Edição 228 | 16 Julho 2007

A marca de uma aura filosófica e da vocação para o abismo

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

Graduada em Português-Literaturas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lucia Helena concluiu o doutorado em Letras (Ciência da Literatura), também por esta instituição, em 1983. Atualmente, é professora titular da Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui 15 livros publicados, entre os quais Nem musa, nem medusa: itinerários da escrita em Clarice Lispector (2. ed. Niterói: EdUFF, 2006). Atua na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária.

Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Lucia Helena afirma que “o texto de Clarice Lispector costuma apresentar ilusória facilidade. Mas não se engane o leitor. Em poucas linhas, será posto em contato com um mundo em que o insólito acontece e invade o cotidiano, minando e corroendo a repetição monótona do universo de homens e mulheres, quase sempre de classe média, ou mesmo o de seres considerados marginais”.

IHU On-Line - O que Clarice Lispector acrescentou de novo ao romance brasileiro, já que na época em que começou a lançar seus livros predominava mais um romance regionalista de tradição nordestina (como o de José Lins do Rego, Jorge Amado etc.). Ela se associa dentro de alguma tradição nova?
Lucia Helena -
Clarice Lispector oferece ao romance brasileiro uma estratégia narrativa na qual sua ficção, como se fosse o Francis Ponge  de João Cabral de Melo Neto , no poema “O sim contra o sim”, de Serial, apresenta, por seus torneios de linguagem e modo específico de narrar, alguns temas e personagens que parecem por vezes saltar “por descuidada fresta”. Ela urde uma ficção singular, que trabalha aludindo a problemas complexos como a angústia, o nada, o fracasso, a linguagem, alguns deles ignorados ou deixados em segundo plano pela filosofia tradicional, como já observou, e muito bem, um de seus melhores críticos, Benedito Nunes . Creio que Clarice se associa a uma tradição nova, no sentido de que retrabalha veios realistas e românticos, sem ser uma vanguardista, criando uma ficção em que, segundo ela mesma, a realidade é adivinhada. A arquitetura da obra de Lispector se faz na confluência de dois paradigmas estilísticos, que a narradora entretece e põe em tensão: a cena do Realismo/Naturalismo e a do Romantismo/Simbolismo. Isso significa que em sua narrativa encontram-se veios recessivos que, transformados por sua perspectiva estilística pessoal, criam um entrelaçamento significativo entre a realidade empírica e a realidade adivinhada. Aproximando-se de uma tendência freqüente em autoras como Virginia Woolf  e Katherine Mansfield , Lispector utiliza-se do fluxo-da-consciência para manifestar os estados pré-lógicos de suas personagens, temperando essa característica com um sabor machadiano pelo detalhe, ironicamente bem posto, e com laivos naturalistas de captação de personagens e temas a gosto de um Nelson Rodrigues  ou Dalton Trevisan , como se pode ver em A via crucis do corpo. Mas, como em Machado, esse realismo e esse naturalismo são habilmente corroídos. Nem Machado nem Lispector inscrevem seus narradores em escolas, tendo em vista que escapam aos rígidos cânones de classificação.

Alegorizações e núcleos cintilantes

Abandonando a idéia de tese presente nos textos naturalistas, bem como o exame de uma consciência individual a ser realisticamente desvendada, Lispector opera com alegorizações, com núcleos cintilantes (as cenas fulgor a que se refere Maria Gabriela Llansol , em Um falcão no punho), estabelecendo errâncias e correspondências, por vezes alucinando a cena narrativa ou, por outras, simulando um compromisso ora com o Naturalismo (A via crucis do corpo), ora com o melodramático (A hora da estrela). Assim, sua poética como que desenha uma organização textual sui generis, na qual três obras se destacam, por permitirem perceber a tensão no traçado do conjunto: Laços de família (na contracena com A via crucis do corpo, mais próximo de um Naturalismo revisitado com rara sabedoria), Água viva (na qual a desagregação das categorias convencionais de tempo, espaço, trama e personagem chega a um limite extremo) e A hora da estrela (que representa uma espécie de ponto ótimo de enlace das tendências paradigmáticas já referidas).

