Edição 243 | 12 Novembro 2007

BARTHES, Roland. O império dos signos (Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007)

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O império da pessoalidade


O artigo a seguir é inédito, escrito com exclusividade por André Dick para a IHU On-Line, trata da obra O império dos signos (São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007), traduzida por Leyla Perrone-Moisés. Dick é graduado em Letras pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Seu mestrado e doutorado, realizados na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foram na área de Literatura Comparada. Poeta e ensaísta, é autor dos livros de poesia Grafias (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2002) e Papéis de parede (Juiz de Fora: Funalfa Edições; Rio de Janeiro: 7Letras, 2004). Em colaboração com Fabiano Calixto, organizou A linha que nunca termina (Rio de Janeiro: Lamparina, 2004), com ensaios, poemas e depoimentos sobre o poeta Paulo Leminski. Dick concedeu entrevista às Notícias do Dia do site do Instituto Humanitas Unisinos, www.unisinos.br/ihu, em 27-07-2007, intitulada “A quase arte de Mallarmé”. Mentor da editoria de poesia Invenção, novidade nas páginas da revista IHU On-Line, da qual é revisor de Língua Portuguesa, Dick escreveu a resenha “O Bope em ritmo de rock”, comentando o filme Tropa de elite, na edição 240 da IHU On-Line, em 22-10-2007.

Está sendo lançado no Brasil O império dos signos, de Roland Barthes , numa bela edição da WMF Martins Fontes, com várias gravuras e fotos. O livro se insere numa coleção dedicada ao escritor francês coordenada por sua tradutora, Leyla Perrone-Moisés . Para conhecê-lo, é indispensável ter um interesse pela cultura oriental. Quando Barthes o publicou originalmente (em 1970), no entanto, o Japão, país que o encanta por ser um símbolo em si mesmo, não era a superpotência que é hoje, ainda que já fosse uma referência econômica, cultural e textual. Era de interesse de Barthes a presença da linguagem na formação no indivíduo, e o Japão é um dos países que mais parecem mostrar esse elemento em sua cultura.

O livro de Barthes também ajuda a mudar a idéia sobre sua própria teoria. Para ele, no auge da semiologia, negando o dito “mundo externo ao dos signos”, o referente é produto de uma semiosis, e não um dado preexistente. A relação lingüística primária não estabelecia mais relação entre a palavra e a coisa, ou o signo e o referente, o texto e o mundo, mas entre um signo e um outro signo. Não é muito diferente disso o que Aristóteles abordava em sua mímesis na Poética: “Desde a infância, os homens têm, inscrita em sua natureza, [...] uma tendência à mimeisthai [imitar ou representar] – e o homem se distingue dos outros animais porque é naturalmente inclinado à mimeisthai [imitar ou representar] e recorrer à mimésis em seus primeiros aprendizados”.  Imitar o quê? Aristóteles não define, mas é certo de que ele fala do mundo como um universo em que o homem trabalha e retrabalha a formação de sua própria linguagem.

 Ou seja, a mímesis quer representar o conhecimento do homem e a maneira como ele percebe o mundo, o expressa através das palavras, e não exatamente o imita. E Barthes não discorda disso: “Não sendo uma cópia do real, a literatura mais verdadeira é aquela que se sabe a mais irreal, na medida em que ela se sabe essencialmente linguagem, é aquela procura de um estado intermediário entre as coisas e as palavras, é aquela tensão de uma consciência que é ao mesmo tempo levada e limitada pelas palavras, que dispõe através delas de um poder ao mesmo tempo absoluto e improvável”.   Ou seja, Barthes sabe que existe uma possível cópia do real, mas ele adota a intersecção entre as coisas (do mundo) e as palavras (da linguagem), trabalhando com o conceito de Imaginário, que constitui exemplarmente o irreal ou o desreal – já que o Real, conforme indicava Lacan , é um resíduo do Imaginário e do Simbólico –, construído pelas leituras do autor. Chegaremos à conclusão de que tanto Aristóteles quanto Barthes falam da intertextualidade também ao falarem na pretensa realidade.

A semiosis pretendida por Barthes, aplicada na descontinuidade, no fato de as palavras perderem suas “referências particulares” para se “relacionarem umas com as outras para produzir” a significância,  tem muito da Poética de Aristóteles – e O império dos signos o comprova. Ou seja, Aristóteles, como Barthes veio a fazer depois, abria campo para um diálogo entre representações, que na teoria literária moderna receberia a carga da intertextualidade de Julia Kristeva , Bakhtin  etc., mas apostava numa narratologia poética, por meio da tragédia e da epopéia (gêneros superiores) e da comédia (gênero inferior).

