Edição 224 | 20 Junho 2008

“O Documento de Aparecida realça a fé do povo simples como a grande riqueza da América Latina”

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IHU Online

O padre jesuíta Mario de França Miranda, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, analisa o documento conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, realizada em Aparecida no mês passado. Vale lembrar que França Miranda participou de toda a conferência e contribuiu, como assessor, na redação do documento. Ele encontra no documento “uma tomada de consciência mais ampla de que a época da cristandade já passou, de que a Igreja não pode se limitar a uma pastoral de manutenção do que já tem e de que, numa sociedade pluralista e secularizada, ela deve ter uma postura mais ativa na proclamação de sua mensagem”. França Miranda é professor no Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Graduado em Filosofia, também é mestre em Teologia pela Faculdade de Teologia da Universidade de Innsbruck, da Áustria, e doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana, da Itália, com a tese intitulada A autocomunicação de Deus em Karl Rahner. É autor de vários livros, entre os quais citamos Existência cristã hoje (São Paulo: Loyola, 2005). Ele concedeu uma entrevista na 186ª edição da IHU On-Line, de 26-06-2006, sobre Inácio de Loyola, os jesuítas e a modernidade; e outra na 219ª edição, de 14-05-2007, sobre a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe – V Celam.

IHU On-Line - Em que sentido podemos comparar a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe – V Celam com as conferências realizadas em Medellín, Puebla e Santo Domingo? Quais são as principais novidades de Aparecida?
Mario de França Miranda -
Eu diria, primeiramente, que se trata do dinamismo apostólico que estava subjacente aos debates e aos textos parciais durante a realização da V Conferência. Este fato significa uma tomada de consciência mais ampla, por parte do episcopado presente, de que a época da cristandade já passou, de que a Igreja não pode se limitar a uma pastoral de manutenção do que já tem e de que, numa sociedade pluralista e secularizada, ela deve ter uma postura mais ativa na proclamação de sua mensagem. Esta idéia de que toda a Igreja é missionária afetará diretamente as pastorais, as estruturas e o posicionamento dos grupos sociais dentro da própria Igreja. Se medidas serão tomadas, para que mudanças sejam realmente efetuadas, já é uma outra questão. Outra novidade, pela ênfase que recebeu, concerne ao laicato. Havia uma concordância tácita de que a ação pastoral de leigos e leigas será decisiva para o futuro. Assim, boa parte do texto final é dedicada à identidade do discípulo de Jesus Cristo, à sua formação, à sua missão e à sua inserção na Igreja. Ainda poderíamos mencionar a emergência de etnias minoritárias (indígenas e afrodescendentes) como sujeitos na sociedade e no interior da comunidade eclesial, bem como a preocupação com a família, com o meio ambiente, com a Amazônia, com os migrantes.

IHU On-Line - Quais seriam, de maneira sintética, as três grandes luzes de Aparecida e quais as três grandes sombras?
Mario de França Miranda -
Central mesmo no Documento de Aparecida é o personagem “discípulo missionário”. Já presente no próprio motivo da V Conferência, a saber, “discípulos missionários de Jesus Cristo para que nossos povos nele tenham vida”, estará também presente nos debates nas subcomissões, nas comissões e nos plenários. Outro ponto positivo me parece ter sido a maior liberdade de expressão, o diálogo mútuo, o acolhimento da diversidade, que explicam que a riqueza seja a variedade de pontos de vista presentes no documento. Não considero sombra, mas teria gostado que tivesse havido uma maior consciência por parte dos bispos da importância da Igreja Latino-americana para a Igreja Universal. Somos diferentes, temos algo novo a oferecer. Devemos lutar por uma configuração eclesial mais próxima a nossos povos, pois temos uma religiosidade rica e que já não se encontra mais em outras partes. Neste sentido, poderia ter sido assinalado, ao lado da ênfase dada à eucaristia na vida cristã, também a crônica falta de sacerdotes e as comunidades desprovidas de padres. Outra deficiência se deu nas cristologias presentes no documento, que recebem acentuações diversas conforme a parte onde aparecem.
 
IHU On-Line - O texto do documento final aponta uma retomada do método ver–julgar–agir. Brevemente, como isso aparece no documento? O que faz parte do ver, do julgar e do agir a partir de Aparecida? Qual é a pertinência deste método hoje?
Mario de França Miranda -
Sem dúvida alguma, a grita dos episcopados pedindo a volta do método ver, julgar e agir, em resposta ao documento de preparação, fez com que, na “Síntese” destas reações, o método fosse restabelecido, embora com iluminações introdutórias bíblicas em cada uma de suas partes. Também em Aparecida houve tensões com relação a este método, que exigiram mudanças nas várias redações. Ele aparece nas três partes do documento final. Primeiramente, um olhar qualificado, de discípulos missionários sobre a realidade social e sobre a Igreja; em seguida, a descrição do que constitui o discípulo missionário; e, numa terceira parte, sob o tema amplo da vida, a parte que corresponderia ao agir. Ponho no condicional, pois, também aí, se encontram elementos doutrinais, explicativos, teóricos. O método continua válido porque a Igreja não é um fim em si mesma, mas está a serviço do Reino, devendo levar à sociedade a salvação de Jesus Cristo. Como poderá ela fazê-lo a não ser com um conhecimento adequado desta sociedade?

IHU On-Line - Como seria a renovação da ação da Igreja que os bispos pretendem impulsionar a partir das conclusões do documento final de Aparecida? O que faria parte desta renovação?
Mario de França Miranda -
A renovação da Igreja será uma difícil tarefa para os responsáveis. Implica o que se chama no documento de uma conversão pastoral. Esta diz respeito primeiramente à mudança de mentalidade por parte dos bispos, padres, religiosos e leigos/as. Isso não acontece da noite para o dia, pois exige tempo, paciência e constância. Mas ela concerne também às estruturas eclesiais que deverão possibilitar maior comunhão e participação. Se os participantes da V Conferência deixaram claro no texto que anseiam por um laicato consciente e adulto, então se faz mister tornar possível o surgimento do mesmo, o que não acontecerá sem mudanças. Naturalmente, estas não aparecem tão concretamente no documento como seria de se desejar. E a razão é simples. As situações existenciais, os contextos socioculturais, os desafios prementes, são realidades diversas conforme os países. Neste sentido, devemos ser realistas. Jamais um documento voltado para todo este continente latino-americano satisfará plenamente nossas aspirações, pelo simples fato de que os outros países não são o Brasil.

IHU On-Line - Aparecida confirma a opção preferencial pelos pobres e excluídos. De que forma essa opção será posta em prática?
Mario de França Miranda -
Aparecida tem um belo texto sobre a opção pelos pobres e trata positivamente das Comunidades Eclesiais de Base. Contudo, impressionou-me mais o tratamento concedido à religiosidade popular, o que é talvez inédito em nossa tradição. Tal tratamento emerge em várias partes do documento e, quando é abordado explicitamente, constitui um de seus mais belos textos, realçando a fé do povo simples como a grande riqueza da América Latina.

IHU On-Line - Antes da realização da V Conferência houve a Admoestação a Jon Sobrino. Como pode ser descrita a recepção da Teologia da Libertação em Aparecida?
Mario de França Miranda -
Embora alguns participantes ainda estivessem presos ao debate de vinte anos atrás, que via na acentuação do social a negação do espiritual (ou doutrinal) e vice-versa, creio que a alocução inicial de Bento XVI e o pensamento da maioria concordava que a fé cristã tem necessariamente uma dimensão social, com um claro imperativo ético por uma sociedade mais justa. Os aplausos ouvidos nas reuniões plenárias quando se defendia a causa dos mais pobres confirmam sem mais o que afirmamos.

IHU On-Line - Que rosto de Igreja emerge da V Conferência? Quais são as suas principais características?
Mario de França Miranda -
Só o futuro poderá responder a esta pergunta, pois o rosto da Igreja vai depender, e muito, dos que nela têm maior responsabilidade, como também da consciência e empenho de todos nós.

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