IHU On-Line - Antonio Candido escreveu que Perto do coração selvagem mostra que “a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente”. Isso pode ser dito de toda a obra de Clarice?
Lucia Helena -
Antonio Candido  tem razão. A “aventura do espírito” é fundamental na obra de Lispector, que lança mão de questões como a simplicidade, o não-saber, a carência como passagem-limite para o sublime (lembro-me de Macabéa, em A hora da estrela, e de Pequena Flor, em “A menor mulher do mundo”, de Laços de família), e demora atenta no que está a contrapelo - no lado melancólico e rejeitado da história humana, da qual ela focaliza o lado trágico, captando a face contorcida da história dos vencidos (e de novo podemos lembrar de Macabéa) - e o ilumina fora da pauta de uma literatura meramente naturalista ou realista. De certa maneira, a afirmativa é válida para toda a obra de Lispector, na qual a investigação do “estranho”, do insólito, se faz pano-de-fundo para o exame por vezes lírico e comovente da dor de viver.

IHU On-Line - Clarice nasceu na Ucrânia, e depois morou em Maceió, em Recife e, finalmente, no Rio de Janeiro, onde passou a maior parte de sua vida. Em determinado momento, ela se casou com um diplomata e morou na Itália, Suíça, Inglaterra e nos Estados Unidos. Alguns afirmam que essa trajetória nômade se refletiu na maneira como Clarice lida com o “estranhamento da língua”. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, Clarice muitas vezes foca personagens estáticos. É possível ver isso em seus livros?
Lucia Helena -
Lispector trabalha com unidades textuais móveis, que reaparecem em formas narrativas diferentes, migrando da crônica ao conto, do conto ao romance. Essa é uma mobilidade interessante, pois confere ao seu trabalho narrativo um caráter de texto em expansão no qual o vocabulário aparentemente simples se complexifica por estratégias de repetição, oposição e espraiamento. O texto de Clarice Lispector costuma, portanto, apresentar ilusória facilidade. Seu vocabulário é simples, as imagens se voltam para animais e plantas, quando não para objetos domésticos e situações da vida diária, com freqüência numa voltagem de intenso lirismo. Mas não se engane o leitor. Em poucas linhas, será posto em contato com um mundo em que o insólito acontece e invade o cotidiano, minando e corroendo a repetição monótona do universo de homens e mulheres, quase sempre de classe média, ou mesmo o de seres considerados marginais. Em outros momentos, um pequeno detalhe do cotidiano, algo que normalmente não despertaria sequer atenção, surge como deflagrador do entrechoque de mundos e de fronteiras que se tornam fluidas. Uma galinha no domingo de uma família com fome, ou umas corriqueiras pêras postas na fruteira, podem vir a ser elementos responsáveis pelo desencadear de um inusitado fluxo e encontro entre os personagens de Clarice Lispector e algo que se poderia definir como confluência das vozes incongruentes de um inconsciente individual e do imaginário cultural, tudo se passando num ambiente falsamente estável, em que vidas aparentemente sólidas se desestabilizam de súbito, justo quando o cotidiano das personagens parecia estar sendo marcado pela ameaça de nada acontecer.

