Edição 224 | 20 Junho 2008

“O documento não tem o profetismo e o sopro libertador que caracterizou Medellín e Puebla”

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IHU Online

Para Maria Clara Bingemer, professora do departamento de teologia da PUC-Rio e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da mesma universidade, as soluções apresentadas no documento da V Conferência, para a superação das sombras que persistem na vida cristã do continente “são tímidas e pouco ousadas”. No entanto, ela destaca que a CNBB, nas observações que enviou ao documento, “propõe soluções ousadas e interessantes”.

Bingemer é graduada em Jornalismo, mestre em Teologia e doutora em Teologia Sistemática. Ela concedeu uma entrevista sobre os jesuítas na edição número 183 da IHU On-Line, de 5-06-2006, intitulada Os jesuítas e a expansão da cultura moderna. Na edição 220, do dia 21-5-2007, intitulada O futuro da autonomia, uma sociedade de indivíduos?, Maria Clara Bingemer concedeu outra entrevista: “Igreja que deseja ser ouvida numa cultura pós-cristã precisa ter um testemunho forte, crível e consistente, que acompanhe o discurso”. Confira sua entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line:

IHU On-Line – Quais são as principais novidades da  V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe – V Celam, em relação a Medellín, Puebla e Santo Domingo?
Maria Clara Bingemer -
Eu diria que as principais novidades são:

- um protagonismo- ainda que às vezes não explícito – dos novos movimentos como a grande esperança para uma revitalização do catolicismo no continente.  Ao falar do itinerário formativo do discípulo, o esquema é quase integralmente o que usa um conhecido novo movimento, o Caminho Neo-Catecumenal, por exemplo.  Ao falar de comunidades de base, coloca a seu lado, na mesma seção, as pequenas comunidades, que são justamente as comunidades dos novos movimentos.

- como esses novos movimentos são em sua maioria ou totalidade de pessoas das classes médias, há uma mudança de lugar dos pobres e das classes populares como sujeitos da Igreja e da evangelização, muito embora sejam freqüentemente mencionados como objeto da mesma evangelização e do encontro com Jesus Cristo.

- o documento é bem mais aterrissado e melhor do que o de Santo Domingo, mas não tem o profetismo e o sopro libertador que caracterizou Medellín e Puebla. Por isso, apesar de conservar o método Ver-Julgar-Agir, o faz de maneira peculiar, com características diferentes das utilizadas em Medellín e Puebla. Isso reflete a mudança de rosto da Igreja latino-americana, que, após vinte e seis anos, reflete a marca de haver tido uma mudança significativa em seu rosto episcopal.

IHU On-Line - A partir das conclusões apontadas no documento final, quais as luzes e as sombras da vida cristã e da tarefa eclesial na Igreja hoje?
Maria Clara Bingemer -
O documento aponta como luzes a herança católica do continente, a fé do povo latino-americano e todos os ganhos que, ao longo de muitos séculos, se pode tirar desta herança. Como sombras, aponta uma excessiva secularização de boa parte de segmentos da Igreja, como, por exemplo, a vida religiosa e a necessidade de superar este estado de coisas. Aponta também o êxodo de católicos para as fileiras evangélicas pentecostais e para outras religiões, ocasionando significativas perdas para a Igreja.  Junto a isso, está o decréscimo das vocações sacerdotais, o encolhimento do contingente de fiéis etc. O documento conclama os fiéis católicos a superar essas sombras e aposta para isso sobretudo em forças como a família, primeiro agente de evangelização (embora seja uma família que a nosso ver não corresponde mais à realidade pluriforme das famílias católicas latino-americanas); a paróquia, a diocese e os movimentos. As soluções que o documento apresenta para a superação das sombras, que persistem na vida cristã do continente, são, a meu ver, ainda tímidas e pouco ousadas. Cito, como exemplo, o problema de que muitas comunidades católicas não têm a possibilidade de participar da Eucaristia no domingo porque não há clero no lugar onde estão situadas. Ficam, portanto, privadas daquele que é o mistério central do Catolicismo. A CNBB, nas observações que enviou ao documento de participação, encara corajosamente esse problema e propõe soluções ousadas e interessantes. Afirma, por exemplo, que se é verdade que “a Igreja faz a Eucaristia e a Eucaristia faz a Igreja”, o fato de que 80% dos católicos brasileiros estejam impedidos de celebrar a Eucaristia aos domingos significa que estão privados de importante dimensão de sua eclesialidade. Sugere, então, que se repense a questão da ministerialidade laical e da possibilidade de retomada do ministério por parte dos padres casados. O documento recolhe o problema, mas não a solução. Diz que aqueles que não têm a possibilidade de celebrar a Eucaristia aos domingos procurem participar devotamente de celebrações da Palavra (isso, aliás, eles e elas já o fazem) e rezem pelas vocações sacerdotais.  Mostra, portanto, que o caminho de superação deste tipo de problemas ainda é o tradicional e que a Igreja não pretende introduzir nenhuma novidade significativa na formatação da questão.

IHU On-Line - Quais são as principais mudanças que estão acontecendo em nosso continente e no mundo e que interpelam a evangelização? A V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe – V Celam consegue responder aos desafios destas mudanças?
Maria Clara Bingemer -
Parece-me que, em nosso continente, estão acontecendo significativas mudanças que acompanham o estado mutante universal: 1) pluralismo religioso e perda da hegemonia do cristianismo histórico; 2) necessidade do diálogo ecumênico e macro-ecumênico em escala crescente; 3) crescimento e aumento vertiginoso da pobreza e da injustiça presentes no continente, que só fez aumentar ao longo de décadas e que se encontra atualmente em estado calamitoso (é no mínimo escandaloso que o continente da esperança, o maior continente católico do mundo, tenha um terço de seus habitantes abaixo da linha de pobreza); 4) a cultura pós-moderna com as novas tecnologias (celulares, internet etc.) que transformaram desde a concepção do ser humano de sua corporeidade e sua identidade humanas até as relações humanas e comunitárias; 5)uma mudança na recepção das normas e orientações da Igreja, qual seja, a síntese pessoal que muitíssimos católicos fazem quanto à vivência da moral ou ao estilo de vida e que nem sempre, ou quase nunca, corresponde ao que a Igreja determina.  E, mesmo assim, esses católicos não se sentem fora da Igreja; ou seja, estão em curso novas formas de crer às quais a evangelização necessita estar atenta.

A meu ver a V Conferência olhou de frente alguns destes desafios, mas não todos.  Creio que a concepção de evangelização que emana do documento leva em conta a perda de hegemonia do cristianismo histórico e reconfigura a evangelização em termos de qualidade e não de quantidade. Mas me parece que, em termos da urgência do diálogo, de interagir com o diferente, de incluir o excluído, a resposta ainda é um tanto tímida. Há que esperar que após a aprovação defintiiva do documento pela Santa Sé se possa trabalhar o documento e aí, a partir dele, gerar novas respostas mais ousadas para estes desafios.

IHU On-Line -  Como seria a renovação da ação da Igreja que os bispos pretendem impulsionar a partir das conclusões do documento final de Aparecida? O que faria parte desta renovação?
Maria Clara Bingemer -
Creio que a renovação que os bispos pretendem, e que está explícita no documento, implica uma Igreja onde a hierarquia desempenhe bem o seu papel de condutora do processo. Não percebo, no documento, a flexibilidade que o Concílio trouxe com o conceito de Igreja Povo de Deus. Creio que, para o documento, a liderança primeira desta Igreja renovada no continente são os bispos e o clero. O documento fala bastante, no entanto, de um laicato adulto, indispensável para que a evangelização chegue onde apenas os leigos chegam etc. E neste ponto, sim, retoma o concílio. Parece-me, no entanto, que a teologia pós-conciliar com relação à identidade e missão do laicato não está contemplada no documento, uma vez que se insiste uma e outra vez em que os leigos devem trabalhar no mundo, nas estruturas temporais etc. Aí é o seu lugar.  Isto significa que o paradigma que rege a eclesiologia do documento é aquela baseada na contraposição clero X laicato e não o que está expresso nas teologias pós-conciliares de Bruno Forte  e outros, de uma fecunda interação comunidade - ministérios. 

A meu ver, não é aberto nenhum caminho novo para o laicato, que é convocado a assumir a parte do leão da evangelização e missão continental. Ao contrário, alguns caminhos que já se encontravam abertos percebem-se, senão fechados, ao menos colocados em segundo plano. Trata-se, portanto, de uma Igreja ainda muito centrada na hierarquia e no clero essa que o documento delineia e com a qual pretende renovar a identidade e a missão católica do continente. Igualmente, o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, apesar de terem merecido bons e polpudos parágrafos do documento, se encontram algo obscurecidos pelo próprio tom do documento em si. A insistência na identidade católica do povo latino-americano como a maior das graças, as repetidas, inúmeras menções à Virgem Maria, como modelo de discípulo, de evangelizador, de missionário etc., revelam que os destinatários do documento são mesmo os católicos e não os cristãos do continente. A meu ver, isso prejudica um pouco o sonho de uma missão continental, pois para uma empreitada deste porte, seria necessário unir todas as forças cristãs do continente. E, nesse sentido, o ecumenismo desempenharia um papel importantíssimo.

IHU On-Line -  Qual é a importância de difundir na cultura de nossos povos a “fé em Deus Amor”? Como isso se aplica no dia-a-dia da Igreja e do povo de Deus?
Maria Clara Bingemer -
Parece-me que a fé em Deus Amor, coração do evangelho, é um ponto importantíssimo a ser difundido na cultura de nossos povos. O cristianismo tem o amor no centro de sua proposta e, por isso, deve propor e anunciar claramente que Deus é Amor, a fim de ser fiel à mensagem da qual é portador.  No entanto, o amor que o evangelho de Jesus Cristo propõe é um amor “infeccionado” profundamente de justiça, de paixão pela justiça, de repúdio às injustiças de toda sorte. Nesse sentido, parece-me que o amor que dimana do documento tem boas passagens nesse sentido, mas não faz disso a linha central de seu conteúdo.

Por isso, parece-me que o trabalho pós-conferência será fundamental.  Aí se terá a chance de, a partir das muitas boas passagens que tem o documento, trabalhar o dia a dia da igreja e do povo de Deus em termos da fé em um Deus amor. E esse Deus Amor ouve os clamores do seu povo e se revela como amor não idilicamente para apaziguar corações inquietos apenas, mas como perdão diante da violência, como justiça diante da pobreza e da opressão, como abertura diante do diferente e do outro, como disponibilidade para assumir os conflitos a fim de construir a paz. Creio que seria muitíssimo importante, após Aparecida, trabalhar nas comunidades cristãs católicas a fé em Deus Amor, incluindo nesta fé e neste amor todos os dramas causados pelo desamor no cotidiano da vida das pessoas e comunidades. Só assim o evangelho poderia apresentar intacto o Evangelho como Boa Notícia, sem concessões ou reducionismos.

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