Edição 247 | 10 Dezembro 2007

Zoneamento Ambiental da Silvicultura. Um documento morto?

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IHU Online

Sem legislação e fiscalização adequada, ao efetuar o plantio de eucalipto ou pínus em 750 hectares em uma “hipotética propriedade de 1.000 hectares”, “legalmente, o empreendimento está regular frente aos órgãos ambientais, mas sua implantação promoveu o desaparecimento de 750 hectares de vegetação natural”, explica o ecólogo Marcelo Madeira, em entrevista concedida à IHU On-Line. É dessa maneira que muitos empreendedores e produtores de eucalipto vêm agindo no pampa gaúcho, ao mesmo tempo em que erguem a bandeira da preservação ambiental. Nesses casos, alerta Madeira, não se pode falar em sustentabilidade ambiental, pois, com a introdução desses mega-empreendimentos, “áreas com vegetação remanescentes conservadas estão sendo suprimidas”.


Marcelo Madeira é graduado em Ecologia, pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e mestre na mesma área, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, ele é chefe da Divisão Técnica (DITEC) da Superintendência do IBAMAS/RS, onde atua como coordenador do Grupo de Trabalho do Bioma Pampa (GT).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O pampa gaúcho sofre, atualmente, um momento de crise com o avanço de mega-empreendimentos propostos pelas empresas de celulose? Qual é a sua avaliação? 
Marcelo Madeira -
Não sei se “crise” seria o termo mais adequado. De qualquer forma, em razão de fatores como os menores custos de produção e o clima propício, o bioma pampa como um todo, considerando-se áreas do Brasil, Argentina e Uruguai, está se transformando num pólo mundial para a silvicultura e produção de celulose. E, dada a magnitude e a escala dos empreendimentos de silvicultura e celulose projetados e já em instalação no Rio Grande do Sul, não há dúvidas de que, se não forem bem planejados e conduzidos, estes empreendimentos certamente terão impactos negativos, principalmente de caráter ambiental, sobre o bioma. No caso do Brasil, o agravante é que estamos falando de uma atividade que pretende abranger quase que a totalidade de um bioma que só existe no Rio Grande do Sul. Ironicamente, foram justamente estes empreendimentos, concentrados em três grandes empresas, que fizeram com que parte da sociedade gaúcha se desse conta da importância e das ameaças que o pampa vem sofrendo. O plantio de árvores exóticas representa um novo ciclo econômico na metade sul do estado e temos que evitar que se repitam erros cometidos em outros ciclos econômicos vividos pela região no passado, como foi o caso da expansão das lavouras de arroz na década de 1970 e no início dos anos 1980. O aumento da área plantada se deu ao custo, muitas vezes, da drenagem de extensas áreas de banhados nas regiões sul e oeste do estado, inclusive com chancela e apoio governamental por meio do Programa Pró-Várzeas.   

Não podemos deixar de mencionar ainda que os impactos ambientais destes tipos de empreendimentos são de tal monta que dois países, Argentina e Uruguai, vivenciam, há mais de um ano, uma crise diplomático-ambiental inédita em razão da instalação de indústrias de celulose no lado uruguaio do rio Uruguai.

IHU On-Line - Considerando a vegetação típica do pampa gaúcho e o discurso da responsabilidade social das empresas, a introdução de eucaliptos pode ser considerada uma incoerência da sustentabilidade das empresas?
Marcelo Madeira -
Depende da forma como forem implantados os cultivos. Antes de mais nada, é importante esclarecer que é incorreta a idéia de que a atividade da silvicultura, ao plantar árvores exóticas no pampa, é benéfica em termos de conservação ambiental porque promove o “florestamento” ou “reflorestamento” de áreas sem árvores. Uma floresta, diferentemente de uma lavoura de árvores exóticas, é um ecossistema natural, com diversidade de fauna e floras nativas. Além disso, o pampa típico não tem e nunca teve florestas. Trata-se de um bioma onde predominam ecossistemas de campo, sendo estes, uma de suas maiores riquezas.

Do ponto de vista da conservação, existe uma incoerência evidente se os plantios de árvores exóticas foram feitos em substituição a áreas de campos naturais, por exemplo, mesmo se reservando parte das áreas adquiridas para conservação, sob a forma de áreas de preservação permanente ou reservas legais, exigidas pela legislação. Pode-se até falar em legalidade do ponto de vista da obediência à legislação ambiental, mas não em sustentabilidade ambiental sob um ponto de vista mais amplo, pois áreas com vegetação remanescente conservadas estão sendo suprimidas. Aqui, cabe lembrar que, segundo levantamento recente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Ministério do Meio Ambiente, só restam cerca de 40% das áreas originalmente cobertas com vegetação natural no pampa gaúcho. E, para piorar a situação, o pampa não dispõe de um amparo legal específico que garanta maior proteção para o bioma. O que não podemos fazer é esperar que o pampa chegue ao patamar de remanescentes da Mata Atlântica, por exemplo, que tem hoje somente cerca de 7% de sua cobertura original, para tomarmos medidas mais fortes em prol de sua conservação.

