Edição 240 | 22 Outubro 2007

É impossível falar de moralidade do indivíduo contemporâneo

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IHU Online

Aceitando o convite feito pela IHU On-Line para participar do debate a respeito do Projeto de Ética Mundial de Hans Küng, o filósofo italiano Paolo Flores D’Arcais foi instigado pelas questões enviadas por e-mail e escreveu com exclusividade o artigo que segue, onde, sem meias palavras, dispara: “Seja, pois, dito claramente e sem diplomatizar: enquanto todas as religiões, em todas as suas variantes e todos os seus matizes não aceitarem plenamente e sem reservas mentais a mais rigorosa laicidade, em síntese, elas não só não poderão dar uma contribuição à paz e à liberdade (e à Ética Mundial que também Küng quereria), mas no que diz respeito aos valores de que se faz referência nas perguntas (não violência, solidariedade, tolerância, autonomia, pleno exercício da igualdade de direitos) constituirão uma ameaça e um obstáculo”. Para ele, não é possível falar da moralidade do indivíduo contemporâneo, “visto que tipos muito diversos de moralidade estão presentes, entram em conflito, mas também convivem, com freqüência dentro do mesmo indivíduo”. Em seu ponto de vista, o que é certo é que “a moral do sucesso a todo custo, que hoje nos fatos goza de uma expansão global, e que vem erradamente identificada com a moral laica e secular do desencanto, não só não realiza o triunfo do indivíduo, mas constitui até um enorme perigo para a democracia”.



D’Arcais é diretor da revista MicroMega, colaborador dos jornais El País, Frankfurter Allgemeine Zeitung e Gazeta Wyborcza. Professor e pesquisador na Faculdade de Filosofia La Sapienza, da Universidade de Roma, escreveu sua tese de doutorado sobre Adam Smith e Karl Marx. Considerado um dos mais importantes críticos da esquerda italiana, escreveu inúmeros livros, dos quais destacamos: Esistenza e libertà: a partire da Hannah Arendt (Genova, Marietti, 1990); Etica senza fede (Torino, Einaudi, 1992); L' individuo libertario: percorsi di filosofia morale e politica nell'orizzonte del finito (Torino, Einaudi, 1999); e Il sovrano e il dissidente (Milano: Garzanti, 2004). Confira, nas Notícias do Dia do site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, www.unisinos.br/ihu, o artigo de Darcais “Uma cruzada obscurantista”, publicado em 07-07-2007, e a entrevista “A ditadura do relativismo é o horizonte do pluralismo”, publicada em 01-11-2006.

Hans Küng sustenta há anos que a sobrevivência do nosso planeta está em perigo, a menos que nasça uma Ética Global, isto é, uma ética comum em nível mundial. O diálogo entre as religiões, indispensável para a paz, deveria, por isso, ocorrer através da autocrítica de cada uma delas e da capacidade de valorizar como fundamental precisamente os ensinamentos que elas têm em comum com a Ética Mundial.

Para Küng, isto seria possível, visto que o coração da nova Ética Mundial deveria ser a famosa regra áurea: “não fazer aos outros o que não quererias que fosse feito a ti” (eventualmente na versão positiva “faz aos outros o que quererias que os outros fizessem a ti”), regra que, segundo Küng, todas as religiões, de modo mais ou menos evidente, sempre proclamaram e reconheceram.
Na realidade, Küng sabe bem que muitas religiões, e certamente o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, junto à tal regra áurea, proclamaram Verdades e ensinamentos também opostos a ela, e que tais Verdades e ensinamentos até inspiraram a prática destas religiões muito mais do que o famoso “não fazer aos outros...”.

Precisamente em virtude de tal consciência, Küng, de resto, solicita às religiões uma autocrítica. Küng pede, em substância, que cada religião reconheça a contradição insanável entre a regra áurea e demasiadas outras Verdades e ensinamentos dos próprios dogmas e das próprias práticas, e, ao reconhecer tais antinomias, cada uma escolha segundo a regra áurea e renuncie a tudo quanto, no próprio patrimônio dogmático, teológico, moral e cultural, entra em colisão com tal regra.
Küng sabe muito bem que a mais fácil – e certamente bastante fundada – objeção ao seu projeto é o caráter utópico de uma autocrítica tão radical da parte das grandes religiões que hoje são muito difundidas em grande parte do mundo. As religiões, como de resto todas as ideologias convencidas de representarem a Verdade maiúscula e definitiva (sobre a vida, sobre a natureza, sobre a história, sobre a moral: e as religiões acrescentam a isto Deus e o Além), são estruturalmente incapazes de tal autocrítica que assinalaria o seu fim, porque as constrangeria a reconhecerem sua presumida Verdade como simples opinião.

Mas quero transcurar este tipo de crítica, porque o empenho de Küng (ou, se quisermos, o realismo de sua “utopia”) se baseia num fato igualmente incontestável: se as religiões não escolherem a via ecumênica (e, por conseguinte, de uma radical autocrítica) correm realmente o risco de desaparecer, porque uma guerra de religiões, como a que se prenuncia, significa guerra tout court, portanto guerra nuclear, e portanto, destruição definitiva da humanidade e de todas as suas religiões. Küng aposta, pois (precisamente no sentido do “desafio” de Pascal ) no instinto de sobrevivência das religiões.

Autonomia x lei moral natural

Procuro assumir esta esperança, embora eu seja muito menos otimista do que Küng, e, por conseguinte, procuro ver quais são os principais obstáculos no caminho que Küng almeja. Partirei de Bento XVI , civilmente Joseph Ratzinger, embora de outras religiões provenham perigos ainda maiores para a democracia e a paz. Mas a religião católica é a religião na qual, tanto Küng como eu, como os redatores desta revista nascemos (mesmo que depois os nossos caminhos tenham se tornado diversos), e é, pois, aquela que conhecemos melhor e que mais de perto nos diz respeito.

O discurso do papa Ratzinger em Regensburg, embora se tenha tornado famoso pelas violentas reações que provocou numa parte do islã, constituía, na realidade, o manifesto de uma nova “Santa aliança” contra o iluminismo, a modernidade, o desencanto. Para Ratzinger, como de resto para Wojtyla, o iluminismo é a matriz e o alambique de todos os males, porque a idéia da autonomia do homem, isto é, do homem que se dá a si mesmo a própria lei (autos nomos), constitui a verdadeira revolta contra Deus e portanto o Mal, no sentido em que o Mal é personificado no Demônio: Satanás etc. A partir do iluminismo, com sua “estrutura de pecado” (como escrevia o cardeal de Paris, Lustiger), com a pretensão do homem de ser o “dono e senhor” da norma, se acaba necessariamente no niilismo. E é por causa da pretensão “insensata” e “desumana” (segundo Wojtyla e Ratzinger) do homem à liberdade entendida como autonomia, ao invés da obediência à “lei moral natural”, que o século passado tem sido o século dos totalitarismos.

Ratzinger propõe, por isso, esta “Santa aliança”, não só às grandes religiões, mas também a uma parte de quantos se declaram céticos, agnósticos ou até mesmo ateus. Àquela parte disposta a comportar-se no cenário público (isto é, na discussão e promulgação das leis do Estado) “sicut Deus daretur”, como se Deus o fizesse. Porque somente a referência à Sua vontade transcendente, e, portanto, ao valor absoluto da “lei moral natural” poderia salvar as democracias atuais da crise na qual se encontram, crise de valores, crise de niilismo, como temos visto. (Ratzinger, no fundo, não faz senão solicitar aquilo que uma parte do iluminismo mais extremo, o dos ateus “libertinos”, já praticou e teorizou: manter privadas as próprias descobertas atéias, porque, se tornadas públicas, difundidas entre o vulgo, teriam feito desabar o edifício das obediências sociais).

Com esta proposta, Ratzinger rompe completamente a arquitrave sobre a qual se construiu a modernidade, há mais de quatro séculos até agora, para arrancar a Europa da autodestruição de uma série ininterrupta de guerras de religiões atualmente endêmicas. A fórmula de Grócio  recita, de fato, que na vida pública, entre os Estados (e depois no interior dos Estados, por uma evolução lógico-histórica irrefreável), é preciso comportar-se “etsi Deus non daretur”. Prescindindo de Deus, já que cada um tem a sua interpretação de Deus e, então, a vida política se transformaria num ininterrupto ordálio. Através do uso da razão, que é comum a todos. Através de acordos, pactos, convenções.

A solicitação de que a Constituição européia reconhecesse explicitamente as raízes cristãs do Continente (e de sua atual Comunidade política com suas respectivas instituições) representava, por isso, somente um elemento de uma estratégia mais ampla. Mas esta própria solicitação demonstra quanto seja impraticável a “Santa aliança” que Ratzinger tem em mente.

Nela, de fato, os vários indivíduos não têm autêntica e igual dignidade. Porque não possuem de modo igual a Verdade, a qual por sua natureza é Una (a Verdade é um Deus cioso!). Somente a Igreja Católica apostólica romana possui a Verdade de modo eminente, completo. As outras confissões cristãs e as outras religiões somente de modo mais ou menos parcial. Para não falar dos não crentes, que aceitam os valores católicos por razões político-culturais (portanto contingentes e aleatórias).

O catolicismo de Ratzinger é incompatível com a democracia

Ratzinger, em suma, não pode renunciar ao primado teológico e doutrinal da Igreja de Roma, da qual descendem de resto as outras pretensões (estrutura hierárquica e dogmática), que são um obstáculo ao diálogo ecumênico entre cristãos. Se renunciasse a isso, o catolicismo não só perderia a fisionomia que o caracteriza há séculos, mas as divisões profundíssimas que o agitam na base se desencadeariam num “efeito avalanche”. Em síntese, o catolicismo se dissolveria no caleidoscópio dos cristianismos reformados e plurais.

Não é por acaso que a pretensão da Igreja católica ao monopólio da Verdade religiosa faça um todo com sua doutrina, reafirmada sistemática e obsessivamente por Ratzinger, segundo o qual somente o catolicismo é uma religião plenamente “de razão”, uma religião “do Logos”. A fé católica (e somente esta), portanto, não só não estaria em contraste com a razão, mas constituiria o aperfeiçoamento e a efetivação da própria razão.

Esta doutrina torna o catolicismo de Ratzinger incompatível com a democracia. De fato, se a moral católica é obedecida não simplesmente porque querida e revelada por Deus, mas também, sobretudo porque é a única “natural” e “racional”, é evidente que toda legislação deverá dobrar-se ao Diktat moral da Santa Sé, porque, caso contrário, as leis do Estado seriam contra a natureza, desumanas e irracionais (dignas, portanto, do hospital psiquiátrico).

Em plena coerência com esta doutrina, o Papa Wojtyla, no decurso de uma viagem sua à Polônia, declarara que seria ilegítimo o parlamento polaco, se tivesse adotado uma legislação sobre o aborto desconforme àquela querida pelo Vaticano. E tratava-se do primeiro parlamento polonês livremente eleito após meio século de comunismo! Uma fé religiosa que pretenda encarnar também a razão é, por isso, incompatível com a democracia, fundada sobre o princípio do autos nomos, da soberania dos cidadãos que decidem a lei: após um confronto entre livres opiniões, argumentado logicamente a partir de um núcleo mínimo de valores, os da igual dignidade e liberdade de cada um (desde que não impeça a liberdade do outro). Esta incompatibilidade torna-se atualmente visível a cada dia, não apenas tratando-se de aborto, divórcio, contracepção, experimentação em células estaminais, eutanásia, e todo o conjunto (crescente) de problemas de bioética que a lei é chamada a regulamentar. Para não falar do conflito permanente sobre o problema da educação (sobretudo na escola obrigatória), sobre o seu caráter público (republicano) ou privado (confessional) e os seus programas em termos de ensinamento religioso e de matérias científicas “sensíveis” (o darwinismo).
O caráter antidemocrático das pretensões de Ratzinger e da Igreja católica hierárquica constitui para a democracia moderna uma ameaça, um verdadeiro e próprio desafio obscurantista, uma tentativa de revanchismo clerical. Mas é evidente que o desafio islâmico da sharia constitui uma ameaça ainda mais grave e onerosa. E não só nas versões extremistas e fundamentalistas (com seu séqüito de terrorismo), mas também em todas as variantes consideradas (erradamente) “moderadas”, visto que também estas recusam aceitar até o fundo a separação entre religião e política e as liberdades individuais (in primis, o direito de igualdade das mulheres, mas também o direito das crianças a uma educação pública exposta ao pensamento crítico). Tivemos que constatar como também grande parte do islamismo “moderado” nega até a liberdade de opinião (vejam o filme de Theo Van Gogh  outros episódios recorrentes).

Revanche do sagrado

Seja, pois, dito claramente e sem diplomatizar: enquanto todas as religiões, em todas as suas variantes e todos os seus matizes não aceitarem plenamente e sem reservas mentais a mais rigorosa laicidade, em síntese, essas religiões não só não poderão dar uma contribuição à paz e à liberdade (e à ética mundial que também Küng quereria), mas no que diz respeito aos valores de que se faz referência nas perguntas (não violência, solidariedade, tolerância, autonomia, pleno exercício da igualdade de direitos) constituirão uma ameaça e um obstáculo.

Não é aceitável, por exemplo, que em nome da própria religião um cidadão se subtraia aos seus deveres elementares no confronto com outros cidadãos (deveres elementares, note-se, que são menos do que a solidariedade que justamente Küng quereria). Além disso, na Grã Bretanha se verificaram casos de crentes que recusaram vender a pílula do dia seguintes, ou visitar (eram médicos) enfermos de sexo oposto. Com esta “lógica”, um enfermeiro testemunha de Jeová poderia recusar-se a fazer uma transfusão, deixando morrer exangue o paciente.

Não me parece, por isso, que estejamos vivendo numa época dominada pela “morte de Deus”. Vivemos, antes, num período de revanche do sagrado, nas formas mais diversas e espúrias (muitas das quais serão julgadas como “superstições” também pelas religiões mais difundidas). Esta necessidade do “sagrado” creio eu que seja o fruto da crise das democracias, no sentido específico (e, em geral não tematizado e até removido) das promessas não mantidas pelas democracias.

A democracia promete, de fato, a todos os cidadãos igual participação na soberania. Não a igualdade econômica ou social, mas certamente a igualdade da liberdade. Mas tal igualdade de liberdade/poder permanece, para a absoluta maioria dos cidadãos, uma pura quimera. Não posso adentrar-me aqui numa análise detalhada (remeto para isto ao meu “o soberano e o dissidente, ou então a democracia levada a sério”), mas até a democracia delegada se tornou com freqüência uma democracia de todo fingida, porque seqüestrada e monopolizada pelos aparelhos-máquina dos partidos, das ultra-potentes cadeias televisivas, do poder financeiro nas campanhas eleitorais, freqüentemente num perverso entrelaçamento e um “fare establishement” entre eles (para não falar da corrupção, das intimidações e de outras formas de ilegalidades do establishment).

Este retorno do sagrado, das religiões, das superstições, anda ao par com fenômenos de secularização tradicionais, para os quais a contradição é com freqüência interna ao mundo dos crentes (também como pessoas individuais). Durante o jubileu do ano 2000, uma multidão entusiasta de jovens (muitas centenas de milhares) tributou em Roma, na esplanada de Tor Vergata, um verdadeiro e próprio triunfo ao Papa Wojtyla, que lançava anátemas contra a imoralidade de um sexo reduzido a consumismo. Mas, na manhã seguinte, naquela mesma esplanada, a limpeza urbana recolheu vagões de preservativos. E muitos dos mais severos e potentíssimos “custodes” da ortodoxia moral islâmica (na Arábia saudita, mas não só) se permitem precisamente aquele desenfreado hedonismo que eles punem nos seus súditos com sistemas realmente medievais.

Moralidade do indivíduo contemporâneo?

Não é, por isso, possível falar da moralidade do indivíduo contemporâneo, visto que tipos muito diversos de moralidade estão presentes, entram em conflito, mas também convivem, com freqüência dentro do mesmo indivíduo. No entanto, é certo, a meu ver, que a moral do sucesso a todo custo, que hoje nos fatos goza de uma expansão global, e que vem erradamente identificada com a moral laica e secular do desencanto, não só não realiza o triunfo do indivíduo, mas constitui até um enorme perigo para a democracia.

