas) ou de extremo prazer (companheirismo, prazer sexual, cumplicidade). Numa cultura, como a brasileira, em que o corpo é um importante capital, o envelhecimento pode ser vivenciado como um momento de grandes perdas (de capital). Em uma cultura, como a alemã, em que os capitais mais valorizados são outros, como o profissional, o científico e o cultural, o envelhecimento parece ser vivido como um momento de ganhos.

IHU On-Line - Quem é a mulher de hoje? Quais são as suas conquistas e os seus desafios?
Mirian Goldenberg
- Acho que o grande desafio é ser “meio Leila Diniz”. Muitas brasileiras já são, muitas estão longe de ser. Quando, em 1971, Leila Diniz exibiu sua barriga grávida de biquíni, na praia de Ipanema, escandalizou e lançou moda. Foi capa de revistas e manchete de jornais por ter sido a primeira mulher a não esconder sua barriga em roupas soltas e escuras, consideradas mais adequadas a uma grávida. Não só engravidou sem ser casada como exibiu uma imagem concorrente à grávida tradicional que escondia sua barriga. A barriga grávida materializou, objetivou, corporificou seus comportamentos sexuais transgressores. Ícone das décadas de 1960 e 1970, Leila Diniz permanece, até hoje, como símbolo da mulher carioca, que encarna, melhor do que ninguém, o espírito da cidade: corpo seminu, sedução, prazer, liberdade, sexualidade, alegria, espontaneidade. Leila Diniz encarna a imagem de uma jovem livre e feliz: sua maneira de exibir o corpo; seu uso da linguagem; sua conduta sexual; e suas escolhas de amigos e parceiros amorosos estão inteiramente presentes em sua ética e estética de vida. Percebe-se nitidamente, em Leila, uma postura de transgressão simbólica, estilo que encerra a afirmação de uma contralegitimidade, por exemplo, pela intenção de dessacralização dos valores da moral e da estética dominantes, através de um comportamento sexual livre, de uma linguagem irreverente e sem censuras, da imposição de novos padrões estéticos e ruptura de tabus sociais (como a exibição da barriga grávida de biquíni), antítese quase perfeita do moralismo de determinados grupos que exigiam, nos anos 1960, um comportamento feminino sério e regrado.

Nem toda mulher é “meio Leila Diniz”...

O corpo de Leila Diniz (e de muitas mulheres de sua geração) era um corpo voltado para o prazer, para o livre exercício da sexualidade, que exibia sua beleza e plenitude à luz do sol. O corpo de muitas mulheres de hoje, como constatei na pesquisa realizada com indivíduos das camadas médias urbanas cariocas, é um corpo controlado, mutilado, que prefere a escuridão para esconder suas imperfeições. Em pouco mais de três décadas, assistimos a uma enorme transformação do corpo carioca: do exercício do prazer à busca da perfeição estética, da liberdade à submissão aos modelos, do erotismo à falta de desejo. Concluo, então, com a constatação de que, no Brasil do século XXI, estamos muito longe de poder afirmar que “toda mulher é meio Leila Diniz”.

IHU On-Line - A guerra entre os sexos foi intensificada com a libertação feminina. De um lado as mulheres reclamam da falta de homens e de outro os homens sentem-se pressionados pelas crescentes exigências femininas. O que a senhora destaca sobre essa discussão de lutas entre os gêneros?
Mirian Goldenberg
- Para mim, a questão central na discussão sobre a igualdade de gêneros se refere ao papel masculino no domínio doméstico, especialmente com relação à paternidade. A Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou, por unanimidade, o projeto que aumenta de quatro para seis meses o período da licença-maternidade. A autora do projeto, senadora Patrícia Saboya (PDT-CE), comemorou dizendo: “Está na hora de respeitar a mulher brasileira e as crianças”. Aplaudimos veementemente a aprovação do projeto, o reconhecimento e a valorização da maternidade. Mas perguntamos: não está também na hora de respeitar o homem brasileiro, ou melhor, a paternidade? Aparentemente não, pois a mesma senadora propõe um projeto para aumentar a licença-paternidade de cinco para 15 dias, com o objetivo de que os pais possam “ajudar” as mães nos primeiros dias de vida do bebê.

Homens mais ativos na criação dos filhos

Para ilustrar com uma realidade oposta, na Suécia, a licença de mais de um ano para cuidar do recém-nascido é para ambos os pais. O casal pode decidir quem ficará sem trabalhar para cuidar do bebê: o pai ou a mãe. A proposta visa estimular os homens a assumir um papel ativo na criação dos filhos e propiciar uma divisão mais igualitária das tarefas domésticas.

Todos sabem que os meses iniciais são fundamentais para assegurar a adaptação do bebê ao mundo, o que significa que cuidar de um recém-nascido é muito mais do que apenas garantir o aleitamento materno. Esse tempo é necessário para estabelecer o vínculo afetivo com a criança, indispensável para o seu desenvolvimento emocional e social.

Cinco (ou 15) dias são suficientes para que o pai participe da formação emocional e social da criança, enquanto a mãe deve dedicar seis meses exclusivamente a essa tarefa? É possível pensar em uma efetiva igualdade entre os sexos quando a mulher detém, quase exclusivamente, o direito e o dever de cuidar dos filhos? Esse cuidado não pode (e deve) ser igualmente compartilhado pelos homens?
É verdade que muitos homens recusam ou duvidam da própria competência para o exercício da paternidade. Contudo, é fácil constatar, inclusive com a notável discrepância entre os dois projetos, que aqueles que querem exercer plenamente a paternidade estão impedidos de cuidar de seus filhos, já que as mulheres são percebidas como as legítimas detentoras do saber e do poder nesse âmbito. Elas são consideradas as únicas realmente necessárias no momento inicial de vida, cabendo ao pai, quando muito, a função de “ajudar” a mãe.

Pais coadjuvantes e mães estrelas?

Limitados a um papel secundário ou terciário (quando o bebê é cuidado pela avó, babá ou empregada doméstica), são ainda acusados de imaturos, ausentes, irresponsáveis, incompetentes e inadequados como pais. Muitas mulheres vivem a maternidade como um poder que não querem compartilhar e percebem os homens como meros coadjuvantes - ou até mesmo figurantes - em um palco em que a principal estrela é a mãe.
Não é possível questionar a suposta superioridade feminina no domínio privado sem enfrentar uma forte reação das mulheres, inclusive de muitas que lutam pela completa igualdade entre os gêneros. Mas não seria exatamente nesse terreno, completamente dominado pelas mulheres, que se enraizaria a mais profunda desigualdade entre os sexos?

É muito difícil transformar uma realidade social quando ela é vista como da ordem da natureza; natureza que é usada para justificar o papel privilegiado da mãe e para marginalizar ou excluir o pai dos cuidados com o recém-nascido. No entanto, não existe absolutamente nada na “natureza” masculina que impeça um pai de cuidar, alimentar, acariciar, acalentar e proteger seu bebê, assim como não há uma “natureza” feminina que dê à mãe a autoridade de se afirmar como a única capaz de cuidar do recém-nascido. Os cinco (ou 15) dias de licença-paternidade e os seis meses de licença-maternidade revelam a enorme desigualdade de gênero em nosso país.

Consolida-se, com esse abismo, o monopólio feminino dos prazeres, encargos e sacrifícios com os filhos. Reforça-se, também, a falta de respeito e de reconhecimento da importância do exercício da função paterna. Sem desmerecer a conquista das mulheres, muito pelo contrário, é mais do que necessário denunciar a injustiça e a discriminação que sofrem aqueles que querem exercer plenamente a paternidade.
Se as crianças de hoje aprenderem que o pai e a mãe podem ser igualmente disponíveis, atenciosos, responsáveis, protetores, presentes e amorosos, é possível que, em um futuro próximo, tenhamos uma verdadeira igualdade entre homens e mulheres e a crença de que em nenhum domínio (público ou privado) um é superior ou mais necessário do que o outro.

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