Edição 233 | 27 Agosto 2007

A integralidade em saúde: uma utopia a ser perseguida

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IHU Online

Para a professora e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz Maria Cecília Minayo, “uma das metas da Saúde Coletiva é a integralidade das ações, tanto no atendimento médico como nas ações de promoção e prevenção”.

Maria Cecília possui graduação em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em Ciências Sociais, pela State University of New York, mestrado em Antropologia Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e doutorado em Saúde Pública, pela Fundação Oswaldo Cruz. Minayo tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Pública. É autora de vários livros, entre os quais citamos Violência contra idosos - o avesso do respeito à experiência e à sabedoria (Brasília: Editora SEDH, 2004), e é uma das organizadoras do livro Tratado de Saúde Coletiva (São Paulo: Hucitec, 2006). Confira, a seguir, a entrevista que ela nos concedeu por e-mail:

IHU On-Line - A senhora pode falar sobre o trajeto da Saúde Coletiva no Brasil? Por que o Brasil é o único país que adota este nome, considerando-se que na Europa e nos Estados Unidos chamam de Saúde Pública e os latino-americanos utilizam a expressão Medicina Social?
Maria Cecília Minayo -
Na verdade, o trajeto da Saúde Coletiva encontra suas origens na Medicina Social do século XIX, mais precisamente a partir dos anos 1850, quando o desenvolvimento do pensamento social evidenciou que a saúde dependia muito mais de leis econômicas, de projetos sociais e culturais do que propriamente da medicina. No Brasil, essa trajetória se intensifica a partir da década de 1970, a partir do que se costuma chamar Movimento Sanitário. O Movimento Sanitário Brasileiro provocou várias inflexões importantes, dentre as quais citarei duas: uma tendência de mudança a favor da universalização da atenção à saúde, cujo provimento até então era ofertado às instituições criadas por corporações de trabalhadores e pela medicina privada, e uma busca de transformação do modelo hospitalocêntrico, dando lugar a uma oferta de serviços básicos, de prevenção e de promoção. É importante saber que, concomitantemente ao Movimento Sanitário Brasileiro, que culminou sua forte influência na 8ª Conferência de Saúde, cujo desdobramento é a instituição do SUS , o pensamento em saúde no mundo também buscava mudança. A chamada Carta de Otawa , resultante de uma Assembléia Mundial de Saúde e que continua a ser considerada a “Bíblia” da Promoção da Saúde, também ocorreu em 1986.

O termo Saúde Coletiva veio do referido Movimento Sanitário histórico. Embora essa expressão “coletiva” tenha bastante inconsistência teórica, na verdade sendo um aposto ao termo Saúde, configura e sintetiza a idéia de saúde como um bem da coletividade, da sociedade, sendo, portanto, uma meta de conquistas que ultrapassam o sistema biomédico. Em segundo lugar, a expressão se opõe ao tradicional termo Saúde Pública, que geralmente foi usado para falar das intervenções do Estado voltadas para estancar epidemias, para tratar endemias, como um ato do poder oficial. No entanto, esse termo continua uma invenção brasileira. A nossos parceiros internacionais soa estranho que substituamos Saúde Pública por Saúde Coletiva.

