Edição 230 | 06 Agosto 2007

Deus é pai ou mãe? Uma reflexão

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IHU Online

O uso da metáfora “pai” foi assumido pela Igreja e pela teologia como uma “centralidade dogmática e litúrgica, com a qual pessoas cristãs se identificavam”, afirma o teólogo André Musskopf, em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Ele destaca que os conceitos de pai e mãe assumem características particulares, dependendo de como ambos são construídos histórica, social e culturalmente. E acentua que seria muito mais prudente “a possibilidade de evocar as diversas formas em que Deus se revela na vida das pessoas, valorizando como elas apreendem esta revelação e fazem sentido dela na linguagem”.



Musskopf é pesquisador na área de Teologias GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros), Teoria Queer e Estudos de Gênero e Masculinidade. Graduado em Teologia, pela EST, é mestre em Teologia, também pela EST, com dissertação intitulada Ministérios Ordenados e Teologia Gay - Retrospectiva e Prospectiva, sobre a ordenação de pessoas homossexuais, e doutorando em Teologia na EST. É autor de Uma brecha no armário - propostas para uma teologia gay (São Leopoldo: Sinodal, 2002) e organizador, juntamente com Marga J. Ströher e Wanda Deifelt, do livro A flor da pele - Ensaios sobre gênero e corporeidade (São Leopoldo: Sinodal, EST, CEBI, 2004). A IHU On-Line realizou uma entrevista com Musskopf sob o título Identidade masculina e corporeidade, publicada na 114ª edição, de 6-09- 2004, e outra entrevista na edição número 121, de 1º-11-2004, sobre o tema À meia luz: a emergência de uma Teologia Gay – seus dilemas e possibilidades, apresentado por Musskopf no IHU Idéias de 4-11-2004. O texto está publicado nos Cadernos IHU Idéias número 32, disponível para download no site do IHU (www.unisinos.br/ihu). Suas contribuições mais recentes para a IHU On-Line foram na edição 210, de 05-03-2007, com o artigo Crises nas relações de gênero: a busca por uma outra sociedade, e na edição 227, de 09-07-2007, com o título Frida Kahlo - 1907. Um olhar de teólogas e teólogos. A entrevista com Musskopf, intitulada Transgressão, implosão, mistura, desconstrução e reconstrução, pode ser conferida no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu).

 

IHU On-Line – Por que Deus é Pai e não Mãe?
André Musskopf -
Em princípio, Deus é Pai e é Mãe, é uma rocha, um vento, uma montanha, uma galinha, uma mulher em dores de parto – todas imagens bíblicas – ou nenhuma dessas coisas. O falar de Deus é sempre um falar por metáforas, por imagens, tanto que o termo hebraico para Deus (YHWEH) é impronunciável. Falar sobre estas metáforas, sobre estas imagens, do ponto de vista da Teologia, significa falar não apenas de projeções humanas acerca da realidade divina, mas também sobre a forma como Deus se revela aos seres humanos e como estes, em sua fé, apreendem e dão testemunho desta revelação.

Especificamente na tradição cristã, a metáfora “pai” assumiu um significado preponderante sobre todas as outras estando fortemente ligado com o fato de Jesus se referir a Deus como “Pai”. É a este pai que Jesus ora em seu desespero no Getsêmani, antes de ser preso, torturado e assassinado: “Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este cálice” (Marcos 14.36). É assim que também se constituirá em parte imprescindível do dogma trinitário: Pai, Filho e Espírito Santo. Ou seja, o uso desta imagem foi assumindo, ao longo da história da Igreja e da teologia, uma centralidade dogmática e litúrgica com a qual pessoas cristãs se identificam, e para além da qual muitas não conseguem imaginar ou falar sobre/com Deus.

A Teologia Feminista, desde seus inícios, questionou a unilateralidade e exclusividade desta metáfora (veja-se um dos primeiros livros de Mary Daly, Beyond God the Father). A crítica está justamente na masculinidade desta metáfora e sua relação com a condição da mulher na igreja e na sociedade. Assim, uma das reivindicações do movimento feminista na Teologia e na Igreja foi a possibilidade de falar sobre Deus como “mãe”, sendo esta metáfora incluída em muitas formas litúrgicas já bastante comuns em muitas igrejas e comunidades que invocam, em orações, em confissões, a “Deus que é Pai e Mãe”, apesar da resistência de muitos teólogos e pessoas leigas em geral.

IHU On-Line – Quais são as implicações teológicas, culturais e sociais de um Deus Pai, de uma teologia patriarcal?
André Musskopf -
Muitos/as teólogos/as e teóricos/as têm se ocupado com a origem, o desenvolvimento e o papel da metáfora “pai” na teologia e na vida da igreja cristã ao longo dos séculos. Por isso, pensar nas suas implicações sempre depende da abordagem que se utiliza. No campo da psicanálise, por exemplo, Freud se ocupou longamente com o papel do Pai na constituição das subjetividades, e Jung  inclusive discutiu de que forma Maria, possivelmente um “quarto elemento” da Trindade, foi expulsa, expulsando-se assim o princípio feminino (teólogas feministas têm resgatado o Espírito - ruah, como a Sabedoria/Sofia feminina na economia trinitária).

 

Do ponto de vista da Teologia, e mais especificamente da Teologia Feminista e das Teorias de Gênero aplicadas à Teologia, inúmeras teólogas mostraram de que forma a centralidade desta metáfora está intimamente ligada com o desenvolvimento de uma estrutura eclesiástica centrada no homem, neste caso no pater famílias, seguindo, desta forma a estrutura social, política e econômica do oikos (casa) greco-romano dos primeiros séculos da Era Cristã. Elizabeth Schüssler Fiorenza (As origens cristãs a partir da mulher) e Marga Ströher (A igreja na casa dela) mostram de que forma o movimento cristão nos primeiros séculos foi, gradualmente, se adequando ao modelo patriarcal como uma estratégia de sobrevivência, transformando a Igreja na “casa patriarcal de Deus”, o que também significou o papel preponderante do homem na direção da igreja e a instituição dos ministérios sacerdotais masculinos (trabalhei este tema em Talar Rosa – Homossexuais e o ministério na Igreja).

 

As conseqüências deste processo são evidentes: diante de uma estrutura social e eclesiástica dominada por homens e sancionada por uma divindade masculina que assume a feição de um pater famílias, as mulheres estão excluídas de qualquer instância de poder e decisão, relegadas ao mundo privado, à dependência e submissão ao homem. Também em termos ecológicos, isto representou uma relação com o mundo natural que levou à degradação do meio ambiente, uma vez que a natureza, associada à mulher e considerada como elemento passivo a ser dominado, foi sistematicamente abusado ao longo da história gerando a crise ecológica que agora vivemos (tema central do Ecofeminismo de Ivone Gebara  e outras, e também de Leonardo Boff  na atualidade – em A voz do arco-íris e outras obras). Os estudos sobre masculinidade também têm mostrado de que forma este sistema desumaniza os homens, em termos sociais, culturais, econômicos e políticos, mas também em sua espiritualidade e na sua relação com a divindade. Howard Eilberg-Schwartz (O falo de Deus), por exemplo, discute, no âmbito do judaísmo, quais as implicações para os homens de lidarem com uma divindade masculina que os “emascula”, e James Nelson (The intimate connection – Male sexuality, masculine spirituality) mostra de que forma a espiritualidade masculina é afetada pela forma como se constrói a identidade dos homens na relação com um Deus masculino (e Pai).

IHU On-Line – Na atualidade, considerando a estrutura das famílias atuais, a imagem de Deus ainda pode ser definida como a imagem de um pai? O pai ainda tem importância, tem papel fundamental? 
André Musskopf -
A problemática em torno da imagem de “Deus Pai” está justamente na forma (e na suposta exclusividade) pela qual se compreende esta categoria. “Pai”, assim como “mãe”, não são conceitos trans-históricos fixos e experimentados por todas as pessoas da mesma forma - embora os louvores a uma determinada imagem essencializada de maternidade e paternidade a que se faz referência no dia das mães e dos pais nos queiram fazer crer o contrário. Estes termos, ou conceitos, assumem características particulares dependendo de como as experiências a que se referem são construídas histórica, social e culturalmente. Desta forma, a crítica feita à tradicional metáfora do “Deus Pai” está em como se compreende a imagem do pai e qual seu significado para a espiritualidade das pessoas e sua relação umas com as outras.

Teólogas como Elizabeth Schüssler Fiorenza tem procurado mostrar como Jesus Cristo e o movimento cristão primitivo romperam com a estrutura familiar patriarcal em que o pater famílias tem poder absoluto sobre as outras pessoas da família. É neste sentido que se vê em Jesus a ausência da figura paterna ao referir-se à sua família: “correndo o olhar pelos que estavam assentados ao redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Portanto, qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Marcos 3.34-35). O “Pai” não está presente nesta rede de relações que constitui a nova comunidade. Argumenta-se, então, que para Jesus há um único Pai, aquele que está nos céus, e que a metáfora e a estrutura fica mantida. No entanto, se no nível das relações cristãs abole-se o “pai terrestre”, abole-se também a estrutura que a eles relega um determinado papel – neste caso o do pater famílias.

Assim, falar de Deus como Pai não é necessário nem imprescindível, embora possível. As perguntas que se colocam são: para quem esta metáfora funciona? Para que serve social e politicamente? Quem decide, escolhe e sanciona as formas “ortodoxas” de falar de Deus? Sem dúvida, as estruturas familiares se modificaram ao longo da história e, quiçá, desde o último século de maneira mais drástica do que em qualquer outro período histórico (e as causas são múltiplas e interconexas – o papel dos movimentos identitários feminista, gay, negro; as mudanças no sistema de produção e consumo, na estruturação política das sociedades etc.). Isto implica re-avaliar as relações, bem como as metáforas usadas para falar da divindade fundamentadas nestas relações. Exercício que vem sendo realizado por muitas teólogas e teólogos.

IHU On-Line – O pai ainda passa a imagem de forte, de protetor, ou isso é ultrapassado? Em que a Teologia ajuda a compreender este fenômeno?
André Musskopf -
As características comumente associadas à figura do pai e imputadas correlativamente a Deus (como forte, protetor, provedor, impassível, juiz etc.) nunca definiram a experiência real e concreta da maioria deles. Elas foram construídas como um ideal a ser atingido e perseguido insistentemente por toda a vida. Não atingi-las era e, em grande parte, ainda é sinônimo de fracasso e origem de tensão e estresse para muitos homens. Com o desenvolvimento de novas propostas e concepções de masculinidade, também este ideal passa a ser questionado e colocado no contexto da vida material dos homens. Um “deus” que tudo sabe, tudo pode e que está em todo o lugar deixa de ser o ideal masculino e reclama uma teologia que também entenda “Deus” de outra maneira, ou alargue a sua compreensão para incluir outras características – como proximidade, solidariedade, intimidade, relacionalidade. Esta mudança não ocorre de maneira simétrica, linear e constante, ou sem resistências, mas no movimento da vida que reclama outras formas de relacionamento. Assim, diferentes compreensões e experiências concretas de “pais” coexistem e precisam sempre ser analisadas, compreendidas e avaliadas em seu contexto.

O fato é que os dois movimentos estão intimamente ligados: não se trata de reconceitualizar Deus (ou de expandir o universo conceitual sobre a divindade) ou reconceitualizar a experiência masculina da paternidade isoladamente e no vácuo. As metáforas e as experiências são construídas, vividas e passam a fazer sentido na medida em que se relacionam e retroalimentam. Só posso falar num “novo Deus Pai” se conheço “novos pais” – novos modelos de paternidade – que rompam com o conceito patriarcal do pater famílias. Neste sentido, a imagem de Deus Pai, na sua relação com a paternidade humana, tem o poder de construir, promover e sancionar formas de paternidade humanizantes, na medida em que se relacionem com experiências concretas deste tipo – e vice-versa. É desta forma que a teologia pode participar de um movimento por novas relações, entre pais e mães, pais e filhos e filhas, e pais e pais dentro deste contexto, sem necessariamente negar formas históricas de se referir e relacionar com a divindade.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário?
André Musskopf -
Eu posso entender a dificuldade e o dano provocado a uma mulher como a experiência de semanalmente ser exposta a uma linguagem litúrgica que presentifica e sacraliza a imagem do “pai” quando esta mesma mulher foi exposta à violência doméstica pelo seu pai ou pelo pai de seus filhos, seu marido. Uma teologia patriarcal tem negado a experiência concreta desta mulher – e de muitas outras, e também de homens que sofrem violência doméstica – ao exigirem a exclusividade de um metáfora, não sem um apelo masoquista para que a mulher (acompanhada pelos homens) projete neste “deus pai” um “pai” que ela não conheceu, definindo, desse modo, Deus por uma via negativa. Muito mais saudável e producente seria a possibilidade de evocar as diversas formas em que Deus se revela na vida das pessoas, valorizando como elas apreendem esta revelação e fazem sentido dela na linguagem. A riqueza da experiência teológica e espiritual está em perceber a ação de Deus no movimento da vida e colocá-la em diálogo com outras formas de expressar esta experiência. E aí as possibilidades são infinitas – inclusive de falar num Deus que é Pai.

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