Edição 243 | 12 Novembro 2007

Perfil Popular - Eni Schneider

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Um dos aspectos mais marcantes da trajetória de Eni Schneider, 51 anos, foi ter sido criada por uma família adotiva, sem perder o vínculo e as afinidades com a sua família biológica. Para ela, esta experiência não lhe fez guardar mágoas, apenas somou positivamente para o seu futuro. Moradora do Núcleo Habitacional Madezatti, no bairro Feitoria, em São Leopoldo, Eni ajudou a construir o Centro Comunitário Infantil na comunidade, que existe há 25 anos e atende mais de 170 crianças. Ao perceber a exclusão entre as crianças, enquanto brincava com elas no Centro, ela buscou uma área de estudos que lhe ajudasse a entender esta questão: a sociologia. Eni se aposentou como professora e, hoje, para expandir seus conhecimentos ela participa de cursos e seminários. Foi ao final de uma das aulas do curso de Extensão sobre Economia Solidária, na Unisinos, que ela concedeu esta entrevista à revista IHU On-Line:

Origens – Eni Schneider nasceu em Tramandaí, no litoral gaúcho, em 1956. Aos dois anos, ela veio para São Leopoldo, e, apesar da pouca idade, não veio com seus pais. “Vim com uma família que me adotou. Meu pai trabalhava na construção civil e a minha mãe não tinha trabalho fora. Mas, como o turismo estava evoluindo em Tramandaí, sempre tinha muito que fazer. De repente, a família se desestruturou, e os filhos pequenos incomodavam para o trabalho”, conta.  Ter sido criada por outra família não foi visto como problema por Eni. “Eu tenho duas famílias e um monte de irmãos. Tudo foi duplo: pai, mãe, avós, toda a estrutura de família. Inclusive o carinho e a paparicação da família. Não tenho nenhum problema quanto a isso. Eu só somei. Não tenho mágoa nenhuma, só carinho por todos eles. Tenho seis irmãos de sangue e uma irmã de coração. Nunca fui proibida de transitar por essas duas famílias”, revela.

Infância – A infância de Eni foi muito bem aproveitada, com direito a muitas brincadeiras, como teatros com as roupas da avó, e artes também. “Hoje, as mães entenderiam como perigo. Mas eu subia muito em árvores e cheguei a colocar fogo na cerca do vizinho fazendo comidinha. Também tive fases de super-herói, de querer voar de cima dos pés de abacateiro”, lembra. Embora tenha começado a trabalhar aos 14 anos, Eni afirma que não deixou a infância de lado. “Acho que não a deixei até hoje. Para mim, a infância não morreu.” Eni destaca que não tinha imagens que não fossem as da família. “Hoje, a gente tem muitas imagens, é um mundo muito visual. O pai comprou televisão, quando eu tinha 15 anos. Antes não era necessário, porque a gente tinha outras coisas que eram legais de fazer”, enfatiza.

Perda – Aos 18 anos, o pai adotivo de Eni teve um infarto e faleceu. E não foi fácil superar a perda. “A gente tinha uma vida de valores tão intensa, que até hoje a gente se alimenta muito nisso, embora mexa com a emoção”, afirma. E um desses valores é o mais valioso para Eni. “Uma das coisas que o meu pai me passou e que carrego até hoje foi a busca pelo conhecimento. Ele era metalúrgico, não tinha muito estudo, mas tinha o prazer de procurar”, lembra. Saber dar valor ao que se tem e ver que pode fazer falta é outro exemplo que ela não hesita em esconder. “Fui criada em uma cultura que diz para não esbanjar, se o outro não tem.”

Estudos e trabalho – A vida escolar de Eni foi construída na rede pública de ensino, em São Leopoldo. “Nunca fui uma aluna de boas notas”, conta Eni. Aos 14 anos, ela parou de estudar, porque estava entrando no Ginásio e seu pai não permitia que ela estudasse à noite, e foi trabalhar. “Achava que o trabalho ia me dar uma emancipação. Meu primeiro emprego foi na loja de brinquedos Emílio M. Muller. Em um ano, eu já tinha a chefia da seção”, afirma. Saindo da loja, foi trabalhar em um banco, quando começou a fazer o magistério no colégio La Salle, em Canoas. “Eu achava que não tinha porte para ser professora e não queria fazer o estágio. Nessa ocasião, conheci um professor que, hoje, é meu marido. Somos casados já vai fazer 27 anos”, conta. Com isso, Eni resolveu assumir a carreira de professora. “Me aposentei como professora municipal, dentro de escola infantil”, destaca. 

Casamento e filhos – “Eu sempre pensava em ter filhos. O casamento veio pela paixão. E eu encontrei uma pessoa muito gostosa de conviver”, destaca Eni. Do casamento, que nasceu e vive até hoje em uma base sólida, Eni tem três filhos: Éder, de 25 anos, formado em Filosofia pela Unisinos; Élen, de 22 anos, estudante de Ciências Sociais na Unisinos; e Êmili, de 19, que cursa veterinária. Sobre eles, Eni afirma que trazem, principalmente, um alerta de ações, do tipo: “Não é por aí, mãe!”. “Não sei se as pessoas que não têm filhos têm esses alertas por outros lugares. Eu vejo quando estou mais santa ou mais perversa, quando eu vejo as posições deles, que são muito críticos”, ressalta.

Graduação – Em 1980, Eni passou no vestibular para Jornalismo, e chegou a cursar algumas disciplinas, mesmo grávida do seu primeiro filho. Depois disso, ela decidiu estudar Letras, porque achava a carreira de jornalista muito corrida. O curso ficou inacabado, “mas eu tive uma coisa muito bonita que substituiu o espaço de terminar a faculdade. Cada vez que eu voltava para a Unisinos, eu engravidada. Aí tinha o período da amamentação, eu não queria parar de trabalhar, e não tinha como eu deixar minha filha com outra pessoa, porque os parentes moram longe. Com isso, eu dei um tempo na Faculdade”, explica. Em 2001, quando seu filho prestou vestibular na Unisinos ela decidiu que era a sua hora de voltar aos estudos e optou pelo curso de Ciências Sociais, que terminou em 2005.

Sociologia – Há 25 anos, Eni é voluntária no Centro Comunitário Infantil do bairro São Geraldo, em São Leopoldo. A opção por estudar Sociologia veio quando ela estava brincando com essas crianças em uma roda. “Sentia que algumas ficavam de fora, e eu sempre ficava com essas crianças. Passei a me perguntar por que sempre tem alguém que fica de fora. Aí busquei um curso que atendesse isso. Eu me aposentei como professora municipal e ingressei no curso de Ciências Sociais, na Unisinos”, explica. Eni comenta que o curso foi de muito aprendizado, mas que ainda não tem resposta para a exclusão.

Voluntariado – “A gente tinha um lado religioso bem forte, e pensamos que era importante ter uma Igreja. A nossa escola era muito pequena, e tivemos que fortalecê-la. Mas, nesse fortalecimento da escola, a população local foi aumentando”, conta Eni sobre o seu envolvimento com o voluntariado, que teve início quando ela foi morar no Núcleo Habitacional Madezatti, no bairro Feitoria, em São Leopoldo. O motivo do aumento da população foi o avanço industrial de Novo Hamburgo, que atraiu famílias do interior. “Quando eu fui morar lá, passava carro na rua oferecendo emprego”, lembra Eni. E destaca: “Aos poucos, a gente foi vendo que as pessoas não tinham vínculos de amizade, não tinham onde conversar. E a gente foi se reunindo para fazer sopas na garagem de alguma casa. Mais tarde, construímos uma capela, tinha um grupo de irmãs por ali, e a gente foi pegando uma participação maior da Igreja. Até que construímos o Centro Comunitário Infantil”.

Estrutura – “No Centro Comunitário Infantil, temos mais de 40 voluntários e atendemos cerca de 170 crianças, em turno inverso ao da escola”, explica Eni. As crianças têm à disposição atividades como aulas de música e de confecção de cartões. Além das crianças, o trabalho tem foco nas mulheres. “Já faz cinco anos que a gente está trabalhando com as donas das casas, buscando saber o que elas querem, quais as prioridades que vão mantê-las com mais vida”, enfatiza Eni. A verba que mantém o Centro sai da comunidade, “e, nesse Governo, há um auxílio dado por criança, mas é muito pequeno”, comenta Eni. O trabalho é cansativo e, ao mesmo tempo, gratificante, mas Eni faz uma ressalva: “Gostaria de não ter construído o Centro nem de estar mantendo, porque acho que as pessoas deveriam ter possibilidades iguais de estudar e de alimentar o seu filho adequadamente”.

Aprendizado – Ao longo dos anos de trabalho voluntário Eni aprendeu muito, não só com as crianças, mas também com as mulheres. “Aprendi a bordar e a brincar mais. Também fiquei mais forte para entender as misérias e as necessidades, porque tinha uma época em que eu pensava que, se tivesse uma praça bem bonita no bairro, as pessoas iam ficar felizes. E daqui a pouco a praça não era o mais importante”, afirma.

Economia Solidária – Foi ao receber um e-mail de uma das Coordenadoras do Fórum de Mulheres, a Alda Fortes, convidando a participar do curso de extensão gratuito na Unisinos sobre Economia Solidária, promovido pelo Projeto Tecnologias Sociais para Empreendimentos Solidários da universidade, em parceria com o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social), que Eni resolveu participar das aulas. “Eu nunca tinha participado e acho que esse curso ajuda a expandir o conhecimento. Por exemplo, uma coisa é tu ir lá e ensinar a fazer fuxico, outra coisa é tu dizer quais as conseqüências para a natureza, ao jogar esse pano no lixo. Além do porquê de não fazer campanhas escolares, como com garrafas, porque a criança vai querer tomar muito refrigerante para poder juntar as garrafas”, afirma. Muito mais que do curso, Eni gosta de ouvir as percepções dos participantes, que “são muito sábias. E a sabedoria está no popular, também. Cada vez mais temos que passar essas filosofias de construção de vida que esse pessoal está trazendo”, ressalta.

Igreja – Criada em meio a ações comunitárias oferecidas pela Igreja, Eni destaca: “O ninho dos grandes movimentos sociais é a Igreja”. E esta é a base para o seu envolvimento com ações que primam pelo bem-estar social. “Vivi uma época da Igreja que foi muito favorável ao trabalho comunitário e resolvi dar continuidade”, explica.

Fé – “No momento em que tu tem fé por acreditar e ir atrás do que tu acredita, sem deixar que o imaginário te aliene, precisa ter sempre fé. Acredito que a fé é um alimento”, enfatiza Eni. Para ela, as pessoas não são pobres ou passam fome por vontade de Deus. “Não dá para delegar as ações do homem a qualquer imaginário possível”, afirma.

Lazer – Nas horas de folga, andar no meio do verde e visitar feiras populares de artesanato, mesmo que não compre nada são as distrações de Eni. “Não sou muito de produtos industrializados. Então, gosto de artigos vendidos em feiras populares. Sou uma admiradora de quadros e de arte, consigo achar o belo, ver a essência”, afirma. Programas culturais também estão entre as referências. “Eu gosto de estar no meio das pessoas. Ir à Feira do Livro de Porto Alegre foi um passeio maravilhoso”, enfatiza.

Momentos marcantes – O que ficou marcado na vida de Eni pela tristeza não foi algo pessoal, mas, sim, ambiental. “Foi muito triste abrir os jornais e ler sobre a mortandade de peixes no Rio dos Sinos, no ano passado. Fiquei em estado de choque, como se tivesse perdido uma pessoa e não conseguia acreditar”, lamenta.  Quanto às alegrias, ela confessa que já viveu muitas, mas a maior delas ainda está por vir. “Será quando as pessoas tiverem acesso à escola com toda a gratuidade possível, e que todos tivessem oportunidades iguais”, revela.

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