Edição 225 | 25 Junho 2007

Ficção e História em O retrato, de Erico Verissimo

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

Em 2005, Erico Verissimo foi tema do Seminário Erico Verissimo: vida, obra e atualidade, realizado na Unisinos, como promoção do IHU, no período de 12 a 14 de setembro. Naquele mesmo ano, a revista IHU On-Line número 154, dedicou a ele o tema de capa. Pois Erico Verissimo novamente é tema de debate. Desta vez, será no evento IHU Idéias da próxima quinta-feira, dia 28-6-2007. Na ocasião, a Prof. Dra. Célia Doris Becker, das Ciências da Comunicação da Unisinos, apresentará o tema “Ficção e História em O retrato, de Erico Verissimo”.

Para adiantar aos leitores e leitoras da IHU On-Line a abordagem que ela fará no debate da próxima quinta-feira, Célia Doris conversou com a redação da IHU On-Line por telefone e concedeu a entrevista que segue. A obra O retrato é tema de sua tese de doutorado em Teoria Literária, defendida na PUCRS. Confira também outra entrevista concedida por ela sobre Verissimo na edição número 154, de setembro de 2005, sob o título Personagens de Erico revelam a psicologia do homem e da mulher do Sul.

IHU On-Line - Como se entrelaçam a história e a ficção em O retrato?
Célia Doris Becker -
Em termos de relacionamento entre esses dois campos do conhecimento, existe um casamento quase que perfeito, porque percebemos que Erico Verissimo, como em todo romance histórico, situa as personagens e os eventos fictícios dentro de um contexto com fatos reais. No caso, estamos diante de um contexto que abrange os 15 primeiros anos do século XX. O leitor percebe tudo o que marcou esse início de século e, dentro desse panorama, Erico insere a família Terra Cambará, em especial o Dr. Rodrigo Cambará, que volta de Porto Alegre para Santa Fé, já com o diploma de médico. No contexto histórico que ele organiza nesse pano de fundo, entra a ficção. Por outro lado, não existe apenas a questão do contexto, de um determinado tempo, mas percebemos que alguns eventos históricos têm a participação das personagens. Então, todas aquelas questões relacionadas com a política (as eleições fraudulentas, a campanha civilista) têm a participação das personagens. Quando um escritor cria essa unidade de tempo/espaço/história e ficção, existe um livre trânsito das personagens no campo histórico e, inclusive, personalidades históricas se ficcionalizam, à medida que entram na história da família Terra Cambará, o que é o caso, por exemplo, do senador Pinheiro Machado, que é um sujeito histórico importantíssimo destes primeiros anos do século XX, e que vai ao encontro da família Cambará, em Santa Fé. Então, percebemos que o Dr. Rodrigo assume um papel importante dentro da história do momento, enquanto uma personalidade histórica pende para o lado da ficção. É aí que se cria esse diálogo tão bonito entre história e literatura.

IHU On-Line - Qual é a importância de O retrato dentro da trilogia O tempo e o vento?
Célia Doris Becker –
Eu encontrei dentro da crítica feita a essa parte de O tempo e o vento um artigo de Sérgio Buarque de Holanda , que comentava o fato de haver ocorrido uma mudança do tom que predominava em O continente para o tom que predomina na parte de O retrato. Todas aquelas ações épicas e movimentadas, percebidas em O continente, que é realmente uma retrospectiva dos primeiros anos da formação do Rio Grande, são quebradas, até porque Erico muda de direção e se centraliza em uma personagem, que vai encarnar a formação do caudilho, dentro da política, aquele que sai da posição de estancieiro e vai atuar na política, que é justamente Dr. Rodrigo. A crítica tem batido muito em cima disso e O retrato não tem tido aquela abordagem exaustiva e rica, pródiga, porque muda o ritmo. O maior número de trabalhos que se encontra, entre dissertações, teses, ensaios, críticas, relaciona-se com a primeira parte de O tempo e o vento, que realmente é a mais dinâmica, mais movimentada, a mais colorida. Eu fui incentivada a pesquisar O retrato porque me incomodava esse posicionamento dos críticos e queria saber por que, afinal, acontecia isso. Depois, quando li um artigo de Luis Fernando Verissimo , em que ele dizia que a obra de Erico não tinha sido suficientemente explorada em relação à carpintaria que o autor tinha utilizado, eu juntei esses dois aspectos e decidi pesquisar essa parte. E foi por meio disso que nasceu o interesse pelo Retrato. Não se encontra material sobre essa parte de O tempo e o vento, a não ser comentários, artigos, ensaios. Eu não encontrei em nenhuma das minhas investidas, dentro desse campo da crítica, uma tese que se voltasse sobre O retrato. E a minha tem essa preocupação de mostrar que existem outros elementos que não só aqueles que predominam lá em O continente, e que merecem atenção. E essa é uma parte muito complicada, pelo menos dentro da visão que eu tive, das leituras que fiz sobre a história. É uma época muito conturbada da vida nacional. O Brasil recém estava entrando no sistema republicano e as coisas estavam muito mal organizadas.

IHU On-Line – Qual a principal riqueza de O retrato?
Célia Doris Becker –
A riqueza é a exploração dos aspectos psicológicos que, na visão de Erico, cunharam a personalidade dos caudilhos. Muitos críticos dizem que encontram justificativas de que o Dr. Rodrigo representa, na verdade, Getúlio Vargas. Existe toda essa importância na medida em que essa figura histórica vai ter um destaque muito grande na década de 1930.

