Edição 247 | 10 Dezembro 2007

Pampa: uma fronteira em extinção

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IHU Online

“O impacto da silvicultura sobre as aves ainda é local, pois os plantios estão recém-começando”, comenta o biólogo Glayson Bencke. No entanto, percebendo os exemplos de nossos vizinhos argentinos e uruguaios, é evidente que esses plantios causarão drásticas reduções nas populações de aves ameaçadas de extinção. Como todas as produções de monocultura que já se implantaram no Brasil, alerta Bencke, os eucaliptos também empobrecerão a fauna e a flora, pois “as populações de animais e plantas que ali vivem perdem o contato com outras espécies”.



Bencke é graduado em Zoologia, pela Unisinos, e pós-graduado na mesma área, pela UNESP de Rio Claro, São Paulo. Especialista em aves, ele atua como pesquisador do Museu de Ciências Naturais da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul.

O pesquisador foi entrevistado pela IHU On-Line, em 7-8-2006, na edição 190, intitulada Pampa. Silencioso e desconhecido. A entrevista “Monoculturas podem decretar o fim dos pampas” está disponível na nossa página eletrônica (www.unisinos.br/ihu).

IHU On-Line - Em que o senhor fundamenta a idéia de que as monoculturas podem decretar o fim do pampa como uma grande unidade natural?
Glayson Bencke -
O pampa é a “bola da vez” no que se refere à expansão do setor madeireiro, particularmente o relacionado à produção de celulose e papel. É uma das últimas - senão a última - grande fronteira para a expansão dessa atividade em escala mundial, pois tem terras abundantes e relativamente baratas, onde não é preciso desmatar nem competir com a agricultura. Por isso é que as grandes companhias multinacionais do setor estão acorrendo tão avidamente à região.

Nós não podemos subestimar nem negligenciar o impacto da expansão em larga escala dessa atividade no pampa, pois já há exemplos em outros lugares do mundo que nos dão razões de sobra para ficarmos preocupados e para sermos prudentes. Na África do Sul, por exemplo, as plantações de eucaliptos e pínus somam mais de 1,5 milhões de hectares. Apesar de essa área representar menos de 2% da superfície daquele país, a expansão da atividade até este ponto já causou numerosos e graves impactos sociais e ambientais, como a redução da disponibilidade de água em rios e riachos e o desaparecimento de espécies da fauna e flora campestres através de vastas áreas. Tal como no pampa, lá as plantações foram estabelecidas principalmente em uma região de campos nativos, o que quase causou o colapso de toda essa região natural. Repetir aqui esse modelo de expansão econômica é, no mínimo, desrespeitar o nosso direito constitucional a um ambiente saudável e diversificado.

Olhando mais proximamente, nós vemos que a região dos Campos de Cima da Serra, um dos maiores cartões de visita turísticos do Rio Grande do Sul, já está chegando a uma situação crítica por causa da expansão desenfreada dos plantios de pínus, aos quais se somam as lavouras de batata, introduzidas mais recentemente. E olha que lá nem houve incentivo governamental para os plantios! Hoje, municípios belíssimos como Cambará e São Francisco de Paula vêem seus planos de expansão do setor turístico ameaçados pela silvicultura em larga escala, sem que sequer esta atividade tenha trazido progresso real e melhorias na qualidade de vida da região. Áreas similares, em Santa Catarina e sul do Paraná, estão em situação muito parecida.

Em resumo, se não planejarmos muito bem a expansão da silvicultura no pampa, respeitando limites que assegurem o bem-estar das pessoas e dos ecossistemas naturais, não há dúvida de que, num futuro não muito distante, poderemos assistir ao colapso do bioma pampa como uma grande unidade natural. É importante lembrar, também, que as grandes monoculturas em geral trazem consigo outros impactos associados. Na África do Sul, exemplo a que me referi anteriormente, o plantio de eucaliptos e pínus em 1,5 milhões de hectares de campos naturais causou a degradação de outros 1,6 milhões de hectares de campos, que foram invadidos por árvores exóticas e se converteram em bosques improdutivos. Quem conhece a região de Mostardas e Tavares, no litoral médio do Rio Grande do Sul, sabe que essa realidade não está distante de nós. Ali as faixas de domínio da BR 101 e grande parte dos campos que não são submetidos a um manejo intensivo já foram invadidas por pínus, desvalorizando as terras e onerando o seu manejo. Quem pagará por isso?

IHU On-Line - Muitos ambientalistas são contrários à plantação de eucalipto e argumentam que o aumento da produção, no pampa gaúcho, pode gerar a salinização do solo. Até que ponto a expansão do plantio de eucalipto pode prejudicar o solo?
Glayson Bencke -
Eu creio que este é um problema menor no pampa gaúcho. Na Argentina, porém, já foram constatados problemas sérios de salinização do solo em conseqüência de plantios de árvores onde antes só havia campos. O problema ocorre porque as raízes das árvores atingem camadas do solo bem mais profundas do que as raízes dos capins e ervas que predominam nos campos naturais. Assim, as árvores movimentam depósitos de água e sais minerais que as ervas do campo normalmente não utilizam, trazendo esses elementos à superfície. O acúmulo na superfície pode decretar até mesmo a morte dos próprios eucaliptos, como já constatado no Pampa argentino. Felizmente, a maior parte do pampa no Brasil parece não possuir solos suscetíveis a esse tipo de problema. Mas é preciso ficar atento, pois em algumas regiões ele pode se manifestar, especialmente onde o solo é sedimentar e profundo.

IHU On-Line - As aves endêmicas do pampa gaúcho já estão sofrendo as conseqüências dos mega empreendimentos de eucalipto, na região?
Glayson Bencke -
As aves do pampa em geral já sofrem com a substituição dos campos naturais por agricultura e pelo sobrepastoreio dos campos em muitas regiões. A silvicultura é um impacto que se soma aos demais, piorando a situação dessas espécies. No pampa gaúcho, o impacto da silvicultura sobre as aves ainda é muito local, pois os plantios estão recém-implantados ou em fase de licenciamento. Mas na Argentina e Uruguai, onde os plantios começaram há cerca de 30 anos atrás, as entidades científicas e ambientalistas já denunciam que os plantios estão causando drásticas reduções nas populações de aves ameaçadas de extinção do pampa.

IHU On-Line - Se a fauna dos campos do pampa está adaptada a viver em ambientes abertos, como elas sobreviverão num ambiente coberto por florestas?  O senhor tem dados de quantos animais, atualmente, estão em extinção na região?
Glayson Bencke -
A resposta é simples. A imensa maioria das espécies da fauna - e também da flora - dos campos da região do pampa não sobrevive em ambientes sombreados como plantações de eucaliptos. Elas não estão adaptadas a viver nesses ambientes, assim como animais e plantas de florestas também não conseguem sobreviver em ambientes abertos. Neste sentido, plantar árvores em campos pode ser comparado a realizar o corte raso em uma floresta nativa: as condições de luz, umidade, estrutura do hábitat e disponibilidade de alimento mudam tão radicalmente que são pouquíssimas as espécies que conseguem tolerar essa mudança. Além de eliminar o habitat natural das espécies campestres, a substituição dos campos por plantios florestais também impõe barreiras à dispersão dessas espécies. Assim, campos isolados por plantios florestais podem ter sua fauna e flora empobrecidas porque as populações de animais e plantas que ali vivem perdem o contato com outras populações de suas espécies. O mesmo acontece quando fragmentamos e isolamos demais uma floresta.

Atualmente, cerca de 40 espécies de animais que habitam campos estão ameaçadas de extinção no pampa gaúcho, como o veado-campeiro, o lobo-guará, o gato-palheiro e aves, como a noivinha-de-rabo-preto, a águia-cinzenta, o veste-amarela e a corruíra-do-campo. No caso dessas espécies, a silvicultura em larga escala não foi o principal fator responsável pela redução de suas populações no Estado, mas agora pode decretar o seu fim, pois representa um impacto novo que se soma aos demais e que avança a um ritmo muito acelerado.

IHU On-Line - O que os novos empreendimentos das empresas papeleiras irão significar para a metade sul do Rio Grande do Sul? Como será possível manter o ecossistema deste bioma?
Glayson Bencke -
Vão significar uma mudança radical na forma de uso da terra em vastas áreas da região, que há séculos vem sendo utilizada principalmente para a pecuária de corte. E é justamente com uma pecuária forte e responsável, praticada em pastagens nativas, que será possível manter o pampa. A pecuária é a vocação econômica natural do pampa, pois não requer a conversão dos ecossistemas para haver produção. Respeitando a legislação, ajustando a carga animal de acordo com a capacidade de cada região e incorporando ao manejo tradicional dos campos nativos algumas práticas ambientalmente benéficas, simples e de baixo custo para o produtor, é plenamente possível conservar a grande maioria das espécies do pampa, não tenho dúvidas. E essa história de que a pecuária de corte é uma atividade pouco lucrativa e decadente é conversa para boi dormir. Faz parte de uma estratégia para desvalorizar os usos atuais do pampa para que alternativas econômicas que venham de fora se implantem com menor resistência da sociedade, pois aparecem como a “salvação da lavoura”.

Além disso, há maneiras de transformar os empreendimentos que estão sendo implantados em boas oportunidades de conservação. Por exemplo, se as empresas do setor comprassem e efetivamente conservassem grandes áreas de campo adjacentes às propriedades onde implantam as monoculturas, teríamos uma compensação de fato dos impactos da atividade e uma menor probabilidade de se formarem imensos maciços silviculturais, que, no caso do eucalipto, têm impacto maior do que várias plantações menores e distanciadas entre si. As empresas que fizessem isso e respeitassem um zoneamento ambiental para a silvicultura colheriam bons frutos em termos de imagem.

IHU On-Line - O bioma pampa, com suas características naturais, poderá sustentar o novo modelo econômico que está sendo introduzido na região?
Glayson Bencke -
Nós podemos considerar a introdução da silvicultura em larga escala no pampa como um novo ciclo econômico, comparável a outros que tivemos no Brasil no passado, como o ciclo da cana-de-açúcar e do café, no período colonial, ou o da soja, mais recentemente. O saldo de destruição que estes ciclos econômicos geraram é conhecido de todos. O ciclo da cana-de-açúcar acabou com a Mata Atlântica do Nordeste. O do café praticamente eliminou as florestas de interior na região Sudeste. E a soja ocupou vastas áreas no Sul, acabou com 80% do Cerrado do centro do país e está alavancando a destruição da floresta amazônica. Da forma como a silvicultura vem sendo introduzida no pampa, nós podemos esperar um resultado similar no pampa. Foi feito um esforço muito grande para identificar até que limites esta atividade pode ser desenvolvida em cada região do Rio Grande do Sul sem comprometer a paisagem e os recursos naturais, incluindo fauna, flora e recursos hídricos. Esse esforço resultou em um zoneamento para a atividade no Rio Grande do Sul. Esse instrumento de gestão e planejamento, pioneiro no Brasil, tem tudo para render bons frutos. Inclusive foi bastante elogiado pela comunidade científica e teve seu uso preconizado pelo Ibama e Ministério Público Federal. Mas foi duramente atacado e combatido por aqueles que tiveram seus interesses contrariados, como representantes das empresas, políticos e movimentos corporativistas (especialmente o dos engenheiros florestais). Isso, diante da atitude parcial do estado, tem impedido a construção de um documento de consenso através de uma discussão madura. Enquanto continuarmos limitando nossas discussões a argumentações passionais, interesseiras e corporativistas, não caminharemos no sentido de uma inserção segura da atividade de silvicultura no pampa.

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