Edição 230 | 06 Agosto 2007

“O pai não está desaparecendo: o que temos é uma transformação de papéis”

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IHU Online

Para a pesquisadora Miriam Pillar Grossi, o conceito de parentalidade quebra o paradigma de que apenas homem é pai e mulher é mãe. Segundo ela, essas funções podem ser realizadas por pessoas que estão desenvolvendo o papel de cuidar uma criança, independentemente do sexo. Nas famílias recompostas, explica a professora, é possível observar como o parentesco é “uma construção social”. Grossi destaca que, “mesmo que as pessoas não tenham vínculo biológico com as crianças, elas cuidam delas como se fossem seus filhos”.

Miriam Pillar Grossi é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre e doutora em Antropologia Social e Cultura pela Universidade Paris V, René Descartes, onde escreveu a dissertação La violence contre las femmes dans le mariage au Brèsil - Crêpes, fars et galettes: une approche de la cusine bretonne e a tese Representations sur les femmes battues - la violence contre les femmes au Rio Grande do Sul. É pós-doutora em Antropologia Social pelo Collège de France. Atualmente, leciona na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no departamento de Antropologia, onde coordena o Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS). Escreveu dezenas de artigos acadêmicos, capítulos de livros e organizou inúmeras obras, dentre os quais destacamos: Masculino, feminino, plural (Florianópolis: Editora Mulheres, 1998); Gênero e violência: pesquisas acadêmicas brasileiras (Florianópolis: Editora Mulheres, 2006); Depoimentos: trinta anos de pesquisas feministas brasileiras sobre violências (Florianópolis: Mulheres, 2006); e Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis (Rio de Janeiro: Garamond, 2007).

A entrevista, concedida por telefone à IHU On-Line, pode ser conferida a seguir.

IHU On-Line - Por que, ao longo dos anos o conceito de paternidade passou a ser repensado e abordado como parentalidade?
Miriam Pillar Grossi –
O conceito de paternidade está bastante vinculado ao pai, isto é, a um poder e a um lugar social centrado no que se considera na sociedade ocidental como pai. Nestas sociedades, o conceito de pai corresponde a um indivíduo do sexo masculino. O conceito de parentalidade amplia não só essa noção de paternidade, mas também as funções, até então exercidas pelo homem, para mais de uma pessoa.

Na idéia de paternidade tradicional, existiam duas funções que se complementavam e que nunca eram feitas pela mesma pessoa, ou seja, a função de cuidar era exercida pela mãe e a de prover e ensinar a lei era exercida pelo pai. O conceito de parentalidade veio contribuir para entender o momento atual, onde essas funções deixaram de estar associadas à idéia de que só o homem é pai e apenas a mulher pode ser mãe.

IHU On-Line - Na sociedade contemporânea, as famílias estão sendo compostas por grupos familiares de diferentes uniões dos pais. Como fica o papel do pai da atualidade? 
Miriam Pillar Grossi –
Nessa discussão sobre o papel do pai, é preciso pensar o pai com a mãe e qual é a relação familiar que se constitui a partir desta relação entre dois indivíduos. Quando se pensa o que mudou na figura do pai, há uma visão conservadora afirmando que o pai mudou. No entanto, ao longo das últimas décadas, ocorreram mudanças no exercício da função paterna e da função materna. Ambas passaram a ser exercidas por homens e mulheres. É verdade que, num primeiro momento do movimento feminista, são as mulheres que adentram esse mundo considerado masculino, da paternidade, passando a cumprir também o papel de provedoras do lar. Entretanto, num segundo momento, passamos a observar esse movimento de transformações da paternidade através da entrada dos homens no terreno que era considerado das mulheres, da maternidade, ou seja, ficar em casa, cuidar dos filhos, trocar fraldas, cozinhar etc.

Então, quando se fala que ocorreu uma mudança na paternidade, precisamos pensar que existem mudanças tanto na paternidade quanto na maternidade, e é justamente para incluir estas mudanças que se forjou esse novo conceito, de “parentalidade”. Esta abarca todas as multiplicidades das novas formas de ser pai e mãe, que nem sempre dizem respeito apenas a pais biológicos. Nas famílias recompostas, é possível observar como o parentesco é uma construção social. Mesmo que as pessoas não tenham vínculo biológico com as crianças, elas cuidam delas como se fossem seus filhos, ou seja, o que prevalece é o vinculo afetivo com a criança e não seu DNA.

IHU On-Line - É comum que muitas mães desenvolvam atividades e responsabilidades de pai e mãe na criação dos filhos. Ainda há responsabilidade de pai e responsabilidade de mãe?
Miriam Pillar Grossi –
Responsabilidade de pai e responsabilidade de mãe, com funções divididas, não existe mais como um modelo único. Nós não podemos mais pensar numa visão dicotômica. Esse era o modelo vitoriano de família, que veio do século XIX, e que vai se reproduzir num modelo de família burguesa, urbana e contemporânea, no Brasil do século XX. O que temos que ter presente é a questão: quais são as necessidades que uma criança tem em relação a sua sobrevivência material, humana e social?

Este ideal dicotômico da família, do homem provedor, da mãe doméstica cuidando dos filhos, nunca existiu, mas nos foi apresentado como um modelo ideológico, ou seja, como ideal de família. O que temos, hoje, são homens e mulheres desempenhando diferentes papéis, independentemente do seu sexo, desmanchando, portanto, na prática os modelos dicotômicos de papéis associados ao masculino e feminino.

IHU On-Line - É possível pensar numa sociedade sem pai?
Miriam Pillar Grossi –
Esta é uma longa discussão e reflexão no campo da Antropologia que tem estudado há mais de um século diferentes sociedades do planeta. O que posso afirmar é que na nossa sociedade o pai não está desaparecendo. O que temos é uma transformação de papéis que antes eram ditos de pai e de mãe. Mas não existe uma sociedade que possa viver sem esses papéis serem reatualizados permanentemente. É evidente que o pai, enquanto indivíduo que cumpre uma função social na constituição de um grupo social, a família, não vai acabar. É claro, também, que aquele modelo de pai tradicional, autoritário, que proíbe a mulher de trabalhar, já acabou. Ele não existe mais enquanto modelo valorizado socialmente. O que temos hoje são novas formas de paternidade que estão sendo exercidas pelos homens contemporâneos.

IHU On-Line – Então, muitas crianças convivem com famílias recompostas, na qual diferentes indivíduos cumprem o papel de pai ou mãe, independentemente do vínculo biológico. Essa convivência, sem a referência paterna do homem pode originar uma futura geração sem valores alusivos de paternidade?
Miriam Pillar Grossi –
É importante que as crianças tenham pessoas adultas que as queiram bem. Essa idéia de que a falta de pai seja a razão da “perda de valores” é equivocada. Na verdade, mesmo em famílias onde há um pai, socialmente reconhecido como tal, outras pessoas também cumprem papéis paternos, como, por exemplo, atualmente é o caso dos avós. Observamos que em famílias onde não há este pai, as crianças não ficam “desorientadas” pois têm múltiplas pessoas cumprindo esse papel para elas. A sociedade é mutável e está, constantemente, em mudança. Enquanto antropóloga, eu parto do pressuposto de que as mudanças são graduais e, portanto, não há “crise de valores”, uma vez que estes valores estão em permanente mudança.

A sociedade ocidental pensa a família como um grupo constituído de pai, mãe, filhos, primos, avós, ligado a um modelo em que a questão biológica é o ponto central, ou seja, somos convictos que o que nos une a nossa família são os laços biológicos. Em outras culturas, esses agrupamentos familiares se organizam diferentemente, e o biológico não é muitas vezes determinante na configuração de quem é pai ou mãe. Em algumas sociedades, por exemplo, são os tios maternos e  os homens que cumprem a função paterna.

IHU On-Line - Num dos seus trabalhos, a senhora faz referência à Suzana Funck, que propõe, em suas obras literárias, novos modelos de paternidade. Suzana escreve que a parentalidade deveria ser obrigatoriamente composta por um trio (dois homens e uma mulher ou duas mulheres e um homem). Essa utopia está de certa maneira fazendo parte da realidade das famílias brasileiras?
Miriam Pillar Grossi –
Lembremos que o trabalho de Susana Funck, que admiro muito, é sobre as utopias literárias em torno da maternidade e da paternidade. Ela não está falando de casos concretos, mas sim de personagens da literatura de língua inglesa. O que tenho observado nas pesquisas que fazemos sobre famílias no Brasil é que as crianças têm, atualmente, vários pais e mães. Se conversarmos com filhos de pais separados, por exemplo, eles vêem as mudanças familiares com bastante naturalidade. As crianças são capazes de incluir, na sua rede de parentesco, vários indivíduos adultos que cumpriram, ao longo da vida delas, essas funções paternas e maternas, seja porque são os pais e as mães biológicos, seja porque são os pais e as mães sociais. Então, na prática, ter dois pais e duas mães é uma coisa bastante comum. Claro que não dessa forma como muitos romances utópicos colocam, ou seja, todos na mesma casa, vivendo relações triangulares e criando crianças a partir destas relações. Na maior parte dos casos, estas crianças têm vários pais e mães que se sucedem em sua vida, mas elas vão considerando-os todos como parte de sua rede familiar e os denominam como pais ou mães (incluindo nesta nominação padrastos e madrastas, termos aliás já bem em desuso nas famílias recompostas brasileiras contemporâneas).  De toda forma, o modelo de família que prevalece é o do casal binário.

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