Edição 244 | 19 Novembro 2007

Antônio Vieira, o pregador da Palavra

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Cláudia Cristina Couto é doutoranda em Literatura Portuguesa, na PUC-Rio. Em seu mestrado, também na PUC-Rio, cuja dissertação recebeu o mesmo título desta entrevista, teve a orientação da professora Cleonice Berardinelli , que a conduziu pela obra do Padre Antônio Vieira, sobretudo por seus Sermões. “Em suas mãos, a língua portuguesa torna-se plástica, moldável, viva como um ser de carne e osso”, destaca a pesquisadora. Nesta entrevista, Cláudia nos fala sobre o grande orador que foi o jesuíta, destacando o modo como denunciava as injustiças através de suas palavras e as conseqüências de suas pregações.

IHU On-Line - Como você se aproximou da obra do Padre Antônio Vieira?
Cláudia Cristina Couto –
Iniciei a minha pesquisa sobre o Padre Antônio Vieira em 2003, no mestrado em Letras da PUC-Rio. Orientada pela professora Cleonice Berardinelli, escrevi a dissertação “Vieira, o pregador da Palavra”. Nela, apresentei uma pequena biografia de Vieira e de Inácio de Loyola, o seu grande mestre. Analisei, desde a sua gênese, a Reforma e a Contra-Reforma, a sua influência sobre Vieira e o posicionamento deste diante desses dois movimentos que mudaram a história da Igreja. Examinei o Barroco, que tanto influenciou Vieira com suas tendências e características, e o interesse da Igreja em dele se apropriar para transformá-lo em sua arma de divulgação.
 
IHU On-Line - Que textos foram selecionados para esse trabalho?
Cláudia Cristina Couto –
Selecionei alguns sermões para comprovar minhas propostas. Comecei pelos que se intitulam “As cinco pedras da funda de Davi”, pesquisando a questão do conhecimento de si mesmo, abordada por Vieira através das parábolas e histórias bíblicas por ele privilegiadas. Nos sermões do Rosário, referentes aos negros, atentei para seu forte cunho social e político, sua dura crítica aos senhores de engenho. Nos sermões do Mandato, tratei da contraposição do amor divino ao humano, destacando a questão do “fino amor”, proposta por Vieira, exposta através do contraste entre a fineza dos dois amores, o divino e o humano, este sempre duvidoso.
 
IHU On-Line - E, atualmente, no doutorado, qual é a sua linha de pesquisa?
Cláudia Cristina Couto –
Prossigo na minha pesquisa com uma tese que se intitula “Das palavras à Palavra: o semear do Padre Antônio Vieira”. Para esse trabalho, selecionei alguns sermões para expor como o orador utilizou o discurso religioso na divulgação da palavra divina e desenvolveu sua habilidade no trabalho com as palavras. Convicto divulgador da palavra, que ele transmitia através do discurso religioso – mais propriamente, através de seus sermões, sabia usar a língua portuguesa com maestria inigualável para persuadir, encantar e seduzir os ouvintes. Apropriando-se da palavra divina, defendeu os negros e os judeus e divulgou o imenso amor de Deus pelos homens. Conhecendo em profundidade a força do discurso, Vieira buscou nas figuras o apoio necessário para persuadir os ouvintes, conseguindo o efeito esperado: a admiração do auditório, diante da engenhosidade do seu discurso.
 
IHU On-Line - Por que ainda é tão difícil a divulgação da obra de Vieira?
Cláudia Cristina Couto –
A obra do Padre Vieira se divide em três grandes áreas: os sermões, as cartas e os escritos proféticos, sendo que a estes últimos ele dava mais importância.  História do futuro e outros manuscritos foram escritos em português. Somente a Clavis Profetarum (Chave dos Profetas) foi redigida em latim, língua que Vieira tinha pleno domínio. Esta obra ficou inconclusa. Acredito que o Padre Antônio Vieira seja um dos autores mais importantes da literatura portuguesa, e menos estudando por causa do gênero pelo qual optou, o sermão, que não é tão bem recebido como o romance ou a poesia. Ele escreveu uma série de sermões do Mandato, em que celebra o amor de Cristo, demonstrando que este amor é o mais perfeito de todos. O amor do homem é inconstante e volúvel, como a sua própria natureza. O amor de Deus é eterno e verdadeiro, um amor que dá a vida para nos salvar. Nestes sermões, Vieira mostra sua fé segura e inabalável.

IHU On-Line - Conte-nos um pouco da trajetória de Vieira no Brasil...
Cláudia Cristina Couto –
O orador veio para o Brasil aos seis anos de idade. Entrou para a Companhia de Jesus aos 15 e, em 1641, fez a sua primeira viagem a Portugal, como um dos três enviados do governador do Brasil, para saudar o rei D. João IV. Logo, conquistou a simpatia deste, tornando-se seu conselheiro e amigo durante toda a vida: nada abalou sua forte amizade. Através dela, Vieira gozou de grande prestígio e poder na corte. Depois da morte do rei, perdeu estes privilégios. Vieira esperava que cada um dos homens desse aos outros aquilo que de melhor Deus lhe deu. Era um homem aberto, esclarecido e muito corajoso. Empenhou-se em favor dos judeus, índios e negros. À defesa destes últimos, dedicou três dos seus belos sermões do Rosário, que pregou diante dos senhores de engenho, todos em ternos brancos e engomados, tendo atrás, de pé, os negros. Vieira, corajosamente, dirigiu-se a estes, e disse ver neles o Cristo. Como os negros, Cristo foi injuriado, maltratado, cuspido. Deviam, pois, sentir-se eleitos e privilegiados. Imagine-se a revolta e a comoção que tais sermões provocavam!
 
IHU On-Line - Fale-nos um pouco da atuação do pregador junto aos índios...
Cláudia Cristina Couto –
Em sua ação missionária, veio ao norte do Brasil catequizar os índios, confirmando o objetivo da Companhia de Jesus, que era levar a palavra de Deus, convertendo e catequizando os povos que a desconhecessem. Para isso, seguia os ensinamentos de Paulo, em Colossenses 3:11, “Não há negro ou judeu, circunciso ou incircunciso, bárbaro, cita, escravo ou homem livre, pois Cristo é tudo em todos”. Vieira critica, com força, o comportamento dos colonos para com os índios, condenando a sua ambição, usura, cobiça. Através dos sermões, demonstra que o cativeiro imposto ao índio é contrário à lei da natureza, e denuncia com imagens fortes o ócio em que vivem os colonos, graças ao trabalho escravo dos indígenas. Depois de muitas contendas e rivalidades entre jesuítas e colonos, aqueles são finalmente expulsos. Conseguem, depois, retornar à missão, com uma ressalva: retornariam todos, menos o Padre Antônio Vieira. Por esta proibição, percebemos o quanto o orador incomodava.

IHU On-Line - E como defendeu os judeus?
Cláudia Cristina Couto –
Minoria em sua época, perseguidos, humilhados, mas ricos, defendeu-os o orador com bravura, justificando a sua permanência no reino como forma de garantir a estabilidade econômica de Portugal. Mas não era só este o motivo que o justificava perante si mesmo: ele acreditava que Portugal deveria ser a capital do império universal de Cristo e, portanto, quanto mais judeus houvesse à época dos prodígios, que se aguardavam, para esse momento solene, mais convertidos haveria para a glória de Portugal e de Deus. Empenhou-se pela admissão, no reino de Portugal, dos judeus foragidos e pela moderação das práticas da Inquisição. Ele sabia da importância do convívio pacífico e respeitoso com esse povo e de sua contribuição social e econômica.

IHU On-Line - Certamente, por causa de sua defesa dessas “minorias”, ele deve ter sofrido retaliações...
Cláudia Cristina Couto –
Vieira irá defrontar-se com a prática da Inquisição. Um dos motivos de sua prisão seria a defesa dos judeus e cristãos-novos, sobretudo a escrita da carta “Esperança de Portugal, Quinto Império do Mundo”, em que anunciava a ressurreição de D. João IV. Às acusações responde: era certo haver anunciado a ressurreição de D. João IV, em uma carta que enviara à Rainha viúva, mas a função deste papel era servir-lhe de consolo; quanto à questão judaica, esclarece ser o seu interesse meramente em favor da economia do reino. Em 17 de abril de 1675, fica isento para sempre da jurisdição dos Inquisidores de Portugal e seus representantes, e sujeito unicamente à Congregação do Santo Ofício de Roma, que o absolveu de quaisquer interditos ou penas eclesiásticas em que se achasse incurso até então.
 
IHU On-Line - Qual é o aspecto do discurso de Vieira que mais a surpreende?
Cláudia Cristina Couto –
Vieira, em seus textos, às vezes nos leva por raciocínios que não apreendemos de início, acompanhando-o a nossa dúvida, até que esclareça o seu pensamento. Essa expectativa me deixa encantada. Ele nos faz concordar com uma idéia desenvolvida e, quando estamos bem convencidos da sua verdade, vem a adversativa “mas”, a partir do qual o orador nega tudo que parecia ter aceitado. Insisto em dizer que esse processo, que dificulta a compreensão linear do texto, é o que eu considero um dos grandes atrativos de sua obra. Fernando Pessoa , em Mensagem, define-o “Imperador da língua portuguesa”. É realmente um artista que sabe manejar as palavras, manobrá-las de acordo com os seus interesses. Em suas mãos, a língua portuguesa torna-se plástica, moldável, viva, como um ser de carne e osso. Através da paixão que impulsiona seus escritos, transforma os sermões em belas obras literárias. Sua escrita desenvolve-se por imagens vivas e cinéticas, sendo através delas que persuade os seus ouvintes. Nos sermões, há clareza de idéias, coerência interna e unidade de pensamento, funcionando a citação das escrituras como um catalisador de imagens.
 
IHU On-Line - E como era o Vieira orador?
Cláudia Cristina Couto –
Vieira usava o púlpito para criticar, aconselhar, combater, atingindo a sensibilidade dos ouvintes. Artista que era, gostava de ser admirado e aplaudido. Procurava impressionar o auditório com a sua voz, os seus gestos, a sua teatralidade. Pertencia mais à terra dos homens do que aos céus.

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