Edição 231 | 13 Agosto 2007

O conceito de sociedade civil como uma das maiores contribuições de Gramsci

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De acordo com o professor Lincoln Secco, do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), Gramsci deixou indicações preciosas sobre o papel dos aparatos de hegemonia na manutenção da dominação de classe. Entre essas indicações, ele destaca o “conceito de sociedade civil” que, no aspecto institucional, “diz respeito ao conjunto das instituições privadas de hegemonia, as quais difundem ou criticam a ideologia dominante: jornais, TVs, rádios, editoras, teatros, cinemas, escolas, igrejas, partidos, sindicatos”. Para Secco, “boa parte da esquerda compreendeu que a luta pelo socialismo passa primordialmente por estes meios, e não por um simples assalto militar ao poder”.



Secco
é graduado e mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor em História Econômica, pela mesma universidade, desde 2003, é professor do Departamento de História da USP. De sua produção bibliográfica, destacamos Um olhar que persiste: ensaios críticos sobre o capitalismo e o socialismo (São Paulo: Anita Garibaldi, 1997); Gramsci e o Brasil: recepção e difusão de suas idéias (São Paulo: Cortez, 2002); e Gramsci e a Revolução (São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2006). Confira, a seguir, a entrevista concedida por Secco, por e-mail, à IHU On-Line:

IHU On-Line - Quais são as maiores contribuições de Gramsci às esquerdas contemporâneas e, ainda, à ciência política?
Lincoln Secco
- Gramsci foi um pensador muito além de seu tempo. Seus conceitos são ainda operacionais para a realidade contemporânea. Ele era um pensador bastante sofisticado e deixou indicações preciosas sobre o papel dos aparatos de hegemonia na manutenção da dominação de classe. Eu destacaria o conceito de sociedade civil que, no aspecto institucional, diz respeito ao conjunto das instituições privadas de hegemonia, as quais difundem ou criticam a ideologia dominante: jornais, TVs, rádios, editoras, teatros, cinemas, escolas, igrejas, partidos, sindicatos. Boa parte da esquerda compreendeu que a luta pelo socialismo passa primordialmente por estes meios, e não por um simples assalto militar ao poder.

IHU On-Line - Pontualmente, quais traços gramscianos o senhor destacaria no Governo Federal atual?
Lincoln Secco -
Não creio que se possa identificar em qualquer governo traços gramscianos. Mas a novidade dos atuais governos de esquerda da América Latina é que, queiramos ou não, eles governam sem o apoio dos meios de comunicação de massas e sob um cerco implacável da opinião pública de classe média. Não entro no mérito do quanto eles são ou não radicais na prática, mas isso já é um fato inédito nos últimos 50 anos. No Brasil, tivemos uma experiência parecida com o segundo governo Vargas , que atuou sob o ataque de jornais e da TV (com destaque para Carlos Lacerda ). Mas a TV ainda engatinhava no Brasil e atingia pouca gente. Assim sendo, os atuais governos de esquerda, incluindo Lula, precisam disputar a opinião pública e não reduzir sua ação ao aparato do estado stricto sensu. Precisam atuar no “estado ampliado”, gramscianamente falando.

IHU On-Line - Como está hoje a situação da pesquisa acadêmica sobre Gramsci no Brasil?
Lincoln Secco -
O Brasil é um dos países onde há maior interesse por Gramsci. Seminários ocorrem anualmente em várias universidades do país, como na Unesp, por exemplo. Mas há iniciativas acadêmicas e não acadêmicas, em cidades como Juiz de Fora, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Marília. Também há várias dissertações e teses defendidas que tematizam Gramsci na Ciência Política, Pedagogia, Serviço Social e História. Mesmo alguns geógrafos têm se voltado para Gramsci, discutindo a questão regional à luz da questão meridional italiana ou da unificação da península itálica a partir da hegemonia territorial do Piemonte.

IHU On-Line - Que novas possibilidades e mudanças as idéias de Gramsci oferecem no cenário político atual? Poderia citar o exemplo de alguns países onde seu legado político filosófico influencia o fazer político?
Lincoln Secco -
Gramsci foi um homem derrotado, para usar uma expressão de Laurana Lajolo, sua biógrafa. Ele dirigiu seu partido por pouco tempo e logo foi preso. Sua influência mais direta se deu no Partido Comunista Italiano  do Pós-Segunda Guerra e, depois, nos partidos comunistas europeus e mesmo no Partido Comunista brasileiro dos anos 1970 e 1980. No PT, houve muito uso de conceitos gramscianos nos debates internos. Mas nenhum daqueles partidos chegou efetivamente ao poder, e quem chegou não quis ou não pôde gerar transformações radicais mesmo dentro da ordem. Mas não creio que a vitalidade de Gramsci se possa medir por seu sucesso político direto. Ele já se tornou um clássico (como Marx ) e assim deve ser lido, sem nenhuma proibição àqueles que ainda querem nele se inspirar para elaborar programas de partidos.

IHU On-Line - É possível estabelecer uma comunicação virtuosa entre liberais e socialistas?  Como isso seria possível?
Lincoln Secco -
Norberto Bobbio  responderia sim, e com ele toda uma tradição social liberal italiana muito importante. Na verdade, o liberalismo e o socialismo são filhos de uma mesma época: aquela aberta pela Revolução Francesa. Ambos são iluministas e acreditam em valores universais, como Estado nacional, classe social, igualdade, liberdade. E ambos estão sendo ameaçados ou desafiados pelo surgimento de ideologias pós-modernas e por lutas que defendem o direito à diferença e não à igualdade. Liberais e comunistas também tiveram uma luta em comum contra o fascismo, por mais que historiadores liberais hoje queiram aproximar o comunismo e o fascismo. Isso é a negação dos fatos históricos. Em termos políticos, também creio que socialistas e liberais autênticos possam se identificar na defesa da democracia. No entanto, tudo isso eu respondo em termos genéricos, não fazendo referência a qualquer país em particular. No Brasil, onde o liberalismo nunca foi efetivo e muitas vezes foi a capa ideológica mal feita do privilégio de classe e mesmo da escravidão, seria preciso discutir isso com mais profundidade.

IHU On-Line - Poderia explicar por que Gramsci amplia a concepção de Estado de Marx? Como essa concepção de Estado ampliado pode auxiliar a criar uma cultura da classe trabalhadora?
Lincoln Secco -
Sinceramente, eu não me lembro de ter lido a expressão “estado ampliado” no próprio Gramsci. Mas ela foi difundida e, certamente, expressa sua concepção de Estado como algo que vai além do tradicional aparelho coercitivo que é o Estado stricto sensu. O Estado em Marx era um mero comitê para gerenciar os negócios da burguesia, embora ele tenha deixado as bases teóricas da superação dessa concepção. Em Gramsci, há uma compreensão do Estado que emerge com a modernidade: ele não se reduz imediatamente a uma classe, pois guarda uma distância estrutural da camada dominante. O Estado é uma relação social mediada pela forma aparente dos aparelhos políticos de governo e repressão. Nós acreditamos ver nisto o Estado, mas ele é mais do que isso e perpassa toda uma rede de relações sociais que ajudam muito mais a reproduzir as condições que sustentam a sociedade burguesa. Isso é importante para os dirigentes da classe trabalhadora, pois eles compreendem, a partir daí, que não basta formar sindicatos e partidos operários. Também é preciso forjar uma nova cultura alternativa e, às vezes, oposta à dominante, embora se alimentando de tudo o que a humanidade produziu antes.

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