Barthes, em O império dos signos, utiliza a cultura japonesa como narrativa para sua semiologia imaginária. Ao analisar a forma do haicai, buscando uma interpretação do zen, os tipos de comida e lazer japoneses, por exemplo, Barthes destaca a textualidade que há nesses movimentos. E Barthes tenta libertar a interpretação de uma possível vinculação com o Ocidente, no que fracassa: a lógica de vivenciar a linguagem no Oriente é a mesma do Ocidente. Quando Barthes busca uma aproximação da comida japonesa com a pintura, ele está desenhando uma rede intertextual que Aristóteles traça entre autores gregos. Não por acaso, Leyla Perrone-Moisés considera que O império dos signos é contra a semiologia, ligada a uma “liberdade crítica”, a uma “reinvindicação do prazer”.  O que ele faz, nesse livro, é um “texto de puro prazer pessoal”, no qual Barthes inventa o próprio Japão; um Japão “desejado, sonhado, saboreado, transformado em texto único, texto barthesiano – o mais prazeiroso e deslumbrante de sua obra”.  Daí a importância de O império: no momento em que Barthes nega a frieza da semiologia, ele entrega um texto absolutamente poético, cujas frases formam uma sintaxe extremamente fluente, com a propriedade do autor: longos períodos e um sentido descritivo sensível.

Desse modo, O império dos signos contraria o que Barthes escreve no limite do estruturalismo ortodoxo, em busca de uma semiologia ortodoxa hoje superada: “A linguagem é feita com significados e significantes, mas não é feita diretamente com a realidade”.  É claro que Barthes também considerava que a linguagem possui um sistema econômico, articulado com os significados (os conteúdos) e os significantes (as formas), sem precisar “descrever” a realidade. Em O império dos signos, o que seria a realidade senão a própria linguagem? Mas se a linguagem não expressa o Real, no sentido lacaniano, ela é conduzida pelo que entendemos por real: pela cultura simbólica dos signos. No entanto, mesmo que Barthes esteja perdido como o personagem de Bill Murray em Encontros e desencontros, sem entender a língua com que se defronta, ele é abalado por uma realidade de signos, que o coloca em situação de escrita. O sujeito não se cria juntamente com a linguagem, como ele prescreveu várias vezes: ele é sempre resultado de uma experiência prévia, mesmo que suscitada pelo vazio a que Barthes se refere na cultura japonesa. Barthes percebe nos milhares de corpos japoneses, no teatro, nas cidades descentralizadas, no rosto do estrangeiro e mesmo numa papelaria a essência para se descobrir uma cultura. Barthes escreve: “No Japão, tudo muda: a inexistência ou o excesso do código exótico, aos quais está condenado, em sua terra, o francês que se vê às voltas com o estrangeiro (que ele não consegue transformar em estranho), absorve-se numa dialética nova da fala e da língua, da série e do indivíduo, do corpo e da raça. [...] A descoberta é prodigiosa: as ruas, as lojas, os bares, os cinemas, os trens abrem o imenso dicionário dos rostos e das silhuetas, em que cada corpo (cada palavra) só quer ela mesma e remete, no entanto, a uma classe; assim, temos ao mesmo tempo a volúpia de um encontro (com a fragilidade, a singularidade) e a iluminação de um tipo (o felino, o camponês, o redondo como uma maçã vermelha, o selvagem, o lapão, o intelectual, o adormecido, o lunar, o radioso, o pensativo), fonte de um júbilo intelectual, já que o indomável é domado”.

 O crítico Antoine Compagon, que foi aluno de Barthes, acerta, em O demônio da teoria, ao considerar que a mímesis é contestada por ser associada à ideologia, que Barthes combatia (a doxa), como todo saber repressivo, inerte, passivo, ligado ao consenso.  Isso subsiste na própria obra de Aristóteles, quando ele afirma que o escritor deve ir ao que é consenso para o público. Mas não só isso. Barthes queria, sobretudo, propor não a extinção do real em sua obra (o que seria absurdo), mas que a realidade da linguagem (em O prazer do texto, ele falaria em “mímesis da linguagem”), a representação que fazemos da imagem, aproxima-se do impossível, do Imaginário; é a representação que fazemos através dos discursos – e essa fragmentação não pode ser representativa tão diretamente de uma possível exterioridade, pelo menos de forma tão direta, a representação definida timidamente por Aristóteles, que adianta, por outro lado, boa parte das idéias acerca de intertextualidade da modernidade; ela representa a cultura dos signos. E o público, a massa, regressa pela imagem: “[...] o local público é uma série de acontecimentos instantâneos, que chegam ao notável num brilho tão vivo, tão tênue, que o signo se abole antes de qualquer significado ter tido o tempo de ‘pegar’”.  Os signos, no livro de Barthes, seriam vazios – mas, mesmo abolidos, estão presentes em todos os lugares do livro.

Sob esse ângulo, em O império dos signos, a realidade é a própria linguagem que Barthes procura interpretar como semiólogo, ou seja, ela representa um conflito entre o imaginário e o simbólico. “Se os buquês, os objetos, as árvores, os rostos, os jardins e os textos, se as coisas e as maneiras japonesas nos parecem pequenas (nossa mitologia exalta o grande, o vasto, o largo, o aberto), não é em razão do seu tamanho, é porque todo objeto, todo gesto, mesmo o mais livre, o mais móvel, parece emoldurado”.  A literatura, portanto, expressa a realidade por figuras de linguagem, encaixadas numa espécie de moldura imaginária.

O império dos signos que é o Japão se mantém como linguagem de forma autônoma, independente da centralização ocidental, e dá em troca o fruto de uma experiência. Da busca pessoal de Barthes pelo prazer do texto, que ele retrataria mais atentamente na obra posterior a O império dos signos.

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