Edição 241 | 29 Outubro 2007

O mercado está contra a lógica antiutilitarista

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IHU Online

O modelo desenvolvimentista aplicado no Brasil resultou em muitos problemas sociais, como o crescimento das favelas e o aumento da exclusão social, disse o Prof. Dr. Paulo Henrique Martins, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em entrevista concedida à IHU On-Line, por e-mail. Embora o desenvolvimentismo tenha sido superado em 1980, com a crise financeira do Estado brasileiro e a implantação da Constituição de 1988, os problemas do País não foram resolvidos. A falta de uma crítica antiutilitarista impediu que o Brasil adotasse “um modelo mais descentralizado” do ponto de vista administrativo e decisional, explica. Aperfeiçoou-se assim, uma sociedade de mercado, na qual o lucro se tornou o objetivo central.

O Governo Lula, enfatiza, tenta fazer “renascer o defunto do desenvolvimentismo”. E rebate: “O presidencialismo brasileiro segue uma lógica perversa que tende a fazer do chefe da nação um refém dos grupos de interesse e lobbies que infestam o congresso nacional, os ministérios e todas as instâncias de decisões importantes”, reitera. Atitudes como essa, diz o professor, mostram “a fragilidade do debate antiutilitarista no nosso País”.

Para ampliar o debate sobre a crítica antiutilitarista, de Alain Caillé, o professor estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na próxima quarta-feira, 31-10-2007, participando do Ciclo de Estudos Fundamentos Antropológicos da Economia, proferindo a palestra Questionando a hegemonia do determinismo econômico : o movimento antiutilitarista – Alain Caillé (1944). O encontro acontece na sala 1G119, às 19h30min.

Martins graduou-se em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, cursou o mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade de Paris I e pós-doutorado na mesma área na Universidade de Nanterre, Paris X. Diretor da ALAS (Asociación Latino Americana de Sociologia), Martins também é colaborardor da Revue du MAUSS, na França, e vice-presidente da Associação MAUSS (Mouvement Anti-Utilitariste dans lês Sciences Sociales). O Jornal do Mauss versão iberolatinoamericana pode ser acessado através do site (www.jormaldomauss.org), no qual está publicada uma entrevista com Alain Caillé. 

Martins concedeu a entrevista “O dom de Marcel Mauss”, em 09-10-2006, à IHU On-Line edição 199, intitulada Os desafios da diversidade sexual.
Entrevista com Paulo Henrique Martins

IHU On-Line - Muitos especialistas dizem que as Ciências Sociais estão em crise. Que fatores levaram a esse problema? Como recuperar uma análise construtiva das Ciências Sociais?
Paulo Henrique Martins –
A princípio, é importante registrar que a idéia de crise, que é muito ampla, precisa ser contextualizada. Na perspectiva da crítica antiutilitarista, a idéia de crise das Ciências Sociais tem a ver com o fato de elas não terem conseguido firmar, de fato, um pensamento crítico que fosse capaz de desconstruir eficazmente a perspectiva do interesse material egoísta como valor básico da vida social, conforme é defendida pela ideologia utilitarista hegemônica. Para Caillé no seu livro A demissão dos intelectuais  , embora a Sociologia tenha surgido como reação à idéia de redução do ser humano a um “homo economicus”, na prática esta reação assumiu formato difuso e limitado e, em certa direção, chegou mesmo a ser capturada pela doutrina utilitarista hegemônica como são testemunhos certas teorias como aquelas da escolha racional e do individualismo metodológico. Repensar as Ciências Sociais implica em repensar os paradigmas fundadores da modernidade. Neste sentido, na crítica maussiana, a saída para a superação dos dois paradigmas típicos da modernidade – o individualista configurado institucionalmente pelo mercado e o holista, pelo Estado – seria investir num terceiro paradigma, o do dom e da associação, mais próprio da experiência diversificada e múltipla da sociedade civil.