Outro mito, muito alardeado por alguns e que deve ser contestado, é o pretenso benefício das plantações de árvores no pampa para a captura de dióxido de carbono da atmosfera, que serviria como uma grande contribuição da atividade na luta contra o aquecimento global. Essa é uma idéia falsa, pois não considera que as áreas de campos nativos substituídas por plantios de árvores também contribuem para a absorção e armazenamento do carbono. Desconsidera ainda que, mais cedo ou mais tarde, o carbono armazenado nas árvores certamente voltará à atmosfera, após estas serem cortadas e, de alguma forma, aproveitadas pelo homem. E não estamos aqui nem computando as emissões de gases estufa geradas ao longo da cadeia produtiva da silvicultura e celulose.

IHU On-Line - Como o senhor avalia a atuação do governo gaúcho frente às questões ambientais? O governo estadual e os órgãos de proteção ambiental estão sendo levianos com as pressões das empresas de celulose que pretendem atuar no estado? 
Marcelo Madeira -
No que se refere ao governo gaúcho e às pressões das empresas de celulose no Rio Grande do Sul, parece haver um descompasso entre as áreas técnicas e diretivas de instituições como a Fepam, que foi justamente a coordenadora da elaboração do Zoneamento Ambiental da Silvicultura. Neste aspecto, já é pública a manifestação de um Grupo de Trabalho (GT) Técnico do Bioma Pampa instituído no âmbito da Superintendência do IBAMA/RS. Em seu parecer sobre a proposta de Zoneamento Ambiental para a Silvicultura no Rio Grande do Sul, o GT não pôde se furtar de demonstrar preocupação principalmente com iniciativas do governo do estado – edição de portarias da Fepam, por exemplo –, que procuraram desconstituir ou dificultar a adoção do Zoneamento Ambiental da Silvicultura, instrumento elaborado por técnicos do próprio estado e que é de fundamental importância para o planejamento da implantação dos projetos de silvicultura e celulose no Rio Grande do Sul.

Ainda no entendimento do GT do Ibama/RS, outras duas ações do governo do estado que flexibilizam ou negligenciam normas ambientais são a assinatura do Termo de Compromisso Ambiental (TCA) entre governo estadual e o Ministério Público Estadual e a não utilização do Zoneamento Ambiental da Silvicultura nos processos de autorização/licenciamento ambiental no Rio Grande do Sul.

De conhecimento mais recente e do ponto de vista de um balanço das autorizações e licenças para a silvicultura emitidas pela Fepam até o momento, merece atenção um parecer do Ministério Público Federal, que embasa uma Ação Civil Pública em tramitação sobre o tema na Justiça. Neste documento, o Ministério Público Federal faz uma avaliação bastante dura da atuação da Fepam nesta matéria. O Ministério alega que ocorrem ilegalidades e descontrole ambiental decorrente dos procedimentos de autorização e licenciamento ambiental para a silvicultura pela Fepam. Entre as ilegalidades apontadas, estaria a emissão de autorizações para plantios em substituição à realização de Estudos de Impactos Ambientais (EIA/RIMAs) exigidos por lei.

IHU On-Line - No caso específico da região do pampa, como o senhor percebe as políticas de zoneamento na área? Elas são elaboradas com o objetivo de preservar o nosso patrimônio natural?
Marcelo Madeira -
Sim, se considerarmos o Zoneamento Ambiental da Silvicultura elaborado sob a coordenação da Fepam/FZB  em sua primeira versão apresentada ao Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema). Trata-se do único zoneamento ambiental feito para a região e que poderá servir, inclusive, como base para outros zoneamentos com vistas à implantação de outras culturas agrícolas na região, como a mamona e a cana-de-açúcar, que começam também a ser implementadas no pampa.

A adoção das Unidades de Paisagem Natural (UPN) como unidades de planejamento pelo Zoneamento contempla as vulnerabilidades e potencialidades ambientais, valorizando a conservação da biodiversidade e dos recursos hídricos. A partir do cruzamento de informações como remanescentes de vegetação nativa, espécies ameaçadas de extinção, disponibilidade de água e tipos dos solos, o Zoneamento Ambiental estabelece limites ao plantio de árvores exóticas para cada uma das UPNs.

O Zoneamento Ambiental para a Silvicultura ganha especial importância, tendo em vista a área de vegetação nativa já suprimida no bioma (60%) e a pouca representatividade da flora e fauna típicas do pampa protegidas em Unidades de Conservação. Se considerarmos a área do pampa “strictu sensu”, localizada principalmente na metade sul do estado e a oeste da Lagoa dos Patos até os limites com a Argentina e o Uruguai, é irrisória a área em unidades de conservação de proteção integral, não alcançando nem 7.000 hectares, ou cerca de 0,04% do Bioma.

O Zoneamento da Fepam vem sendo criticado por alguns segmentos que o consideram restritivo demais. Quanto a este ponto, a posição do GT Pampa/IBAMA RS é de que são possíveis ajustes pontuais no Zoneamento, devendo ser preservados, entretanto, os critérios, a estrutura e as diretrizes gerais do documento original.

IHU On-Line - Além dos impactos ambientais que serão causados pelas plantações de eucaliptos e pínus, o senhor vislumbra uma ruptura cultural nesta região?
Marcelo Madeira -
Pela abrangência dos empreendimentos, se não houver algum regramento geral a ser seguido para a implantação dos mega-projetos propostos, corremos o risco de uma modificação significativa da fauna e flora do pampa, com reflexos diretos no modo de vida das populações da região e na paisagem típica do bioma. No momento em que ocorre a substituição de uma paisagem natural e sua atividade econômica típica, no caso a pecuária extensiva, não há como negar uma forte ruptura cultural. Podemos imaginar o pampa sem o gaúcho, mas o gaúcho sem o pampa e seus amplos horizontes, fica difícil.

IHU On-Line - Em que regiões as plantações de eucaliptos poderiam ser realizadas sem causar grandes impactos socioeconômicos e ambientais?
Marcelo Madeira -
Os novos plantios deveriam prioritariamente ser feitos em áreas que já vêm sendo utilizadas para a agricultura, portanto destituídas da vegetação natural de campos, e que não apresentam problemas de deficiência hídrica.

E, em relação à proporção de áreas do pampa já em uso intensivo, esta não é nada desprezível. Conforme já exposto, não temos mais do que 40% de vegetação nativa no pampa. Do ponto de vista da conservação, o agravante é que estes dados são dos anos de 2002/2003 e não consideram as áreas de campo com infestação de capim annoni , espécie exótica e que representa séria ameaça à biodiversidade dos nossos campos. Desta forma, as áreas de campos relativamente bem conservados é certamente menor ainda que os 40% levantados pela UFRGS/MMA.

Em termos de áreas mais ou menos propícias e do ponto de vista macro, do bioma como um todo, deve ser restrito o plantio nas chamadas Áreas Prioritárias para a Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade no bioma pampa. São 105 áreas definidas a partir de estudos e discussões técnicas num processo coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente e concluído no final de 2006. Elas foram reconhecidas por uma portaria do Ministério do Meio Ambiente e devem ser consideradas para efeito das políticas públicas. O mapa das áreas prioritárias e o mapa dos remanescentes da vegetação natural do bioma pampa foram as maiores contribuições do governo federal para o Zoneamento, tendo sido incorporados em sua versão primeira elaborada pela Fepam/FZB.

IHU On-Line - As empresas papeleiras argumentam que atuam dentro dos princípios da ecoeficiência, respeitando o meio ambiente. Qual é a sua percepção sobre isso? No pampa gaúcho, essas atitudes são consideradas?
Marcelo Madeira -
Do ponto de vista legal e sem se considerar a adoção de qualquer tipo de zoneamento, pode-se considerar correto, por exemplo, numa hipotética propriedade de 1.000 hectares, efetuar-se o plantio de eucaliptos ou pínus em 750 hectares de campos nativos desde que resguardados 200 hectares (20%) relativos à reserva legal e mais 50 hectares caracterizados como áreas de preservação permanente, conforme exigido pela legislação ambiental. Legalmente, o empreendimento está regular frente aos órgãos ambientais, mas sua implantação promoveu o desaparecimento de 750 hectares de vegetação natural. No contexto atual de conservação do pampa, não me parece sustentável substituir tamanha proporção de áreas naturais por plantios, quaisquer que sejam, eucalipto, pínus, soja etc. Esta situação aponta a necessidade de que sejam tomadas medidas no sentido de aumentar a proteção do bioma pampa, inclusive em termos de legislação específica voltada à sua conservação e uso sustentável.

Destaque-se que o próprio Ministério do Meio Ambiente defende uma posição clara de que o desenvolvimento da silvicultura com espécies florestais exóticas nos biomas brasileiros não deve provocar a supressão de vegetação nativa conservada.

Neste contexto, a adoção do Zoneamento Ambiental da Silvicultura poderia garantir a real sustentabilidade dos empreendimentos em implantação no estado. Entretanto, estamos chegando no final de mais um ano, e as autorizações e licenças continuam a ser expedidas sem a aplicação do Zoneamento.

Lamentavelmente, tudo leva a crer que o Zoneamento da Fepam seja considerado um documento morto a partir da realização das audiências públicas relativas aos EIA/RIMAs dos três mega-projetos em implantação no estado, programadas para ocorrer ainda neste mês. Cumprida a exigência de realização das audiências, a qualquer momento a Fepam poderá emitir as licenças ambientais que faltam, sacramentando a implantação da silvicultura no Rio Grande do Sul, sem qualquer tipo de zoneamento. 

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