Edição 228 | 16 Julho 2007

“Ninguém lê Clarice sem ser devastado pelo que lê”

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IHU Online

José Castello, nascido em 1951, no Rio de Janeiro, é um dos mais prolíficos críticos literários do Brasil hoje. Colabora regularmente com O Globo, Valor Econômico e Rascunho, entre outras publicações.

Depois de 20 anos trabalhando com jornalismo literário, Castello escreveu o livro Inventário das sombras (Rio de Janeiro: Record, 1997), no qual conta os detalhes dos encontros que teve com escritores como Clarice Lispector, Ana Cristina Cesar, Nelson Rodrigues, Manoel de Barros e José Saramago, com o jornalista João Rath e com o artista plástico Arthur Bispo do Rosário. É também autor de perfis e biografias, como Vinicius de Moraes: o poeta da paixão (São Paulo: Companhia das Letras, 1993); Pelé – Os dez corações do rei (Rio de Janeiro: Ediouro, 2004); e João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma & Diário de tudo (2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006). Castello acredita, como Clarice Lispector, que não escolhemos os livros que vamos escrever – eles é que nos escolhem. Foi desse jeito que surgiu o seu romance Fantasma (Rio de Janeiro: Record, 2001), originalmente concebido como um volume sobre Curitiba, cidade onde Castello está atualmente radicado.

Confira, a seguir, a entrevista que ele concedeu por e-mail para a IHU On-Line. Nela, Castello fala sobre a obra e a vida de Clarice Lispector. E afirma: “Para Clarice, a literatura era, de fato, uma questão de vida ou morte - e não um luxo, ou uma afetação. Não era uma carreira, ou um projeto intelectual, ou um instrumento de afirmação existencial. Era um destino - com tudo o que essa palavra carrega de mais difícil”.

IHU On-Line - No texto “A senhora do vazio” (de Inventário das sombras), o senhor fala da sua admiração e dos seus contatos com Clarice. E conta que ela lhe disse, depois de mostrar um conto, que era “medroso” para ser escritor – e isso sempre o marcou, quando ia escrever. Ela exerce um poder de influência ainda em seus escritos?
José Castello -
Certamente que sim – e não há nisso, entenda bem, nenhum mérito. Ao contrário: ao dizer isso, exponho uma fraqueza. Ninguém lê Clarice, ou um grande escritor como Clarice, sem ser devastado pelo que lê. O problema maior, nesses casos, é como digerir e transformar essa influência. A voz de Clarice é muito forte: se você bobear, ela contamina tudo o que você vier a escrever. É uma voz inconfundível e atordoante, de modo que toda influência se torna lamentável, é só um macaquear, uma imitação medíocre. Estamos sempre expostos a influências, fortes ou fracas, desejemos isso ou não. O primeiro problema para qualquer escritor, é como livrar-se das influências. No caso, é como “matar” Clarice dentro de si. 

IHU On-Line - Nesse texto, ainda, há um comentário de que Clarice usava palavras “para tentar chegar além das palavras, para ultrapassá-las. Escreve para destruir as palavras”. Por isso, ela não se interessava por sua imagem de escritora. Como o senhor compreende isso na obra dela? Ela gostaria de ter sido inacessível?
José Castello -
Não era o desejo de ser, ou parecer, inacessível que a guiava. Clarice desconfiava, mesmo, das palavras. Desconfiava da própria literatura, que ela via como algo de que não podia se livrar. Não via como uma escolha, mas como uma espécie de condenação. Ela conhecia muito bem o universo pedante, retórico, vazio do mundo literário, pelo qual sempre sentiu grande repulsa. Para Clarice, a literatura era, de fato, uma questão de vida ou morte - e não um luxo, ou uma afetação. Não era uma carreira, ou um projeto intelectual, ou um instrumento de afirmação existencial. Era um destino - com tudo o que essa palavra carrega de mais difícil. A idéia de destruir as palavras surgiu de sua desconfiança em relação às próprias palavras. Ela conhecia a precariedade (humana) da palavra, suas limitações, seus engodos. Clarice desejava ir além das palavras para tocar, enfim, o real. Nesse sentido, a literatura, em vez de instrumento, era um obstáculo, que ela devia ultrapassar e vencer. Essa era uma posição solitária e radical, que ainda hoje desperta muitas incompreensões.

IHU On-Line - Ainda em seu relato, o senhor afirma ter encontrado Clarice, um dia, na rua, em frente a uma vitrina onde só havia manequins. Então, houve a constatação de que a escritora tinha “paixão pelo vazio”. De que forma esse vazio pode ser entendido em sua obra?
José Castello -
O vazio era justamente o “além da palavra”. De certo modo muito especial, Clarice foi uma mística. Mística que, em vez da religião, ou do esoterismo, adotou a literatura como instrumento. Esvaziar-se, para Clarice, era livrar-se da repetição, dos mecanismos defensivos, das desculpas, das muletas existenciais. A paixão pelo vazio era a paixão por aquele ponto do humano em que as certezas se evaporam e restam apenas as perguntas. Era a paixão pela dúvida que hoje, numa era de dogmas e de ortodoxias, está em descrédito, está satanizada. Mas sem as perguntas, sem o apego às perguntas, ninguém se torna um grande escritor, e Clarice sabia disso.

IHU On-Line - Depois de já ser conhecida e respeitada como autora de romances e contos, Clarice passou a escrever crônicas, que abrangem um gênero que mais se aproxima do leitor comum. Há nessas crônicas o estranhamento da obra de Clarice, tendo algumas delas servido de base para textos futuros de Água viva e Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, sobretudo?
José Castello -
Sim, Clarice usou muito material de suas crônicas para compor algumas narrativas longas. Não era uma mulher dada a formalidades. Tampouco foi uma fanática pelo novo - como foram tantos escritores do século XX. Para Clarice, escrever era escutar o mundo. “Não sou eu quem escrevo, são meus livros que me escrevem”. Ou seja: escrever era, um pouco, ler a si mesma e ao mundo que a cercava. Escrever era ler. Mas vá dizer isso aos escritores que só pensam em listas de mais vendidos!

IHU On-Line - Clarice Lispector afirmou, certa vez: “Os meus livros não se preocupam com os fatos em si, porque para mim o importante é a repercussão dos fatos no indivíduo”. Poderia comentar essa posição e afirmar se ela é coerente com a obra de Clarice?
José Castello -
Sim, ela pensava isso, mas isso não nos autoriza a ver Clarice como uma autora do Eu. Não foi uma ególatra, fascinada pelo pessoal e pelo confessional. De fato, existem muitos aspectos confessionais na obra de Clarice - mas eles dizem respeito à experiência de estar vivo, ao pânico diante do mundo, ao sentimento de solidão e de exílio. Portanto, a experiências universais, e não só desse ou daquele indivíduo e de suas vidinhas pessoais. Quanto a ser coerente, Clarice nunca se preocupou com isso. Até porque conhecia e, sobretudo, preferia a incoerência que rege o humano. Preferia os paradoxos, os impasses, os abismos. Preferia, à coerência, o erro. Foi uma mulher muito sábia.

IHU On-Line - No seu texto “A senhora do vazio”, já referido, o senhor fala de um contato que teve com Helène Cixous, que é apontada como a mais importante especialista na Europa de Clarice. Ela teria afirmado que Clarice é a maior escritora do Ocidente no século XX e que sua obra só pode ser comparada à de Kafka. O senhor concorda com essa afirmação? Como situaria a presença e a importância de Clarice na literatura mundial?
José Castello -
Literatura não é olimpíada. Essas medições, portanto, são muito perigosas, senão absurdas. Não dou importância a cânones: cada leitor constrói o seu próprio cânone e, mesmo assim, ele está sempre em movimento, pode mudar a qualquer momento, e de fato muda. Posso dizer que, sem dúvida, Clarice, assim como Kafka, estão entre meus escritores preferidos, daí as afinidades que encontrei com Hélène Cixous. Soube por uma amiga, que freqüentou suas oficinas em Paris, que Hélène pede a seus alunos que escolham um texto de Clarice para ler em voz alta – e devem fazer isso até que comecem a chorar! Isto é, até chegar ao limite, até o texto explodir, até (como queria Clarice) o leitor “se tornar” o escritor. Hélène sempre aponta em Clarice o gosto pelas experiências extremas (que a levaram a ser conhecida até como “bruxa”). E adota esse gosto, essa opção para si mesma.

IHU On-Line - A admiração por A paixão segundo G.H., que o marcou quando começava a escrever, ainda existe? Quais os elementos que tanto o atraíram para a leitura desse livro e o marcaram? E por que o senhor acha que A hora da estrela, por outro lado, é o livro mais surpreendente que ela escreveu?
José Castello -
Sinto-me até hoje marcado pela leitura de A paixão segundo G.H., romance que estou sempre a reler. Ao lado de Água viva, me parece ser o romance mais radical que Clarice escreveu. Os dois, mais A hora da estrela, eu penso, formam a base da literatura de Clarice. Muitos acreditam que A hora da estrela foi uma concessão tardia que Clarice fez ao realismo. A idéia é absurda. Ao contrário, acredito que se trata, mais, de uma espécie de testamento literário de Clarice. Ela o escreveu, como se sabe, pouco antes de morrer. O narrador, Rodrigo S. M., ele sim, tem a pretensão de escrever uma narrativa realista sobre a vida de Macabéa. Tem essa pretensão e fracassa. Mas isso não aparece, por exemplo, na versão filmada do romance, dirigida por Suzana Amaral . É um filme muito bonito, mas que talha o livro de Clarice ao meio. Suzana filma apenas o romance que Rodrigo S. M. tenta escrever – mas exclui de seu filme o personagem principal do livro, o próprio Rodrigo. A hora da estrela é um livro irônico, uma espécie de resposta que Clarice dá aos que sempre lhe cobraram uma atitude realista. Rodrigo, seu duplo, aventura-se no realismo, e fracassa. Completamente. Desse modo, Clarice expõe todas as ilusões, os mal-entendidos e as falsificações que definem a literatura realista. É como se dissesse: “Vocês querem realismo? Então lhes dou, aqui está”. O próprio sobrenome de Rodrigo, S. M., evoca a noção de Sua Majestade - quer dizer, o autor todo poderoso e onipotente, que controla suas narrativas e que acredita que, com elas, chega a controlar o mundo.

IHU On-Line - Como foi sua experiência de contato com Clarice Lispector? O que sentiu quando ela lhe respondeu que escrevia para permanecer viva?
José Castello -
Senti que dizia a verdade, a mais pura verdade. Não falava só de si, mas da atitude que os escritores, os grandes escritores, têm diante da literatura. Acredito muito na potência da literatura. Em nosso mundo dogmático, fechado, superficial e fanatizado, a literatura se torna o discurso da liberdade interior. Grande escritor é aquele que encontra sua própria voz, e não aquele que se submete a regras, a cânones, ou a verdades consagradas. A literatura, Clarice dizia isso, exige muita coragem. Com medo ninguém se torna escritor. E Clarice foi uma mulher muito corajosa.

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