Edição 226 | 02 Julho 2007

Dostoiévski chorou com Hegel

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

Discutir algumas idéias da obra Dostoyevski lee a Hegel en Siberia y rompe a llorar (Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2006) é o objetivo da entrevista por e-mail que a IHU On-Line realizou com o seu autor, o ensaísta húngaro László Földényi. O contato com Földényi foi viabilizado pelo Prof. Dr. Paulo Soethe, parceiro do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).

De acordo com Földényi, é possível que o livro de Hegel que Dostoiévski leu com Aleksandr Wrangel tenha sido Lectures on the Philosophy of World History. E afirma: “O estado de liberdade pode ser descrito de várias formas, mas não pode ser chamado de racional. No processo de subordinar a história do mundo, Deus e o espírito absoluto (ou o denominador comum deles) à razão, Hegel deu as costas à liberdade. Liberdade racional não é liberdade. O conjunto da obra de Dostoiévski pode ser lido parcialmente como uma resposta à suposição de Hegel”. Sobre Hegel, confira a edição 217 da IHU On-Line, de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia do espírito, em comemoração aos 200 anos do lançamento dessa obra.

De Földényi publicamos o artigo Dostoiévski chorou com Hegel, na edição 195 da IHU On-Line de 11-09-2006, sobre o escritor russo Fiódor Dostoiévski. O artigo é de autoria de Monika Zgustova. Contemplado em 1996 com o Prêmio de Literatura Kosztolányi, oferecido pela Fundación Soros Nueva York-Budapest, Földényi escreve sobre o período correspondente aos dez anos em que Dostoiévski cumpriu trabalhos forçados na Sibéria. O autor russo leu a afirmação de Hegel de que a Sibéria estava fora do âmbito da história, e isso levou-o a sentir-se confinado a uma não-existência. Assim, a obra de Földényi analisa as reações de Dostoiévski às idéias do filósofo idealista alemão. Confira, a seguir, a íntegra da entrevista.

IHU On-Line - Qual foi o impacto que a leitura de Hegel provocou em Dostoiévski? A que obras desse filósofo Dostoiévski teve acesso?
László Földényi -
Na primavera de 1854, depois de quatro anos de trabalhos forçados, Dostoiévski  alistou-se como soldado na encosta norte da Ásia, em Semipalatynsk, no sul da Sibéria. Lá ele fez amizade com o promotor público local, Aleksandr Yegorovich Wrangel. Logo eles começaram a estudar assiduamente, dia após dia. Wrangel não guardou na memória o nome do livro que eles estudavam. Ele apenas menciona o nome do autor: Hegel. Não sabemos que livro de Hegel Wrangel encomendou da Alemanha para Dostoiévski. Então vamos supor que tenham sido painéis (palestras) sobre filosofia da história, a qual Hegel entregou entre o outono de 1822 e a primavera de 1831 na Universidade de Berlim. As palestras foram publicadas em forma de livro primeiro em 1837, e então, em 1840, uma nova edição revisada apareceu. É possível que Wrangel, depois de alguma busca, deva ter encomendado este livro, pois nele Hegel falava também sobre a Sibéria.

IHU On-Line - Poderia contextualizar o motivo pelo qual Hegel disse que a Sibéria estava fora da história?
László Földényi -
São apenas algumas palavras e elas explicam por que Hegel não discutirá a Sibéria. É um tipo de afirmação negativa que faz sua colocação interessante. Ele inicia sua discussão sobre a Ásia: “Devemos, antes de tudo, eliminar a Sibéria, a encosta norte da Ásia. Para tal, encontra-se fora do escopo de nossa questão. Todo o caráter da Sibéria a guia para fora como um arranjo para a cultura histórica e a impede de alcançar uma forma distinta no processo do mundo histórico” (Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Lectures on the Philosophy of World History. Trans. Hugh Barr Nisbet. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, 191 ).

IHU On-Line - Como Dostoiévski transcendeu o sentimento de estar confinado a uma não-existência? Como isso aparece em suas obras pós-Sibéria?
László Földényi -
Desde a era do Romantismo, uma obstinada fé na razão e no progresso histórico nos ajuda a carregar nossa perturbação com a ausência de Deus. Entretanto, se alguém como Dostoiévski ou Nietzsche  observa a vulnerabilidade da fé na razão e na história, expondo a história enquanto uma construção, um mecanismo de cegueira auto-defensiva, tudo desmorona. O que permanece para preencher o lugar de Deus quando Deus está exilado, e não podemos contar com a história e o progresso? Essa se torna a questão básica para Dostoiévski após seu retorno do exílio na Europa, e, através de todas as suas novelas, ele procurou respostas para ela.

IHU On-Line - O senhor afirma que Dostoiévski entendeu que a vida possui certas dimensões que não cabem na história e em sua racionalidade. Que mudanças essa constatação trouxe à vida do escritor no pós-Sibéria?
László Földényi -
Em suas novelas, Dostoiévski descreveria a Europa, a civilização contemporânea, tudo o que pareceu apropriado e normativo, infernal. A Europa pareceu um horror para Dostoiévski, por sua supressão demoníaca: a supressão de indiferença à (ao) santidade, sofrimento, morte e redenção que a cultura moderna se impõe. Dostoiévski foi um psicólogo demoníaco, ou um psicólogo angelical. “Nós todos nos tornamos alienados da vida” é o dito de seu homem subterrâneo. “Somos todos aleijados, cada um de nós, mais ou menos. Nos tornamos tão alienados que em certos momentos sentimos uma repulsa pela genuína 'vida real', a por isso não suportamos ser lembrados dela.” (Dostoevsky. Notes from Underground. Trans. and ed. Michal R. Katz; New York: Norton, 1989. 88 ) O inferno siberiano, descrito em todas as cores, contrasta com o inferno cinza da Europa um inferno que, no século XX, reaparecerá nos escritos de Franz Kafka  e nos de Samuel Beckett, no filme de Andrei Tarkovsky, Stalker, uma mecanizada, e portanto, impessoal, aniquilação do eu.

IHU On-Line - É possível estabelecer alguma relação entre a experiência do inferno siberiano e a conversão de Dostoiévski?
László Földényi -
Há redenção do inferno, mas não há, na visão de Dostoiévski, redenção sem inferno. Como ele disse a Vsevolod Solovyov (irmão do filósofo Vladimir), “foi uma grande felicidade” para ele, na Sibéria, onde passou por “escravidão penal”, começar a viver bem e alegremente, e a compreender Cristo. (Ele conclui indicando (desejando) a Sibéria a Solovyov também.) Sabemos também que A. P. Milyukov disse que Dostoiévski era agradecido ao destino por permitir a ele, durante o exílio, estudar o povo russo completamente e melhor entender a si mesmo. Raskolnikov também considera a Sibéria redentora: sua vida lá “é a história de uma gradual renovação de um homem, de sua gradual regeneração, de seu lento progresso de um mundo a outro, de como ele aprendeu a conhecer uma ainda nem sonhada realidade”, e então Crime e Castigo termina.

IHU On-Line - Autores como Franca D’Agostini situam o surgimento do niilismo no pensamento de Hegel, que seria uma evolução daquilo que ele nomeou como “das Logische”. Tomando em consideração que o niilismo era um dos temas mais combatidos por Dostoiévski, podemos dizer que a leitura de Hegel ajudou a sedimentar seu combate ao niilismo?
László Földényi -
Aqueles que aderem à razão eventualmente caem vítimas da irracionalidade, e eles caem mais rápido e mais espetacularmente que aqueles cujo maior desejo é viver livremente. A razão não é a criadora ou mestre da liberdade; ela é apenas uma parte nisso. O estado de liberdade pode ser descrito de várias formas, mas não pode ser chamado de racional. No processo de subordinar a história do mundo, Deus e o espírito absoluto (ou o denominador comum deles) à razão, Hegel deu as costas à liberdade. Liberdade racional não é liberdade. O conjunto da obra de Dostoiévski pode ser lido parcialmente como uma resposta à suposição de Hegel. Em 1864, o herói de Notas do Subterrâneo está falando para sua mente: “Em resumo, qualquer coisa pode ser dita a respeito da história do mundo, qualquer coisa que possa ocorrer à mais desordenada/confusa imaginação. Há apenas uma coisa que possivelmente não possa ser dita a esse respeito [da história do mundo] que ela é racional. Você ficará engasgado com a palavra” (Dostoevsky. Notes from Underground, trans. and ed. Michal R. Katz; New York: Norton, 1989, 21). Não há dúvida sobre quem Dostoiévski estava pensando quando escreveu esta linha.

IHU On-Line - Em outro aspecto, Dostoiévski tinha conhecimento do conceito de Absoluto hegeliano? Poderíamos dizer que esse Absoluto estava implícito em personagens como Michkin e Aliócha? Por quê?
László Földényi -
Michkin ou Aliocha são representativos do Absoluto; entretanto, isso é de um tipo completamente diferente do que aquele de Hegel. Escrevendo sobre o Absoluto, ele não quis dizer Razão em seu mais alto potencial; ele estava buscando o ilimitado e incomensurável. Ele estava enxergando além da inadequação, limitação, imperfeição no divino. Tendo saído fora da história no inferno siberiano, no qual a ausência divina é inegável, ele ao menos encontrou condições para achar Deus.

IHU On-Line - Em entrevista à nossa revista IHU On-Line edição 195, sobre Dostoiévski, Joseph Frank  afirma que “a execução simulada, seguida de deportação para a Sibéria como pena para a acusação de conspiração contra o czar, foi muito mais importante na trajetória pessoal e intelectual de Dostoiévski do que sua epilepsia”. Qual é o seu ponto de vista?
László Földényi -
Sem dúvida que a epilepsia representou um grande papel em sua vida; fala por si mesmo o fato de que seus grandes heróis, buscando redenção, eram todos epiléticos. No entanto, a epilepsia é, em si, um fenômeno quase neutro. Para fazer “uso” disso, Dostoiévski precisou da experiência da Sibéria também. Como já citado dele acima: “foi uma grande felicidade” para ele, na Sibéria, onde, na “escravidão penal”, ele começou a viver bem e alegremente, e a entender Cristo. Dostoiévski nunca duvidou que a Sibéria fosse o próprio inferno, com todos os seus horrores. Ele sofreu, mas seu sofrimento foi redentor; o livrou da história e sua razão cinza. Ele caiu para ascender mais alto, como aqueles convictos na Sibéria a quem ele descreveu como esperando, enigmaticamente, por “um tipo de desespero”. A Sibéria era o próprio inferno, pois carregava os germes da santidade e o horror vindo à tona, aberto e incomensurável.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição