Edição 234 | 03 Setembro 2007

Os últimos passos de um homem, de Tim Robbins (1992)

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CINEMA E SAÚDE COLETIVA II – CUIDADO E CUIDADOR: OS VÁRIOS SENTIDOS DESSA RELAÇÃO

Para a psicóloga Susana Rocca, a trama apresentada no filme Os últimos passos de um homem, de Tim Robbins (1992), “traz à tona a discussão sobre a igualdade e dignidade de todo ser humano, questionando preconceitos”. Segundo ela, o filme mostra que “só o perdão liberta”. As afirmações foram feitas na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line. O tema será aprofundado nesta terça-feira, 04-09-2007, no evento Cinema e Saúde Coletiva II – Cuidado e cuidador: os vários sentidos dessa relação, com a exibição dessa obra cinematográfica.
Graduada em Psicologia pela Universidade Católica do Uruguai, Rocca é especialista em Aconselhamento e Psicologia Pastoral pela Escola Superior de Teologia (EST), de São Leopoldo. Nessa mesma instituição, cursa mestrado em Teologia Prática, com o tema Resiliência e espiritualidade. É colaboradora do Instituto Humanitas Unisinos – IHU no Atendimento Espiritual, além de responsável pela organização do evento Encontros de ética. Há 24 anos, segue a vida religiosa na congregação das Missionários do Cristo Ressuscitado. É uma das organizadoras da obra Sofrimento, resiliência e fé: implicações para as relações de cuidado, que em breve será publicado pela editora Sinodal.

Ficha Técnica
Título Original: Dead man walking
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 123 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1995
Direção: Tim Robbins

Sinopse
Em Louisiana, uma freira católica (Susan Sarandon) passa a ser a guia espiritual e a lutar pela vida de um homem (Sean Penn) que espera ser executado a qualquer momento, por ter assassinado dois adolescentes, sendo que uma das vítimas foi uma jovem que foi estuprada antes de morrer.

 

Resiliência e cuidado
ENTREVISTA COM SUSANA ROCCA


IHU On-Line - Que sentido pode haver em cuidar do “incuidável”, ou seja, de uma pessoa cuidar de um homicida condenado à morte?
Susana Rocca -
O filme resgata a dignidade de todo ser humano, até mesmo daquele que, aos olhos da sociedade e da justiça, seria impensável de considerar merecedor de cuidados, visto que no caso do protagonista trata-se de alguém que matou um casal de jovens inocentes, tendo estuprado antes a garota. A trama traz à tona a discussão sobre a igualdade e a dignidade de todo ser humano, questionando preconceitos. Em mais de uma oportunidade, aparece o questionamento dos motivos que levam a religiosa a cuidar do condenado. Tendo feito na sua juventude uma escolha pela vida religiosa comprometida com os mais pobres, decide cuidar de um condenado à morte como resposta a um convencimento evangélico: todo ser humano tem dignidade. Esse grande desafio não dependeu da inocência ou não do condenado, pois, mesmo sabendo de pelo menos sua cumplicidade, ela continuou acompanhando-o. Simplesmente, sentiu-se tocada por tratar-se de um pedido de ajuda de quem se diz pobre, sem dinheiro para contratar um bom advogado e sem sequer a visita dos familiares.

A sensibilidade e a compaixão pela solidão do prisioneiro é um dos motivos humanitários para ela agir. Mas, por trás desse motivo, ela tem uma clara motivação transcendente, e aí estava seu sentido mais profundo de cuidar de alguém que, aos olhos de muitos, é um “incuidável”. Para ela, conforme suas crenças religiosas, mesmo sendo um criminoso, ele é digno de cuidado, pois é um filho de Deus.

IHU On-Line - De que forma o elemento espiritual da relação entre a freira e o condenado fortalece seus últimos dias de vida?
Susana Rocca -
O argumento apresenta a controvérsia que implica ser cristão. Aparece a postura de um cristianismo centrado só na justiça, na retaliação, na lei do Talião: “olho por olho, dente por dente”, assim como uma visão reducionista da fé, como se a única coisa que interessa é a salvação da alma e esta, alcançada mediante o rito, o sacramento. A figura da religiosa vai muito além. Ela encarna a idéia de salvação, libertação e saúde como dimensões integrais e integradas no ser humano. Por isso, ela assume o cuidado dele, preocupando-se com todas as dimensões: história, vínculos, família, direitos como cidadão (recursos judiciários, roupa, enterro etc.). Fica claro que seu compromisso cristão se baseia na gratuidade no amor, a compaixão (entendida como um colocar-se junto de quem padece), com um objetivo claro: a libertação pelo menos interior do condenado. Libertação que só passaria pelo reconhecimento de sua falta e pelo pedido de perdão. Essa meta não foi fácil de alcançar, o processo foi difícil e, por vezes, como na vida real, lento, no qual não há certeza de que se chegará, ou não, à meta. A perseverança na busca de uma saúde interior e a presença amorosa, incondicional, constante da cuidadora, encontram um terceiro elemento-chave: a busca de sentido para a sua vida e para a sua morte. O processo de encontro consigo mesmo, que leva o condenado a encontrar uma “saída”, uma perspectiva, vai se fazendo mediante o diálogo com a irmã e através dos ensinamentos de Jesus na Bíblia. Assim, consegue assumir as suas próprias dores, frustrações e culpas, à medida em que se sente escutado e desafiado a aceitar a realidade com verdade. Aí encontra saúde interior, liberdade de consciência e sentido, como se insinua no desfecho do filme. Diríamos que ele foi acompanhado a se encontrar com a sua história e delitos, com alguém que lhe acompanhou a reconhecer-se nos seus erros, mas, sem, por isso, marginalizá-lo, condená-lo. O cuidado e a companhia incondicional que a irmã teve com o criminoso como pessoa não podem ser confundidos com uma aceitação ingênua dos comportamentos injustos e delitivos do protagonista. Por isso mesmo, ela não muda sua atitude quando confirma que esse homem foi autor dos crimes. O processo de “cura interior” só acontece quando ele consegue entender que é preciso reconhecer sua culpa, e que “a verdade o torna livre”. Eis, então, quando consegue mudar a postura de ódio aos que querem matá-lo em pedido de perdão antes de morrer.

IHU On-Line - Que conexões entre resiliência e cuidar essa pessoa “incuidável” é possível fazermos? Por quê?
Susana Rocca -
O tema da resiliência é a capacidade de resistir e re-fazer-se após situações adversas, é a capacidade de superar situações traumáticas e continuar-se projetando no futuro. A partir do filme, há vários nexos que poderíamos fazer, se quisermos pensar as contribuições da resiliência para analisar esta e tantas outras relações de cuidado. Em primeiro lugar, a resiliência é uma capacidade que, de menor ou maior forma, todo ser humano tem. Até poderíamos pensar também de quem pode parecer não ter, ou não querer cura, e, por isso, não mereceria ser cuidado/curado. As pesquisas constatam que nenhum ser humano é capaz de superar situações traumáticas absolutamente sozinho. Sempre há pessoas significativas que colaboram para que cada ser humano possa superar melhor as situações adversas. Podem ser familiares, amigos e até pessoas desconhecidas que, em determinado momento do caminhar, resultam ser significativas. São figuras capazes de aceitar, acolher, escutar a pessoa fragilizada, como fez a religiosa. Boris Cyrulnik , um psiquiatra, neurologista e etnólogo francês, que com seis anos de idade fugiu de um campo de concentração, após a morte dos pais e irmãos, diz que existem pessoas chaves que podem ser consideradas “tutores de resiliência”. Caracterizam-se pelo apoio incondicional à pessoa sendo também capazes de colocar limites. Não se trata de paternalismos, pois fomentam a autonomia e o protagonismo da pessoa enfraquecida. O cuidador ou cuidadora, sob a ótica da resiliência, é alguém que está junto, suscitando a aceitação de si, a auto-estima, fomentando a reflexão e o encontro consigo mesmo, a assunção das próprias responsabilidades e limites, o projeto de vida. A promoção da resiliência também depende das redes de apoio social.

