Edição 240 | 22 Outubro 2007

“Verdades de fé jamais poderão ser universais”

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IHU Online

Questionado sobre como o Projeto de Ética Mundial de Hans Küng pode auxiliar as religiões a encontrar um ponto comum de diálogo e de pluralismo entre as diferentes crenças, o egiptólogo alemão Jan Assmann afirmou: “Trata-se, além das religiões individuais cuja pluralidade jamais se poderá descartar, e além de suas verdades de fé, estabelecer alguns princípios civilizatórios, aos quais todas as religiões devem se ater. Verdades de fé jamais poderão ser universais”.  Para ele, “o que hoje constitui parâmetro importante nas orientações da humanidade é a paz, a justiça, respeito e reconhecimento mútuo, solidariedade com os pobres, com os perdedores da globalização, coisas que também se encontram nas religiões, mas nelas também se encontra algo bem diverso, que é capaz de perturbar sensivelmente a paz nesta Terra”. Assmann concedeu entrevista exclusiva, por e-mail, à IHU On-Line. Escrevendo diretamente do Egito, onde realiza uma escavação arqueológica, ele atendeu nosso convite para refletir sobre o Projeto de Ética Mundial de Hans Küng e fez relações entre essa idéia e a questão do pluralismo e da tolerância religiosa em nossos dias.

Além de egiptólogo, Assmann é teórico da cultura, professor de Egiptologia da Universidade de Heidelberg e de Ciência da Cultura da Universidade de Constança. Desde 1967, conduz escavações arqueológicas na parte ocidental de Tebas, nas tumbas que remontam ao tempo do rei Ramsés. Escreveu inúmeros livros e artigos sobre religião egípcia, história, literatura e arte. Entre seus livros publicados, destacamos Stein und Zeit: Mensch und Gesellschaft im Alten Ägypten (München: W. Fink, 1995); Weisheit und Mysterium: Das Bild der Griechen von Ägypten (München: C.H. Beck, 1999); Tod und Jenseit im Alten Ägypten (München: C.H. Beck, 2001); e Moise l’Égyptien. Un essai d’histoire de la mémoire (Paris: Aubier, 2001). Confira a entrevista a seguir.

IHU On-Line - Por que o senhor aponta o monoteísmo javista como fonte de intolerância e recusa do pluralismo?
Jan Assmann -
O pluralismo eu não rejeito, ao contrário. Onde reconheço uma fonte de intolerância é na diferença entre a verdadeira religião e religiões falsas, o verdadeiro Deus e falsos deuses, a verdadeira e a falsa fé. Eu penso que esta distinção só entrou no mundo com o monoteísmo javista, que ela não pode mais ser revertida e que devemos aprender a lidar com ela de maneira tolerante, sem violência e com mútuo respeito e reconhecimento.

IHU On-Line - O que a passagem do politeísmo ao monoteísmo contribuiu para modificações nas relações religiosas da humanidade?
Jan Assmann -
As religiões politeístas eram compatíveis entre si e reciprocamente transponíveis. Elas se baseavam na – ou pelo menos conduziam à – concepção de que todos veneram os mesmos deuses, porém sob nomes diversos e sob formas diversificadas. A esta recíproca trasponibilidade o monoteísmo deu um fim. Porque só podem ser reciprocamente transpostas divindades imanentes: o deus sol de uma ao deus sol da outra religião etc. O Deus monoteísta é, todavia, extramundano. Por isso as religiões monoteístas estabelecem uma fronteira entre elas e todas as outras, que são delimitadas e rejeitadas como “ateísmo”.

IHU On-Line - Como o Projeto de Ética Mundial de Hans Küng e sua ética minimalista podem auxiliar as religiões a encontrar um ponto comum de diálogo e de pluralismo entre as diferentes crenças?
Jan Assmann -
Trata-se, além das religiões individuais cuja pluralidade jamais se poderá descartar, e além de suas verdades de fé, estabelecer alguns princípios civilizatórios, aos quais todas as religiões devem se ater. Verdades de fé jamais poderão ser universais.

IHU On-Line - Em grandes linhas, que tipo de ética o senhor reconhece no indivíduo contemporâneo?
Jan Assmann -
Eu não creio que exista algo como “o” indivíduo contemporâneo.

IHU On-Line - Até onde, ou em que medida a secularização que constatamos é uma explicação para esta situação? Os teóricos da morte de Deus teriam acertado em sua previsão, ou o sagrado ainda constitui um parâmetro importante nos rumos da humanidade?
Jan Assmann -
Um ethos mundial só pode ser secular ou, em todo o caso, trans-religioso. Trata-se de assuntos que devem ser “sagrados” para todos os homens. Dignidade humana, direitos humanos. As religiões no sentido tradicional devem retroceder em suas pretensões “exclusivamente salvadoras”. O que hoje constitui parâmetro importante nas orientações da humanidade é a paz, a justiça, respeito e reconhecimento mútuo, solidariedade com os pobres, com os perdedores da globalização, coisas que também se encontram nas religiões, mas nelas também se encontra algo bem diverso, que é capaz de perturbar sensivelmente a paz nesta Terra.

IHU On-Line - Se considerarmos os fundamentalismos político-religiosos que constatamos, até que ponto é possível pensar na concretização da maioridade através do esclarecimento, como Kant queria?
Jan Assmann -
Precisamente: só podemos considerar os fundamentalismos com preocupação e devemos tentar reconciliar religião e esclarecimento, entender religião como esclarecimento e combater os fundamentalismos com argumentos da religião. Quem poderia crer num Deus cuja vontade poderia ser eliminar pessoas? Não são as religiões em si, mas que se possa tão facilmente fazer mau uso delas - este é o problema e é um escândalo. As religiões devem agir contra isso a partir de si mesmas e falar uma nítida palavra contra a violência e o fundamentalismo.

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