IHU On-Line - O que caracteriza as mudanças das personagens de Clarice? Como se dá a relação entre o universo íntimo das personagens com o cotidiano e o que faz com que eles sejam colocados em movimento?
Lucia Helena -
Creio haver um pendor de machadiana obliqüidade na maneira como Clarice escolhe e registra os laços que acolhem e acossam seus personagens. Com a sutileza que não quer nem simplesmente opinar, nem julgar, mas, principalmente, impedir que se percebam apenas as simetrias entre a arte e a realidade, ou que se tente fazer da arte um espelho reflexo do social colhido mecanicamente, seu texto conduz o leitor a procurar, nas zonas de conflito, os ardis e alertas da narrativa. Perpassa os textos de Lispector uma aura de filosofia, pela constante alusão ao imaginário religioso e metafísico judaico-cristão, no qual ela adensa questões candentes como a culpa original, a náusea, a origem da vida e da criação e a pergunta pelo sentido da existência. No entanto, longe de estabelecerem doutrinas, seus livros inserem essas questões no cotidiano de seres geralmente perdidos nas próprias indagações, para os quais o ludismo de linguagem do narrador funciona não só como forma intensa de penetração no mundo do inconsciente, mas também como forma de refletir sobre a dissociação do ego e a fragmentação do self de muitas de suas personagens. Para nos desvendar o mundo de suas personagens, além desse ludismo com a linguagem e do projeto de reflexão, o programa literário da autora lida com o subterrâneo da linguagem, promovendo o diálogo entre o material reprimido que obscurece o mundo dos personagens e os papéis sociais, em geral restritos, que lhes foram dados a viver. O elemento que dinamiza os personagens é exatamente essa “qualidade” transitiva dos textos da autora: nada é estável, nada se interrompe. Um fluxo semelhante ao escoar incessante do desejo mobiliza, sutilmente, a paixão, a dor, o abjeto, o sublime, forças incontinentes que habitam o sentimento por vezes muito reprimido que se oculta em personagens aparentemente comuns: empregadas domésticas, mulheres de classe média, seres à margem, como prostitutas e travestis.

IHU On-Line - Como se dá o processo de linguagem em Clarice? Ele exprime um sujeito existencial?
Lucia Helena -
Para avaliar as linhas mestras desse modo de narrar que se articula à experiência de desgaste dos limites, parto do pressuposto de que duas perguntas - “por que narrar?” e “como narrar?” - tornaram-se, progressiva e verticalmente, o tema central de textos que pouco a pouco solapam o sistema narrativo de tradição figurativa, ainda vigente em Laços de família e A via crucis do corpo. Essas obras, que adotam técnicas introspectivas de narrar, como o fluxo-da-consciência, ainda se baseavam no desenvolvimento de um tema e não chegavam a diluir radicalmente as categorias romanescas de personagem, enredo, tempo e espaço, como ocorre em Água viva, texto que se despoja dos preceitos consagrados na fórmula horaciana do “ut pictura, poiesis”, na qual se reserva ao literário a função de esboçar, como na pintura, um quase retrato do mundo.

IHU On-Line - Por meio do desenho de um microcosmo, em que se destacam epifanias e viagens interiores, os livros de Clarice desenham qual universo? É possível perceber neles um olhar alegórico?
Lucia Helena -
Considero que, na escrita de Lispector, na qual se manifesta uma alegórica vocação para o abismo, como um mal que estende seus tentáculos de contágio, nenhuma baliza permanece em segurança. A lógica da composição da autora - que se baseia no cruzamento, na repetição e no abalo das linhas demarcadoras, gerando alterações diferenciais dos núcleos semânticos de que parte - sugere um sistema elástico de orientação circular. Há uma fascinante experiência do limite nas narrativas de Clarice Lispector. Matéria da escrita, o nada abre e fecha a ambição de totalidade que pulsa em seus textos e, a partir de suas investidas, a alma e as vísceras, o escuro e a incandescência, o vazio e o pleno se fundem e confundem.
 
IHU On-Line - Em seus livros, Clarice Lispector lida apenas com um tempo interior (dos personagens) ou ela também desenha um retrato de transformações características da modernidade, entre as quais se inclui o isolamento do sujeito?
Lucia Helena -
No tratamento do tempo, também repercute o curto-circuito dos limites. A tendência é de submeter a temporalidade cada vez mais à dimensão de um agora, de modo que ela se configure como um mergulho em direção à instância interior na qual tudo se apresenta simultâneo e convulso: é a dimensão do “instante-já”, em que se realizam alguns dos principais textos longos da autora. Como se fosse o estilhaçamento de um presente em rotação perpétua, é na esfera de transformações temporais fascinantes que se conjuga o mundo de avidez e confinamento dos personagens. Uma estratégia astuciosa das narrativas é desequilibrar os dualismos com os quais o senso comum biparte e categoriza a vida. Nada, em nenhuma direção, no tempo ou no espaço, permanece intacto no mundo agônico que seus textos desenham. 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição