Edição 248 | 17 Dezembro 2007

“Quando o coração ‘arde’, pega-se no lápis e se deixa a enxurrada sair”

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IHU Online

O artista Paulo Couto Teixeira (Pulika), que ilustrou com seus desenhos a presente edição, fala sobre sua profissão e sua fé e íntima relação entre ambas, já que é “quando o coração arde” que ele consegue produzir sua arte. “Meu desenho é livre, solto e rápido, desobediente a regras”, explica o artista. Pulika ilustrou as edições 133 da IHU On-Line, de 21-03-2005, intitulada Delicadezas do mistério. A mística hoje, e a 169, de 19-12-2005, Mudanças no campo religioso brasileiro. Na edição 159 da IHU On-Line, de 10-10-2005, publicamos um artigo exclusivo de Pulika, intitulado “As cabras do Padre Lyra. Reflexões de um dinossauro aposentado, sensível ao jejum do Frei Cappio”.

 

Artista plástico e secretário de Ação Social e Direitos Humanos da Diocese Anglicana de Brasília, Pulika foi, de 1972 a 1989, técnico do Ipea, onde ajudou a organizar a “Reunião de Trabalho sobre Política de Desenvolvimento Rural do Nordeste (Ipea-Sudene, 1982), e secretariou a Comissão Interministerial para coordenação e elaboração do Projeto Nordeste. Ele é especialista em Planejamento Econômico e Social, pela UnB;  em planejamento do Setor Público, pelo Cende/Ipea; em projetos de desenvolvimento rural integrado, pelo IDE/Banco Mundial; e em Altos Estudos em Política e Estratégia, pelo Caepe-Escola Superior de Guerra. Aposentado desde 1994, pertence ao quadro de inativos do Ministério do Planejamento.

 

IHU On-Line - Como se relacionam a pessoa de Jesus e o cristianismo com o desenho e a arte na sua vida?
Pulika -
A arte é uma expressão incontida, que se manifesta de muitas maneiras. Comigo, é eminentemente plástica. Paulo dizia: “Ai de mim se não evangelizar!”.  Como cristão e artista, digo: “Ai de mim se não desenhar”. Estas coisas saem mescladas de dentro de mim, pois a boca fala do que é abundante no coração, embora eu não me considere nem um cristão exemplar nem um artista acabado. Como a vida é mais preciosa do que a arte, minha arte acaba sendo uma expressão de minha busca de Deus e de minha militância pelo Reino, com todas as esperanças, incoerências e mesmo os paradoxos que isto encerra.

IHU On-Line -  A IHU-On Line já foi ilustrada diversas vezes com sua arte e parece haver um “estilo”, uma certa autoralidade. Como descreveria este estilo?
Pulika -
Desenho e pinto praticamente desde o berço, sempre com muita liberdade. Evidentemente sofri influências, principalmente de Emeric Marcier, do saudoso mineiro-goiano Ruy Mehreb, em Juiz de Fora; e de outros grandes mestres universais, como Rouault, Chagal e Matisse. Entre os clássicos, Caravaggio. Mas sempre fugi dos estereótipos, da cópia, da moda ditada por tendências hegemônicas do mercado da arte. Por isso, percebo que vou construindo o meu traço, num processo muito demorado. Afinal, são mais de cinqüenta anos de arte, e Picasso dizia que “pintura es cosa de viejos”. Ou seja, só depois de uma longa carreira é que começam a surgir os verdadeiros resultados. E eu ainda estou a caminho.

O estilo varia conforme a expressão. Meu desenho é livre, solto e rápido, desobediente a regras. Não por genialidade ao desenhar, mas por ter de render-me à pressa de precisar fazer uma ilustração naquele momento. Na maioria das vezes, meu desenho sai sem rascunho, guiado por “algo” que vem de dentro. E eu acabei me convencendo que a espontaneidade e a intuição conferem um frescor e uma naturalidade que combinam bem com a fragilidade própria do desenho. Ao contrário, minha gravura é muito mais pensada e disciplinada. Faço muitos esboços até chegar onde quero, e mesmo assim abandono muitas matrizes antes de tirar a prova de artista. Como dizia Goeldi, a xilogravura disciplina o desenho. Algumas xilogravuras minhas demoraram muitos meses até ficarem concluídas, e outras não sei quando acabarão. Assim é a gravura, cheia de teimosia.

IHU On-Line -  Em outra oportunidade, você mencionou a necessidade de incrementar, se isso fosse possível, mais linguagens nas nossas reportagens sobre questões de teologia e espiritualidade (perfumes, músicas etc). Como acontece seu processo de criação? Apela a todas essas formas até chegar a esses resultados?
Pulika -
Evidentemente, estas coisas favorecem à criação, mas não são um fator decisivo no meu trabalho. Quando o coração “arde”, pega-se no lápis e se deixa a enxurrada sair. Quanto à variedade das linguagens na produção teológica, de fato nossa tradição é muito presa à expressão escrita, influenciada talvez pela academia. No nível pastoral, você encontra o desenho, mas sempre referindo ao que está escrito. Isto me parece uma limitação em face da grandeza do Mistério, que não cabe numa única linguagem. Sua representação pede uma profusão de expressões e técnicas harmonizadas: palavra, escrita,  imagem, som, cheiro, gosto, tato, tudo que produz algum significado, de maneira diferente. E muito mais que isto, se assim fosse possível conseguir. Certamente. um dia chegaremos lá, mas ainda há muito que esperar. Poucos são os teólogos e, principalmente, as revistas que, como a IHU-On Line, valorizam um desenho ou uma gravura como contraponto de um texto escrito. Além de privar o público-alvo de um leque maior de oportunidades de imersão no objeto do estudo, deixa-se de estimular, nos artistas, o interesse pela pesquisa e pela expressão de temas espirituais e teológicos. E o artista também trabalha muito por demanda. Eu considero que meu trabalho  hoje é muito marcado pelas oportunidades que me são abertas na ilustração, seja na Internet, seja nas publicações de livros, revistas e cartazes em que colaboro.

IHU On-Line - Como o conhecimento científico se complementa com a teologia e a ate na sua visão?
Pulika -
Esta é uma questão teórica complicada para um pobre artista autodidata, inda mais quando rodeado por figuras eminentes da teologia e do labor acadêmico, como estes pensadores formidáveis reunidos aqui. Procurando respondê-la de uma forma mais intuitiva, eu diria que, por um lado, elas são forças que em suas respectivas dimensões se colocam na busca da verdade, do mistério de Deus e de sua criação. Estas três dimensões necessárias se harmonizam de maneira construtiva, pois uma revela o que a outra não consegue alcançar. Uma inspira e desafia a outra, tendendo a uma harmonia final.

Mas o que coloca cada uma no seu lugar é a História. No início, havia arte e teologia, sendo a arte puramente cultual - primeiro mágico e depois religioso. O desenvolvimento do conhecimento e o surgimento da ciência foi colocando a teologia e a arte em seus lugares. A teologia deixou de ser uma panacéia que explica e justifica tudo, e a arte emancipou-se de uma situação parasitária em relação à teologia e ao culto, dando origem à arte pela arte, que, no entender de um crítico como Walter Benjamin, é no fundo uma teologia da arte. Enfim, teologia e arte dão sabor e alegria ao conhecimento científico. Penso que o mundo seria muito chato sem a teologia e sem a arte, essas duas comadres que se dão muito bem.

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