Edição 227 | 09 Julho 2007

Uma arte como devir de vida

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IHU Online

Na opinião da teóloga Marga Stroher, docente na Escola Superior de Teologia (EST), em São Leopoldo, “Frida transforma sua arte em devir de vida, como resposta à tragédia; sua arte não é representação. Ela mesma afirma que pinta a realidade”.  A reflexão faz parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a partir das questões criadas com base no artigo inédito Autoretrato con el pelo cortado – a fabricação de um corpo estético de rupturas, escrito para a coletânea sobre Frida Kahlo, que está sendo organizada pela Profª. Drª. Edla Eggert.

Stroher é graduada, mestre e doutora em Teologia pela EST com a tese Caminhos de resistência nas fronteiras do poder normativo - Um estudo das cartas pastorais em perspectiva feminista.  É autora de Corporeidade, etnia e masculinidade (São Leopoldo: Sinodal, 2005) e uma das organizadoras das obras Águas da vida – Celebrações (São Leopoldo: Con-texto, 2001); À flor da pele - Ensaios sobre gênero e corporeidade (São Leopoldo: Sinodal, CEBI, 2004); e A Igreja na casa dela: papel religioso das mulheres no mundo greco-romano e nas primeiras comunidades cristãs (São Leopoldo: Sinodal, 1996).

IHU On-Line - Podemos dizer que a arte, para Frida Kahlo, tinha papel semelhante ao conferido por Nietzsche, como justificativa para a existência e conversão do horror em fenômeno estético? Por quê?
Marga Stroher –
Nietzsche  encontrava-se em profundo conflito com a sociedade de representação de seu tempo. Na construção de seu caminho filosófico, espelhou-se bastante na tragédia grega, que apontava alguma possibilidade de saída, alguma forma de sobrevivência, como o fio de Ariadne, a teia de Aracne, o vinho de Dionísio. E quando Nietsche propõe a arte como saída, como forma da verdade filosófica canonizada não nos destruir, fala da arte, não como representação, mas como potência de vida. Assim, Frida transforma sua arte em devir de vida, como resposta à tragédia; sua arte não é representação. Ela mesma afirma que pinta a realidade.

IHU On-Line - Sem a sua arte, Kahlo teria conseguido sobreviver?
Marga Stroher -
Antes de torna-se artista, Frida já era uma mulher poderosa e é isso que fez a sua arte tornar-se tão poderosa. Autodeterminação, liberdade, ousadia, alegria e desejos de transformação social foram seus combustíveis de vida e forneceram os matizes de sua pintura. As limitações de mobilidade física, conseqüência do acidente que sofreu, delimitam seu território de mobilidade, mas é a partir desse território que recria sua experiência, construindo caminhos de resistência à dor e às limitações, e isso a partir da arte. Se não pela arte, ela teria conseguido sobreviver de outra maneira, a partir de algo que produzisse sentido de vida, mas a arte permitiu que ela evidenciasse a potência humana que ela mesma já era antes da tragédia, e é isso que a faria sobreviver.

IHU On-Line - É possível compreender o modo de Frida Kahlo de se vestir e arrumar (ou cortar) o cabelo como manifestações de sua visão política? Por quê?
Marga Stroher -
Frida tinha criado um estilo próprio de vestir-se, de compor seu corpo. Costumava usar roupas bem coloridas, com bordados tradicionais, e brincos artesanais mexicanos. Ao mesmo tempo, parece que gostava de brincar de trocar de papéis, às vezes usando roupas masculinas, desconstruindo ou desestabilizando modelos e comportamentos. Na pintura “Autoretrato com el pelo cortado” (1940), em que corta o cabelo e aparece com traje masculino, ela faz uma inversão da representação dos papéis sociais. Aqui a beleza entra como interdição, não como confirmação das representações e imagens fixas de masculino e feminino. E isso é político, na medida em questiona as representações imagéticas a partir dos condicionamentos da construção social de gênero.

IHU On-Line - André Breton afirmou que a arte dessa pintora era um laço de fita em torno de uma bomba. Como percebe o engajamento político de sua arte?
Marga Stroher -
Frida foi engajada em seu contexto, tanto que dizia ter nascido três anos depois da data oficial de seu nascimento, ou seja, em 1910, ano da Revolução Mexicana, porque queria estar vinculada a este novo momento de seu país. Se, por um lado, seus auto-retratos são constitutivos de sobrevivência material e pessoal, sua arte não está alijada dos processos e acontecimentos sociais e políticos de sua época e seu contexto. Sua postura crítica e suas convicções políticas estão vinculadas aos ideais do comunismo, e algumas de suas obras mostram isso, a exemplo de “El marxismo da salud a los enfermos” (1954) e “Autoretrato en la fronteira entre México e Estados Unidos” (1932), essa última muito instigante, mostrando as discrepâncias geográficas e sociais entre os dois países.

IHU On-Line - Por que a senhora afirma que, mais do que artista, Frida é tecelã de si mesma?
Marga Stroher -
Frida constrói uma narrativa pictórica que espelha sua experiência, seja de dor ou de alegria; ela toma a arte como metáfora de vida e produção de sentido, como lapidação de si mesma e dos seus sonhos de mulher. Ela cria, através da arte, a sua própria arte de ser e sua intensidade de vida, seu desejo de viver.

IHU On-Line - Em quais aspectos poderíamos dizer que Kahlo rompeu com a arte canonizada?
Marga Stroher -
Não era preocupação de Frida de enquadrar sua arte em qualquer estatuto de arte canonizada. Se assim fosse, teria aceitado a análise de Breton que classificou sua pintura de surrealista e estaria confortável nesse importante movimento artístico da época. Frida quer mais. O ponto de partida de sua arte é a própria experiência. O próprio corpo torna-se como pincel, tinta, tela, motivação e paisagem de seu processo estético-experiencial. Em seus auto-retratos em particular, ela capitaliza sua própria beleza, contudo não modela a aparência para agradar os olhos pela imagem ou para corresponder à arte confirmada por qualquer escola, museu ou movimentos artístico reconhecido. Sua arte, pode-se dizer, coloca-se como intervenção e desestabilização do constituído como belo, mesmo em sua inegável beleza estética.

IHU On-Line - Em seu artigo, você afirma que “Ela precisava tornar-se um homem para ter reconhecimento e ser percebida como mulher”. Como a trajetória de Frida Kahlo ajuda as mulheres de nosso tempo a repensarem seu papel na sociedade e conquistarem espaços antes não “permitidos” a elas?
Marga Stroher -
Uma pergunta pertinente é a de quanto as mulheres ainda precisam corresponder a modelos masculinos heteronormativos para ser aceitas. Frida, que se autodenomina filha da Revolução, em sua estética da vida, faz uma estética política. E nos convida a fazer um caminho ético-político a partir de nossas experiências e do lugar em que vivemos e atuamos. As mulheres, além de prestar atenção ao que passa ao seu redor, precisam aprender a prestar atenção a si mesmas, não se confinando em suas pequenas ou grandes tragédias, mas, como Frida, transformar a tragédia, as limitações, as fronteiras em potência de vida. Não devem viver como de fossem destinadas a um destino inevitável, mas fazer rupturas com o que escraviza e limita a autodeterminação à integridade de vida. Frida encontrou a arte, mas cada um de nós é capaz de construir seu próprio caminho e nele buscar aquilo que nos potencialize para a vida e nos ajude a viver melhor, com justiça, comida, ternura, beleza, arte e afeto. Viva como festejo, viva como devir, como mandato.

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