IHU On-Line – Com a elaboração da crítica antiutilitarista, qual é a principal contribuição de Alain Caillé para a sociedade nos âmbitos econômicos, políticos e sociais?
Paulo Henrique Martins -
Caillé tem uma formação acadêmica diversificada, percorrendo, com desenvoltura, as fronteiras da filosofia, da economia, da sociologia, da antropologia e da política. Em termos de sua contribuição para a crítica antiutilitarista, diria que ela é muito ampla, mas gostaria de assinalar dois pontos que me parecem fundamentais: um deles é a análise muito pertinente que ele faz da filosofia utilitarista que está sintetizada num livro não publicado em português e intitulado Crítica da razão utilitária . O outro diz respeito à sistematização do dom na alta modernidadade, mérito intelectual que ele divide com Jacques Godbout . De fato, eles utilizam a contribuição de Marcel Mauss  sobre o dom para a contemporaneidade, demonstrando que, ao contrário das sociedades tradicionais em que a obrigação coletiva se impunha sobre a ação individual, no momento presente, diferentemente, surge um fato inédito, aquele da “obrigação de ser livre”. Isto é, o dom na atualidade é o centro de um sistema de trocas ambivalente, pois, a cada momento, o indivíduo ou a pessoa moral, em geral, confronta-se com as perspectivas de constrangimento e de liberação do compromisso. Esta dúvida fenomenal não pode existir nas sociedades tradicionais estudadas por Mauss, Malinowski  e também Lévi-Strauss .

IHU On-Line - Como o senhor percebe a política numa sociedade antiutilitarista? Nesse contexto, o Estado passa por transformações?
Paulo Henrique Martins -
A política, numa sociedade antiutilitarista, está estreitamente ligada ao fenômeno do socialismo associacionista. A este respeito, é bom lembrar que as primeiras manifestações do fato associativo datam do século XVIII com as cooperativas e associações de ajuda mútua. Com o crescimento do mercado e do Estado entre os séculos XIX e XX, tais experiências foram reprimidas, voltando à cena no século XX, através de movimentos importantes, como o feminista, o ambiental, o das minorias étnicas, os culturais, entre outros que trouxeram de volta as práticas associacionistas espontâneas surgidas no interior da sociedade civil e fora dos âmbitos do mercado e do Estado. Não custa lembrar que Durkheim  e Mauss foram militantes intelectuais do movimento associacionista nos inícios do século XX, na França.

IHU On-Line - O Governo Lula tem atuado pela lógica do determinismo econômico ou social? Qual é a a sua avaliação?
Paulo Henrique Martins -
Lula é o “Brasil e suas circunstâncias”. O presidencialismo brasileiro segue uma lógica perversa que tende a fazer do chefe da nação um refém dos grupos de interesse e lobbies que infestam o congresso nacional, os ministérios e todas as instâncias de decisões importantes. Lula poderia ter rompido com este sistema perverso, caso tivesse ousado avançar mais corajosamente nos processos descentralizadores, reforçando as práticas associativas municipais e locais. Mas esta tomada de posição mais progressista em direção aos movimentos sociais foi bloqueada por duas razões: uma delas de caráter conjuntural, a confusão do caixa dois que terminou desfocando as questões prioritárias do Brasil; a outra, estrutural, a incipiente crítica teórica no Brasil a respeito dos fundamentos da desigualdade e dos limites das ideologias desenvolvimentistas. Aqui, Lula também ficou sem saídas, o que é provado pelo Programa de Aceleração do Crecimento – PAC -  ,que me parece uma idéia muito antiga e perigosa. Pois o PAC pode reforçar a dependência do Estado com relação ao capital econômico e especulativo, escasseando ainda mais os já modestos recursos públicos destinados às políticas sociais.

IHU On-Line - As nações centram suas atividades para alcançar o crescimento econômico a qualquer custo. Até que ponto o crescimento e o desenvolvimento são necessários? O que Caillé diz sobre isso?
Paulo Henrique Martins -
A Revue du Mauss  tem uma posição crítica sobre o assunto, no sentido de considerar que idéias como essas do crescimento e do desenvolvimento estão profundamente comprometidas com a ideologia utilitarista e com a redução da complexidade social a um referente econômico, negligenciando todos os demais elementos culturais, políticos, morais etc., que estão presentes na organização da vida social. A posição de Caillé sobre o assunto vai além da mera crítica ao viés economicista desses modelos. Para ele, existe um certo fetiche na idéia do desenvolvimento, que é a associação da idéia de crescimento com a idéia de ilimitação, desenvolvimento como expansão ilimitada que é extremamente perigosa para o equilíbrio ecossocial. Assim, ele considera que a saída dessa discussão deve passar pela retomada da discussão sobre a democracia para se repensar a modernização a partir da pluralidade de interesses em jogo e, sobretudo, da experiência participativa.

IHU On-Line - Como repensar a globalização a partir de uma crítica direta à ideologia desenvolvimentista?
Paulo Henrique Martins -
O desenvolvimentismo é um modelo de modernização que se caracteriza pelo papel do poder central estatal como principal agente das reformas econômicas, por um lado, e, por outro, pela busca de eliminação acelerada das práticas tradicionais – vista como bloqueadoras da modernização – e sua substituição por práticas modernas – como as representadas pelo trabalho assalariado e pela introdução de tecnologias agrícolas que aumentam a produtividade econômica no campo. A aplicação do modelo desenvolvimentista no Brasil resultou em uma migração em larga escala do campo para a cidade, com crescimento das favelas e da exclusão social. O modelo desenvolvimentista se esgotou face a dois fenômenos: a crise financeira do Estado brasileiro na década de 1980, e o surgimento de uma sociedade civil complexa, que passou a exigir novos mecanismos de participação no plano local o que levou à grande reforma constitucional de 1988.

Mas a ausência de uma crítica antiutilitarista referente ao desenvolvimentismo no Brasil impediu que adotássemos ainda nos anos 1980 um outro modelo mais descentralizado de fato (não apenas do ponto de vista administrativo, mas, sobretudo, decisional). No vácuo deixado pela fragilidade do debate teórico, os economistas neoliberais tomaram à frente dos mecanismos de formação da opinião pública e fizeram a cama para a ideologia neoliberal e antiestatista. O resultado foi o agravamento e a deterioração das condições socioeconômicas, pelo simples fato, como dizem Caillé e Godbout, que o objetivo do mercado não é a promoção do social, mas o lucro, que produz, a médio prazo, a destruição do social.

Descrescimento no lugar de crescimento?

O mais preocupante é que o PAC do governo Lula constitui uma tentativa de fazer renascer o defunto do desenvolvimentismo, o que é uma tentativa tenebrosa. Mas o que mais preocupa é que idéias com essas apenas revelam a fragilidade do debate antiutilitarista no nosso país, o que é lamentável. No momento atual, a crítica ao desenvolvimentismo entre os críticos antiutilitaristas tem passado pela idéia de desconstrução do ideal do crescimento (descrescimento), trabalho a ser feito pela entidades engajadadas na sociedade civil e fora do Estado, como o propõe Latouche . A idéia é sedutora, mas problemática, no que diz respeito à América Latina por duas razões. Em primeiro lugar, é muito difícil se pensar uma alternativa aos modelos atuais de desenvolvimento na região sem que o Estado esteja de algum modo participando, devido a seu peso no PIB e na organização dos sistemas municipais. Em segundo lugar, a idéia de desacelerar ou mesmo reverter o crescimento é complicada pois necessita que se defina mais claramente o que se deve decrescer. Um coisa é falar de diminuir o peso do capital especulativo na nossa economia (este seria uma boa reversão), outra seria diminuir a economia pública estatal que chega a quase 40% do PIB brasileiro. Isto seria catastrófico, penso, devido ao peso do Estado na geração de empregos e de ações públicas.

IHU On-Line - Alain Caillé fala do de “Dépenser l’économique contre le fatalisme”. Isso quer dizer que a economia é uma fatalidade?
Paulo Henrique Martins -
Para Caillé, o tema da economia de mercado é colocado como uma fatalidade, isto é, como a única opção para a globalização. Contra este fatalismo, ele propõe que se desnaturalize a economia de mercado para que se possa vislumbrar a existência de diversas modalidades de organização da vida econômica que não se identificam com aquela mercantil.

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