Indivíduo significa, de fato, existência irrepetível, autonomia consciente, isto é, para dizê-lo nos termos de Hannah Arendt , possibilidade autêntica de ação. E a ação é o que põe no mundo o impensado, que subtrai o indivíduo e a coletividade à rotina do previsível, que realiza concretamente uma experiência de liberdade/poder. É, portanto, o oposto do con-formismo, e é até negada por todo conformismo. Ora, as nossas sociedades, que ainda se declaram individualistas (vangloriam-se de ser tais, ou são acusadas de serem tais) estão saturadas de conformismo. Por conseguinte, não são, de fato, sociedades de indivíduos, são sociedades de replicantes.

O iluminismo era certamente demasiado otimista, e nisto se iludia e enganava. Não basta “esclarecer” (“iluminar”) as mentes com a ciência e a educação para libertar o ser humano e torná-lo autônomo. Mas, isto não significa que devemos abandonar os ideais do iluminismo, o seu “sapere aude!” [ousa saber], o seu programa de autonomia do ser humano.

Ao contrário, devemos procurar realizá-lo verdadeiramente, reconhecendo que – em vista da autonomia – são necessárias pré-condições materiais e culturais igualmente distribuídas entre os cidadãos e que hoje, ao invés, são privilégio de poucos. Uma radical reforma social é até a pré-condição para que o conteúdo mínimo da democracia liberal (uma cabeça, um voto) não seja reduzido à ficção, mas seja princípio efetivo.

Um voto livre e igual para a autonomia de todos e de cada um, de fato, não é livre se condicionado pela violência (uma bala, um voto), pela corrupção (uma propina, um voto), pelo poder televisivo desigual (um spot, um voto), mas também pela frustrada ausência de instrumentos culturais (instrução e informação), e ainda mais pelas condições de pobreza que tornam vazia a palavra “autonomia”. Em todos estes casos, haveria o voto, mas não a “cabeça”, isto é, o indivíduo em condições de exercê-lo de modo autônomo. Não há voto livre sem uma sociedade livre da necessidade, pelo menos nos seus aspectos fundamentais, por conseguinte, uma sociedade com desigualdade limitada e com um bem-estar muito progressista. Exatamente o oposto de quanto acontece hoje na América Latina, na Ásia, para não falar da África, e que é posto em discussão também no mais rico Ocidente.

Levar a sério a idéia da autonomia não é, pois, nem otimista, nem pessimista, é obrigatório, caso se queira verdadeiramente uma sociedade democrática fundada sobre indivíduos (e não sobre uma ideologia “individualista”, isto é, sobre o conformismo proprietário e privilegiado). Isso perfaz uma coisa só com a luta por uma sociedade democrática, onde democracia signifique as liberdades de todos (e de cada um) e não uma restrita oligarquia.

A morte de Deus ou a revanche de Deus (ambos os fenômenos são hoje visíveis e se entrelaçam no mundo globalizado) são a conseqüência precisamente das promessas não mantidas pela democracia. A laicidade, o indivíduo autônomo, tem necessidade de base materiais e culturais, de condições sociais, educativas, de pluralismo e imparcialidade da mídia, que sejam institucionalizadas (isto é, garantidas nas Constituições) e nutridas cotidianamente por políticas coerentes com tais valores.

Isto significa um reformismo radical no Ocidente e verdadeiras e próprias “revoluções” (espera-se que sejam pacíficas) no resto do mundo. As religiões podem certamente dar uma contribuição nesta direção. Ou mesmo, em sentido exatamente oposto (aquele da opressão, bem como da libertação). Depende de como os crentes interpretam a sua fé.

O projeto de Hans Küng realiza uma clara escolha por um tipo de fé ecumênica e plenamente respeitosa do princípio de laicidade na vida pública. Seu projeto implica, portanto, também uma “luta” no interior das várias religiões (e, em primeiro lugar do cristianismo, e ainda mais especificamente do catolicismo), para que nas religiões sejam derrotadas tendências ou tentações, hoje decididamente majoritárias, fundamentalistas, integralistas ou que pretendam ser não só fé, mas também razão.

É, por conseguinte, um projeto no qual crentes e laicos podem encontrar-se, mas que se choca com forças crentes e “laicas” hoje dominantes, cuja verdadeira “razão” e cuja verdadeira “fé” não são nem a fé, nem a razão, mas o privilégio.

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