A irmã Helen busca o encontro e o apoio da família, de advogados, do bispo, de outra religiosa etc. O isolamento e a separação dos vínculos aumentam os fatores de risco. No filme, o contato físico está bem restrito, até na hora da morte, em que nem a mãe pode sequer se despedir com um abraço. A força e o carinho, passados através do toque, só são permitidos à cuidadora, que é autorizada a apoiar sua mão no ombro do protagonista na hora dos seus “últimos passos”. O isolamento opera também como uma forma de controle. Um ponto-chave nas relações de cuidado é a relação de empatia entre o cuidador e quem é cuidado. Apesar de todas as grandes diferenças de mentalidade e de opção de vida do prisioneiro e da religiosa, ela faz todo o possível para ganhar a sua confiança, para entendê-lo e para encurtar as distâncias. Para isso, criativamente encontra algo em comum: “nós dois moramos com os pobres”. A criatividade para resolver situações difíceis, a iniciativa e o senso de humor são características próprias das pessoas resilientes, vislumbradas no papel da religiosa. No caso, tanto poderia analisar-se as capacidades resilientes da Irmã Helen quanto as suas capacidades como promotora de resiliência de quem ela cuida. Além dos medos normais suscitados por uma situação desconhecida, perigosa e difícil, ela precisa superar outras dificuldades. Por exemplo, diante de diferentes situações e pessoas  que a desafiam. Ela também é ameaçada pelo estigma social à medida que lida com um culpado, o distanciamento das crianças, as críticas da sua família e dos familiares das vítimas.  A religiosa, uma mulher lúcida e perseverante, não desiste no seu objetivo, apesar das dificuldades que se apresentam. Não foge da realidade, a assume e encara com uma visão realista e otimista, própria de um olhar resiliente. Sente-se desafiada a assumir o cuidado das pessoas numa perspectiva de esperança sabendo com tudo que as escolhas são feitas por pessoas na liberdade da sua consciência.

IHU On-Line - Pensando em nossa sociedade contemporânea e em sua dificuldade em perdoar e compreender o outro, qual é o ensinamento que os últimos passos de um homem pode oferecer?
Susana Rocca -
O filme traz o debate sobre até que ponto a pena de morte “resolve” ou não a temática do ódio e da violência, que até, infelizmente, às vezes aparece justificada até com razões religiosas. Pessoalmente, creio que a superação da violência não pode ser feita com a mesma arma da violência. Creio que a vida é um valor que está acima de todos os valores. E é preciso cuidar para que o ódio, até às vezes muito compreensível que apareça, diante das situações extremas de injustiça como a morte dos inocentes, não possa ter a última palavra. Os últimos passos de um homem mostra que só o perdão liberta. O perdão que brota da pessoa que erra e por isso pede perdão, e o perdão que brota daquele que, sofrendo injustamente, luta para superar sua dor, mas é capaz de não fechar-se na mágoa e na dor da ferida, e de perdoar, como se apresenta no dilema do pai que não consegue perdoar. Stefan Vanistendael  e outros pesquisadores sobre resiliência estudam as implicações éticas do conceito, pois, sob a ótica da resiliência, é preciso considerar dois ângulos: o bem-estar próprio e o bem-estar dos outros. Nesse sentido, as tentativas de superar as dificuldades que impliquem agressão, violência ou outros danos a terceiros não poderiam ser consideradas atitudes resilientes, mesmo se ajudam a superar a própria situação traumática. O filme traz também o questionamento ético presente nos debates sobre resiliência. Pois, sob esta ótica, crenças religiosas que fomentam a violência e a exclusão não podem ser consideras promotoras de resiliência.

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