Edição 240 | 22 Outubro 2007

Os limites de uma ética planetária

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IHU Online

Convidado pela revista IHU On-Line a responder algumas questões relacionando o Projeto de Ética Mundial de Hans Küng e o seu impacto na sociedade, o filósofo francês Paul Valadier, SJ, enviou-nos o texto exclusivo a seguir, por e-mail. Nele, Valadier defende que, “ao invés de procurar uma hipotética base comum, forçosamente muito frágil ou somente consensual nas palavras, convém antes encarar as nossas diferenças e não procurar apagá-las. A paz e o entendimento só podem nascer da consciência compartilhada de nossas (legítimas) diferenças, tal é o mundo pluralista no qual nós devemos viver e no qual é preciso procurar paz e concórdia entre todos os povos e todas as religiões”. Mais adiante, ele argumenta que, “além de seu aspecto fabricado, construído e artificial, o risco de uma ‘ética planetária’ consiste igualmente em minimizar a diversidade das culturas, cedendo à tendência atual e acrítica de encontrar pontos comuns, independentemente das mil maneiras de viver a vida humana e de honrar a pessoa em sua dignidade. Entra-se num acordo sobre princípios abstratos, porém se esquece o terreno sobre o qual se forma e cresce a consciência moral ou a razão prática, a saber, a diversidade irredutível das culturas e das tradições religiosas”.



Valadier é professor de filosofia moral e política nas Faculdades Jesuítas de Paris (Centre Sèvres). É licenciado em Filosofia pela Sorbonne, mestre e doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Lyon. Foi redator da revista Études e é autor de uma vasta bibliografia. De seus livros, citamos L’anarchie des valeurs (Paris: Albin Michel, 1997); Nietzsche l'intempestif (Pari: Beauchesne, 2000); e La condition chrétienne, être du monde sans en être (Paris: Le Seuil, 2003). Entre suas obras publicadas em português, destacam-se Elogio da consciência (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001); Um cristianismo de futuro: para uma nova aliança entre razão e fé (Lisboa: Instituto Piaget, 2001); e A moral em desordem: um discurso em defesa do ser humano (São Paulo: Loyola, 2003). Na edição 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004, concedeu a entrevista “Investidas contra o Deus moral obsessivo”, republicada nos Cadernos IHU em formação edição nº 15, de 2007, que tem como tema O pensamento de Friedrich Nietzsche. Na edição 220, de 21-05-2007, concedeu a entrevista “O futuro da autonomia, política e niilismo”. Foi um dos conferencistas e palestrantes de minicurso no Simpósio Internacional O Futuro da Autonomia. Uma sociedade de indivíduos?, realizado de 21 a 24-05-2007. Em 23-05-2007, Valadier falou sobre “A moral após o individualismo”, e em 24 de maio proferiu a conferência de encerramento do Simpósio, falando sobre “O futuro da autonomia, política e niilismo”. Em 27-05-2007, publicamos nas Notícias do Dia do site do IHU, www.unisinos.br/ihu, a entrevista exclusiva que Valadier concedeu pessoalmente à IHU On-Line, sob o título “A esquerda francesa está perdida”. Publicou o artigo “A moral após o individualismo: a anarquia dos valores”, nos Cadernos Teologia Pública número 31. O material também está disponível na edição 221 da IHU On-Line, de 28-05-2007.

Para responder corretamente às questões colocadas, seria preciso ter uma idéia precisa da ética planetária que propõem Hans Küng e seus amigos do “Parlamento das religiões do mundo”. Trata-se de uma ética minimalista ou da definição de um núcleo comum às grandes religiões mundiais? Embora se trate, no Manifesto por uma ética planetária (Chicago, 1993), de um “acordo mínimo concernente a valores constringentes”, parece que a investigação conduz à idéia de que as religiões “compartilham de um núcleo comum de valores essenciais em sua doutrina”. Não se trata, pois, de um mínimo, mas de uma base “incontornável e necessária” a todos os domínios da vida e, sobretudo, na perspectiva de uma “ordem mundial duradoura”.

Ora, podemos interrogar-nos legitimamente sobre a consistência de tal base e sobre a realidade de uma comunidade de perspectivas e de princípios que esta Ética Mundial pressupõe. Existe realmente tal base? Será verdade que todas as religiões podem chegar a um acordo sobre uma base comum, independentemente de sua doutrina e, portanto, de sua concepção do mundo, do homem e de Deus? Vai esta base além de uma profissão intelectual e teórica de alguns princípios gerais, mas concretamente vazios ou de tal modo ambíguos que cada um dará às palavras um conteúdo bem diferente, segundo o sistema de pensamento que lhe é próprio? Neste caso, ao invés de permitir entendimento e concórdia, esta base totalmente formal corre o risco de acarretar incompreensões ou falsos acordos. As pessoas acreditam entender-se sobre termos ou sobre princípios, mas cada uma lhes dá um sentido diferente segundo sua visão do mundo. Por exemplo, para citar apenas o cristianismo e o islã, será certo que dos dois lados se tenha o mesmo sentido da pessoa em sua relação à comunidade (religiosa e política)? Será seguro que se possa chegar a uma base comum entre o Deus único e o Deus trinitário? Haverá acordo possível na relação entre a esfera política e a esfera religiosa, já que o cristianismo afirma com força uma distinção dos Reinos (portanto, do temporal e do espiritual) que o islã recusa como fraqueza e para o qual esta distinção tem, quando muito, um valor de oportunidade, sem fundamento numa doutrina que privilegia a Umma? Será que a liberdade religiosa é entendida da mesma forma aqui e lá, ou ela é um erro para o islã, ou seja, um desrespeito a Deus? Poder-se-iam multiplicar os exemplos.

Encarar as diferenças sem apagá-las

Eu concluo que, ao invés de procurar uma hipotética base comum, forçosamente muito frágil ou somente consensual nas palavras, convém antes encarar as nossas diferenças e não procurar apagá-las. A paz e o entendimento só podem nascer da consciência compartilhada de nossas (legítimas) diferenças, tal é o mundo pluralista no qual nós devemos viver e no qual é preciso procurar paz e concórdia entre todos os povos e todas as religiões.

Uma parte do questionário (e isto é igualmente implícito no Manifesto por uma ética planetária) deixa entender que se poderia formular uma ética nova e adaptada ao nosso tempo. Mas a ética não se inventa; ela não é o produto refinado de cérebros inteligentes, generosos e competentes. Ninguém seguiria tal ética ou moral, mesmo se elaborada em algum “Parlamento”, até mesmo planetário. Uma ética é feita para ser vivida, para informar a vida das pessoas e dos povos. A ética evolui certamente segundo as épocas, as experiências feitas, a influência de certas correntes de pensamento (utilitarismo, relativismo etc.), mas fundamentalmente os homens, a encontram nos costumes, nas tradições recebidas, nas diversas culturas e religiões, sob as prescrições da consciência pessoal que, afinal, decide por si só, sem procurar suas referências em manifestos ou escritos teóricos. O próprio Kant, a quem se censurava por haver inventado uma nova moral, afirmava com força que ele evidentemente nada inventara, mas que ele tentara, em sua obra filosófica, formalizar os princípios orientadores da boa vontade, acessíveis a toda razão ou a toda consciência certa. Sem dúvida, ele minimizava a importância e o alcance de sua formalização (insistência na boa vontade, valorização do dever, crítica da idéia de felicidade etc.). Não obstante, sua recusa é justa: ele não descobriu uma nova moral nem pretendeu acrescentar princípios sem precedentes à consciência comum; ele tem razão em pretender que tal tarefa estaria fora de seu alcance.

Além de seu aspecto fabricado, construído e artificial, o risco de uma Ética Mundial consiste igualmente em minimizar a diversidade das culturas, cedendo à tendência atual e acrítica de encontrar pontos comuns, independentemente das mil maneiras de viver a vida humana e de honrar a pessoa em sua dignidade. Entra-se num acordo sobre princípios abstratos, porém se esquece o terreno sobre o qual se forma e cresce a consciência moral ou a razão prática, a saber, a diversidade irredutível das culturas e das tradições religiosas.

Fica bastante evidente que, numa época em que cresce a consciência de nossa comum humanidade, de nossa solidariedade além de todas as diferenças, não seria em vista do meio ambiente ou por causa da onipresença de violências de toda sorte que vamos encontrar os meios de viver juntos e, se possível, de viver bem. Cabe a cada religião interrogar-se sobre si própria e sobre sua aptidão em não favorecer os fanatismos, mas, ao contrário, em convencer os seus fiéis do respeito ao outro e a qualquer outro, educando-os para uma justa tolerância com aquele que deles difere. Neste aspecto, as atuais tentações fundamentalistas de retorno desconfiado sobre si não são encorajadoras: elas estão presentes em todas as religiões sob uma forma ou outra, mas, é preciso ousar dizê-lo, é particularmente o caso do islã e daquilo que ele promove, o islamismo.

A necessidade de um direito internacional

De maneira bem concreta, parece-me que é preciso dar bastante importância ao desenvolvimento de um direito internacional, sancionado por tribunais dotados de reais poderes de julgamento e de coerção. A via jurídica, que continua amplamente a ser inventada, é certamente mais segura do que a de uma Ética Mundial sonhada e efetivamente não compartilhada enquanto tal. Sem dúvida, não podemos iludir-nos sobre a viabilidade dessa perspectiva jurídica: basta constatar que uma “grande Nação”, como os Estados Unidos, fundada sobre os princípios da democracia e dos Direitos do homem, dela se dispensa abertamente segundo seus interesses, ou segundo a arbitrariedade de sua administração, e que ela exibe atualmente a pretensão extremamente preocupante de se posicionar acima dos princípios do direito e da moral. Mas estas tendências aberrantes devem ser combatidas pela arma do direito e, não é por serem múltiplos os obstáculos para um povo que deveria respeitar, mais do que nenhum outro, os Direitos humanos, que é preciso desesperar. Na medida em que as religiões monoteístas têm pretensões de universalidade, elas podem contribuir de maneira eminente ao fortalecimento da comunidade internacional e de seu direito, não buscando hipotéticas bases comuns, mas encontrando-se na vivacidade de sua contribuição e, como dizia Paul Ricoeur , no “conflito das interpretações”. Mais genericamente, existe a tendência de esperar um avanço da consciência coletiva dos povos, mesmo que o fortalecimento desse avanço exija muito tempo, tempo durante o qual as violências multiplicadas ensinarão a todos, esperemo-lo, a única via razoável: a da cooperação num direito internacional reconhecido por todos e sancionado como todo direito. O sangue derramado educará, talvez, os povos para a sabedoria. 

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