Edição 238 | 01 Outubro 2007

A vivacidade das experiências de chegada e encontro com Cristo na história gaúcha

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O frei Luiz Carlos Susin, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, é professor na PUC-RS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF), em Porto Alegre. Ele é autor de inúmeros livros, entre os quais, citamos o livro organizado por ele, Teologia para outro mundo possível (São Paulo: Paulinas, 2006). Enquanto participava do Fórum da Igreja Católica no Rio Grande do Sul, realizado de 20 a 23 de setembro de 2007, em Porto Alegre, frei Susin respondeu a duas questões para a revista IHU On-Line, que publicamos a seguir.

Confira, ainda, nas Notícias Diárias do site do IHU, www.unisinos.br/ihu, as entrevistas Uma visão idealista e uma afirmação muito identitária, publicada em  11-07-2007, e II Fórum Mundial de Teologia e Libertação, publicada em 09-02-2007, concedidas com exclusividade por Susin à IHU On-Line. Em 15-03-2007 Susin deu um depoimento especial ao site do IHU sobre a notificação do Vaticano a Jon Sobrino.

IHU On-Line - Que aspectos, elementos ou conteúdos de cristologia você considerou oportuno retomar em vista do Fórum da Igreja Católica do Rio Grande no Sul?
Luiz Carlos Susin -
Coube-me investigar e apresentar a “história de Jesus no Rio Grande do Sul”, ou seja, a memória de sua chegada e o seu percurso, com as mudanças de seu perfil. Nós podemos encontrar, até meados do século XX duas figuras fundamentais de Cristo que agregam variantes e se inculturam em nossa terra:

a) O Bom Jesus da Paixão
A primeira configuração cristológica que nos chega pelo lado espanhol e pelo lado português e açoriano tem suas raízes na espiritualidade barroca ibérica. Na Europa, o barroco era, em parte, reação ao renascimento. Enquanto o renascimento era uma exaltação ao ser humano, um antropocentrismo otimista, não conseguiu expressar as contradições humanas, sobretudo o sofrimento e a morte. No renascimento só há força, brilho, triunfo. O barroco voltou a representar a fragilidade, a obscuridade, a dor, inclusive a morte, integrando os contrários. E esta espiritualidade ganhou na península ibérica uma profundidade “moura”, apaixonada, onde amor e sangue, paixão como sentimento e como sofrimento se unem e dão o caldo da vida. Isso inclui a mistura de vida e morte, como o claro e o escuro, o pesado e o leve. Nas colônias, portanto em toda a América Latina, alcança ainda mais profundidade, sobriedade e, ao mesmo tempo, leveza. E a figura de Cristo na Paixão – em todos os sentidos da paixão – é o centro que configura também o povo e até a paisagem. Na sexta-feira da paixão, está seu ponto de clímax: o Senhor da Cana Verde, o Ecce Homo, sobretudo o Senhor dos Passos, e o Senhor do Bom Fim representam Cristo na paixão em movimento, numa plasticidade impressionante. Em plena procissão, todos cantavam, então: “A morrer crucificado...”. No Rio Grande do Sul, há inúmeras capelas, imagens, ruas, bairros, com estes nomes: Senhor dos Passos, Senhor do Bom Fim. Não se trata de “muita sexta-feira santa e pouco domingo de Páscoa”. Na mesma representação, está concentrada a glória, representada pelo “esplendor”, a áurea de prata que se pode contemplar por trás da cabeça ensangüentada: há morte, mas já há glória e ressurreição. Além disso, na representação do Senhor do Bom Fim se representa também a Mãe das Dores e o discípulo e a discípula amados, João e Madalena, ou um dos dois, de tal forma que se pode compreender nesta cristologia barroca o evangelho de João: já na cruz brilha a glória porque antes da dor há o amor, amor até o fim, amor de paixão, tão apaixonado que leva de roldão a própria morte. Já não se sabe se o vermelho que domina o quadro se refere ao vermelho do sangue e da dor ou ao vermelho do amor apaixonado. E tudo isso num quadro de compaixão: se ele faz seus passos no meio do povo, então os sofrimentos do povo também têm esperança, pois se Deus sofreu tanto o sofrimento humano tem futuro. De tal forma que a compaixão fecha um círculo: não só ele teve compaixão dos sofrimentos humanos, mas é necessário ter compaixão dele, acompanhando e fazendo penitência para sofrer com ele numa redenção e numa glorificação somadas. Tal é o segredo e a resistência desta primeira cristologia.

Mas esta cristologia se inculturou profundamente na narrativa do Negrinho do Pastoreio, o Servo sofredor que representa de forma lendária, toda a paixão absurda em busca de sentido e de esperança dos escravos nas charqueadas, no pior tempo da escravidão. O negrinho do pastoreio é o inocente sofredor em cujas chagas muitos serão beneficiados: depois de seu sofrimento até o fim, protegido pela figura da Madrinha Nossa Senhora, ele aparece “risonho e sarado”, em busca de tudo o que se perde pelos campos. É a glorificação, a mediação, o resgate até dos algozes. Lendas são “rastros das almas” (Coelho Neto) e significam uma realidade mais do que barroca, o maior contraste de nossa terra, o nosso trauma ainda não reconhecido. Junto a ele, se pode lembrar a figura heróica de Sepé Tiaraju , que é lembrado por muitos lados, de forma popular, como aquele que, morrendo na defesa do seu povo por uma lança, aparece a cavalo com lança e brilho na testa – o “esplendor”, o mesmo do crucificado, tornando-se o “advogado”, o “defensor” dos que não tem defesa. Isso é levar a cristologia barroca até o que há de mais genuíno nas frestas do Rio Grande do Sul oficial: os descendentes de indígenas misturados e com memória traumatizada e os negros que levaram o Rio Grande do Sul nas costas e permanecem à margem.

b) O Coração de Jesus
A segunda “chegada” e configuração de Cristo no Rio Grande do Sul é o Coração de Jesus, ao qual corresponde a mariologia do Coração de Maria. Na Europa, esta cristologia tinha raízes místicas, mas se tornou a cristologia da identidade católica diante da modernidade, da secularização, do ateísmo e do agnosticismo provocados pelo iluminismo e pelo avanço das ciências, e diante da Reforma Protestante que tinha reduzido os sacramentos e a hierarquia. Aqui, o Coração de Jesus chegou de forma missionária, com as congregações religiosas. Veio trazendo um novo fervor, de caráter mais pessoal e sacramental, preocupado com a educação e a catequese, e mais conectado com a “romanização” do catolicismo barroco. Muitos colégios, províncias religiosas, seminários e associações, sobretudo o Apostolado da Oração, a “Folhinha do Coração de Jesus” etc. tiveram penetração pelo Rio Grande. Um novo “encantamento” se escutava: “Coração santo, tu reinarás...” E o povo, de certa forma, “barroquizou” o Coração de Jesus também. O coração foi representado com espinhos e sangue, e foi colocado em nichos e altares barrocos. A devoção e o fervor quase reduziram o Coração à doçura interior: “Meu doce Coração!”. Então, com o projeto romano de “Restaurar todas as coisas em Cristo” e a Ação Católica , se configurou o Cristo Rei, uma espécie de “braço político” do Coração de Jesus. Cristo Rei ou Redentor passou a ser representado em espaços públicos, ao aberto, e ainda hoje, sobre o centro jesuíta de formação do clero por longas décadas é encimado pela figura de visão panorâmica do Cristo Rei. Com ele se catava “Levantai-vos, soldados de Cristo...”.

No entanto, os movimentos de preparação do Concílio e os documentos conciliares Dei Verbum e Gaudium et Spes  deram duas novas indicações para a cristologia que chegaria ao Rio Grande: o retorno às fontes históricas, com a hermenêutica histórico-crítica, e as dores e angústias com alegrias e esperanças “especialmente dos pobres” como contexto da realidade, o horizonte do Reino de Deus, horizonte de Jesus histórico e da realidade das periferias, que iriam se tornar inflacionadas a partir das décadas de 1960 e 70. Tudo isso iria provocar a emergência de uma nova cristologia também no Rio Grande do Sul: o Jesus Libertador narrado nos evangelhos e interpretado com os métodos de leitura popular da Bíblia, com o círculo Palavra-Vida, com a Leitura Orante da Bíblia etc. Da mesma forma, a mariologia correspondente seria a Maria de Nazaré, mulher do povo.

IHU On-Line - Quais são as implicações destes dados cristológicos para se pensar a presença da Igreja na sociedade contemporânea e, mais especificamente, em terras gaúchas?
Luiz Carlos Susin -
As experiências de chegada e de encontro com Cristo na história do Rio Grande do Sul estão ainda vivas não só na memória, mas na tradição e na experiência atual. As contradições e o sincretismo que torna coerente o que é aparentemente incoerente, próprio do barroco, ainda está na vida do povo, e por isso o Bom Jesus da Paixão é um evangelho de salvação, de consolo e de resistência nas tribulações populares. Temos ainda uma dívida histórica com os descendentes de Sepé e do Negrinho do Pastoreio, e a cristologia é lugar para saldarmos esta dívida.

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