IHU On-Line - De que maneira podemos ver a Saúde Coletiva hoje na questão da integralidade na atenção e no cuidado à saúde? Qual é a importância de encarar o tratamento de saúde como um cuidado paliativo e integral? Que mudanças estão em curso nesse sentido? 
Maria Cecília Minayo -
Uma das metas da Saúde Coletiva é a integralidade das ações tanto no atendimento médico como nas ações de promoção e prevenção. No entanto, essa meta é uma utopia que temos que perseguir, pois nem a integralidade nem a universalidade estão dadas com a qualidade que o cidadão brasileiro precisa e merece. Essa incompletude e essas falhas levam a opinião pública a menosprezar o SUS, pois o vêem como um sistema pobre para servir “mal” aos pobres. No meu modo de ver, todos nós somos responsáveis por essa construção que consiste desde decisões governamentais, transformação de estruturas, até reformas e transformação de mentalidade dos médicos e de toda a equipe de saúde. Cada uma das pequeninas peças que compõem o sistema SUS precisa ser permanentemente repensada. Essa avaliação sistêmica e essa ação, a meu ver, são muito mais difíceis que o princípio do Movimento Sanitário até a conquista da universalidade e outros atributos, pois agora é a hora da verdade: de pôr em prática aquilo que acreditamos, sem corporativismos. Freqüentemente, os autores da construção atual e do rumo atual não são os mesmos que atuaram na formulação política. Nesse sentido, julgo corajosa a postura do Ministro da Saúde atual, Dr. Temporão , que está chamando os atores do processo para uma reforma estrutural dos serviços, visando ao usuário, à qualidade da atenção dispensada.
 
IHU On-Line - A senhora já foi presidente da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO). Quais são os desafios e os méritos da instituição hoje? Qual é sua avaliação? 
Maria Cecília Minayo -
Considero a Abrasco uma grande instituição brasileira, construída a partir dos anos de ditadura e visando a uma concepção e práticas de saúde mais ampliadas que a concepção apenas biomédica. Ela honra sua origem quando passa para a sociedade brasileira um conhecimento complexo sobre a relação saúde & sociedade; saúde & estado; saúde & medicina; saúde & terapêuticas tradicionais. Mas é também importante quando participa do debate acadêmico e político sobre ciência & tecnologia no Brasil; sobre interfaces do conhecimento; sobre as políticas sociais e saúde; sobre sociedade civil e a construção de uma sociedade saudável. E isso a Abrasco faz por meio de suas diretorias e, sobretudo, por meio de suas comissões temáticas e grupos de trabalho.
 
IHU On-Line - Quando falamos de Saúde Coletiva, qual é o impacto da violência sobre a saúde?
Maria Cecília Minayo -
A violência, desde os anos 1970, vem sendo paulatinamente incluída na pauta do setor saúde, primeiramente por parte de algumas categorias médicas, sobretudo os pediatras quando tratam da violência na infância. Em seguida, houve a apropriação do tema pelas organizações internacionais como a OMS (Organização Mundial de Saúde) e a OPAS (Organização Pan America de Saúde). Em 1994, a OPAS publicou uma resolução sobre o assunto, definindo-o como tema próprio da agenda do setor. Em 1997, na Assembléia de Ministros do mundo inteiro, a OMS também assumiu essa pauta e, no ano 2000, colocou a violência como uma das cinco primeiras prioridades para atuação na Região das Américas. Em 2002, ainda a OMS publicou um documento muito importante denominado Violência e saúde, no qual não se deixam dúvidas sobre sua posição.

No caso brasileiro, desde 1998, o Ministério da Saúde se envolveu também com o tema, e em 2001 publicou uma portaria oficializando sua decisão de atuar por meio do documento
Política nacional de redução da morbimortalidade por acidentes e violências.

A ação do setor se deve ao fato das violências e acidentes constituírem, hoje, a segunda causa de mortalidade no país. E, na larga faixa de 5 a 49 anos, esses agravos constituem a primeira causa de óbito. Para que tenhamos uma dimensão desse fato, anualmente morrem mais de 100.000 pessoas por essas causas e na década de 1990 mais de um milhão de brasileiros foram fatalmente vitimizados por acidentes e violências. Esses dados estarrecem porque eles compreendem uma magnitude muito mais relevante que as perdas de vida em várias guerras do passado e do presente. Como a saúde trabalha com a promoção da vida, com a qualidade de vida, com os cuidados com a pessoa, a atenção e a prevenção da violência, fazem parte de sua agenda. De forma diferente do setor de segurança pública que busca o criminoso, o delinqüente, o infrator para puni-lo, o setor saúde busca a vítima para cuidar dela e para - do ponto de vista da promoção da saúde - trabalhar as relações que enredam vítimas e agressores nas ações contra a vida.

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