IHU On-Line - Em entrevista concedida à nossa revista, a senhora afirmou que os personagens de Erico revelam a psicologia das pessoas do Sul. Como isso aparece em O retrato?
Célia Doris Becker -
Temos uma diversidade de personagens criadas por ele. O Dr. Rodrigo é uma personagem carismática, pela forma como ele se relaciona com as pessoas: ele encanta, tem o dom de saber conversar, é um intelectual refinado e possui toda uma educação na capital. Ele vai representar aquele lado sofisticado da família. Por outro lado, temos o Toríbio, irmão dele, que não tem essa vivência de estudos. Ele gosta de ler livros de aventura, é esclarecido politicamente, mas não tem aquele “trato” do Dr. Rodrigo. Existe um contraste, que percebemos nessa fase da história do Rio Grande, entre o homem do campo e o homem que tem algumas luzes a mais. Existem, pelo lado do Rodrigo, os amigos dele, que são também pessoas que têm conhecimento intelectual; e existem, pelo lado do Toríbio, outras personagens que estão diretamente ligadas ao campo e que representam aquela permanência do folclórico, do tradicional do homem do campo. Esses dois pólos centralizam essa questão. Vamos ter o Rodrigo, com idéias avançadas sobre a democracia, e vamos ter o Toríbio arraigado mais em valores do campo. Isto fica bem marcado na obra O retrato. Mas esse desfecho, sobre o que acontece com os dois, teremos só na terceira parte, que é O arquipélago. Quando eu trabalhei O retrato, tive que fazer um trânsito entre a primeira e a terceira parte, a fim de que houvesse uma sintonia que explicasse o contraponto que Erico põe na estrutura de O retrato. Quando lemos essa parte, percebemos que Erico começa situando a ação em 1945. No segundo capítulo, há uma volta para o início do século. Esse movimento apresenta uma diferença de 30 anos. E daí o leitor fica com um grande estranhamento, querendo saber o que aconteceu, pois, no primeiro capítulo de O retrato, Dr. Rodrigo está morrendo e no segundo capítulo ele volta para Santa Fé, jovem, pujante, cheio de idéias. O leitor se pergunta o que houve nessa lacuna de 30 anos que motivasse essa mudança de comportamento. Ele não é muito bem visto pelos cidadãos de Santa Fé no início do livro, sendo que no meio da narrativa ele era bem quisto, tinha carisma. Então, nos perguntamos: o que foi que aconteceu? Isso só será respondido na terceira parte de O tempo e o vento.

IHU On-Line - Como a influência de João Simões Lopes Neto sobre Veríssimo se mostra na obra O retrato?
Célia Doris Becker -
A influência de Simões Lopes Neto  aparece na personagem Fandango, na representação de todos os aspectos relacionados com o Toríbio, com o campo, porque o Toríbio adora viver no Angico, que é a propriedade rural deles, e nesse convívio é que notamos a presença de Simões Lopes Neto. Porém, isso já aparece em escala bem menor, porque na medida em que nos afastamos do Continente, e vamos entrando no Retrato e no Arquipélago, a presença dos elementos explorados pelo Simões Lopes Neto nos seus contos vai se esvaindo, até porque o Rio Grande muda, a história roda, a situação vai se modificando, há o aparecimento de cidades, que se modernizam. E essa parte vai ficando restrita só aos ambientes específicos do campo: Toríbio, seus peões, o Fandango; são eles que ainda mantêm alguns detalhes que podemos relacionar com Simões Lopes Neto.

IHU On-Line - Qual particularidade de Erico Verissimo existe na representação do imaginário e no uso do recurso metafórico em suas obras, em especial O retrato?
Célia Doris Becker –
Essa questão metafórica é muito interessante. Dependendo da leitura que fazemos, atribuímos sentido ao que lemos. Acho muito interessante já pelo título: O retrato. A própria estrutura da obra é o retrato, a moldura é época de 1945. E a parte central é a chegada do Dr. Rodrigo até o ano de 1915. Esse é um primeiro elemento visual que podemos organizar a partir da leitura. Um outro elemento muito importante são os títulos dos capítulos que ele dá. Por exemplo, “Chantecler” e “Uma vela para o negrinho”. Quando ele fala em Chantecler, o leitor se pergunta pelo significado daquilo. Esse título estará diretamente relacionado com a cultura literária que o Erico possuía. Porque ele se inspira num autor francês, Rostand , que escreve uma peça chamada Chantecler, que está diretamente relacionada com aquela imagem vaidosa que o próprio Dr. Rodrigo tem de si. Erico relaciona o nome de um capítulo com as características de uma personagem. “Uma vela para o negrinho” é a mesma coisa. Nos perguntamos o que significa isso dentro desse contexto. É justamente a permanência da tradição em Maria Valéria, que vê a desintegração da família, e usa desse recurso: acender uma vela para o negrinho, a fim de que a família, que está toda fragmentada, encontre de novo um caminho. O leitor entra em contato com essa parte metafórica, relacionando o conteúdo do capítulo com o que diz o título. Mas é importante que também se reconheça nessa habilidade de manejo das figuras de linguagem, o conhecimento profundo que Erico tem da literatura universal e o conhecimento da literatura do seu torrão, que é o Rio Grande do Sul. 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição