Edição 223 | 11 Junho 2007

“Paulo Freire nos impulsiona na construção utópica de um mundo melhor”

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IHU Online

Nomeada a sucessora legal dos direitos de Paulo Freire, Ana Maria Araújo Freire, conta que “vivia com ele uma história de vida plena em todas as dimensões”. Em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, ela destaca que dar continuidade a obra dele foi uma tarefa difícil. “Foi um desafio enorme recolher documentos, analisá-los e organizá-los, e rememorar décadas de nossas vidas, pois conheci Paulo antes de completar 4 anos de idade”. Assim, Ana Maria Araújo Freire, especialista em seu pensamento, registra a importância de seu legado e trajetória pessoal.

Na conversa que teve com a IHU On-Line, Ana se refere, igualmente, ao livro de crônicas que escreveu sobre seu marido, Nita e Paulo: crônicas de amor (São Paulo: Olho D’Água, 1998). Desde 1997, ela vem organizando os livros de Freire.

Nita, apelido carinhoso pelo qual também é conhecida, nasceu em Recife. Há décadas vem se dedicando ao estudo da História da Educação Brasileira, focada, sobretudo, na pesquisa dos condicionantes históricos da produção do analfabetismo. É mestra e doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). É autora, também, de Analfabetismo no Brasil: da ideologia da interdição do corpo à ideologia nacionalista, ou de como deixar sem ler e escrever desde as Catarinas (Paraguaçu), Filipas, Madalenas, Anas, Genebras, Apolônias e Grácias até os Severinos (3ª ed. São P aulo: Cortez, 2001) e Centenário do nascimento: Aluízio Pessoa de Araújo (Olinda: Edições Novo Estilo, 1997).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como a senhora vê esses dez anos sem a presença física de Freire? Muitas saudades? Como percebe a lembrança, estudos e celebrações produzidas sobre e para ele?
Ana Maria Araújo Freire -
Quando a médica afirmou que Paulo não tinha resistido aos diversos enfartes que sofreu na UTI do Hospital Albert Einstein, em São Paulo , na madrugada de 02 de maio de 1997, senti imediatamente uma forte comoção: o que faria sem ele? Seria possível viver sem ele? Perguntava-me sentindo profundamente a inutilidade de permanecer viva. Foi um luto muito difícil, pois vivia com ele uma história de vida plena em todas as dimensões que um homem e uma mulher podem viver na construção amorosa do cotidiano de suas vidas. Foi muito difícil perceber que a continuidade de seus pensamentos e obras dependia, em grande parte de mim, pois eu tinha sido nomeada por ele a sucessora legal de seus escritos.

Este fato me levou a restabelecer a vida. Pouco a pouco, venho publicando seus escritos inéditos, monitorando grande parte de sua obra, cujos direitos autorais são meus. O que deu significado ao meu novo viver foi o de fazê-lo sem a presença física dele, mas, ao mesmo tempo, com ele o tempo todo ao meu lado. Vejo as celebrações a Paulo como se todo o mundo estivesse lhe dizendo: “Paulo, nós não o esquecemos, e hoje, mais do que no momento de sua partida precisamos de sua pedagogia humanista-libertadora; de sua luta crítica e lúcida contra o neoliberalismo e a globalização da economia, que vem nos esmagando e oprimindo com seus ditames da ‘ética do mercado’. Precisamos de você, Paulo, com seu exemplo de honradez, de coerência e de generosidade, que pode formular a ética da vida e nos impulsiona no sentido da construção utópica de um mundo melhor, mais justo, autenticamente democrático”.
 
IHU On-Line - Como foi sua união com ele? De tantas lembranças da convivência, o que a senhora destacaria?
Ana Maria Araújo Freire -
Minha união com Paulo foi pautada pelo respeito, pela admiração, pela cumplicidade, pela fascinação e pela confiança recíprocos. Destaco exatamente essas coisas, pois foram elas que possibilitaram que o nosso casamento tivesse se tornado um tempo de amor, de paixão, de amizade e de sexualidade plenamente vividos.
 
IHU On-Line - Qual foi o principal ensinamento ou mensagem que ele lhe deixou?
Ana Maria Araújo Freire -
Paulo me deixou muitos exemplos. Mencionaria apenas dois: o de suportar mais as fraquezas alheias, as fragilidades humanas, como ele preferia dizer, e o de ter mais tolerância com os muito diferentes de mim.
 
IHU On-Line - Além de um educador importante no desenvolvimento de estudos na área de educação, quem foi Paulo Freire para você?
Ana Maria Araújo Freire -
Para mim, Paulo foi o homem que me deu segurança, sem jamais me ter dado prescrições ou ordens a seguir, daí ter me possibilitado criar a minha autonomia verdadeira; homem que me deu afeto e amor, que me ajudou a crescer intelectualmente, mostrando-me, de modo encantador e fascinante, o mais bonito que existe nos outros homens, nas mulheres e no mundo.

Na vida pública, ele não pode ser apenas “um educador importante no desenvolvimento de estudos na área de educação”. Paulo é o maior pensador brasileiro. Ao lado de Rousseau , segundo Enrique Dussel , o maior pedagogo de toda a história da humanidade. Sua obra e sua práxis influenciam as mais diversas ciências, filosofias e mesmo religiões.
 
IHU On-Line - Paulo Freire gostaria de ser lembrado de que maneira?
Ana Maria Araújo Freire -
Na biografia que escrevi, recentemente publicada, Paulo Freire: uma história de vida (Indaiatuba: Villa das Letras, 2006), transcrevo, logo na Introdução (p. 27), o que ele mesmo disse, ao ser perguntado, por Edney Silvestre, em Nova Iorque, poucos dias antes de sua morte:

“- Professor, como o senhor quer ser lembrado?

- (...) Eu gostaria de ser lembrado como um sujeito que amou profundamente o mundo e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas, a vida”.
 
IHU On-Line - O que ele acharia dos estudos produzidos sobre sua obra, já que a partir dela surgiram novos trabalhos e releituras?
Ana Maria Araújo Freire -
Paulo morreu sabendo de sua importância para o mundo, assim que sua obra vinha sendo citada, estudada e que novas leituras dele estavam sendo feitas, deste os anos 1970.

Se ele, do Alto onde está, puder ver o que se passa entre nós, não estranharia nem os inúmeros trabalhos acadêmicos sobre ele nem as práxis dos movimentos populares iluminadas por sua teoria. E nem, tampouco, as inúmeras homenagens feitas a ele neste século.

Paulo algumas vezes me disse: “Muitos não viram, em vida, seu trabalho reconhecido. Eu não: venho recebendo testemunho amoroso das coisas que tenho feito, pensado e escrito”.
Ele tinha orgulho disso, um orgulho bem comportado e bem vivido. Sem soberba e sem petulâncias. Com muita humildade e comedimento.
 
IHU On-Line - Como foi escrever a biografia de seu marido, amigo e colega?
Ana Maria Araújo Freire -
Foi um desafio enorme recolher documentos, analisá-los e organizá-los, e rememorar décadas de nossas vidas, pois conheci Paulo antes de completar 4 anos de idade, dando a elas dimensão da grandeza e inteireza dele, tanto aquelas que remetem a sua vida privada quanto aquelas que relembram o intelectual humanista e ativista da libertação.

Depois de 7 anos de esforços e muita dedicação para escrevê-la, sei o quanto foi árduo o meu trabalho intelectual, e, muitas vezes, desgastante a recordação de momentos de intensa amorosidade que vivemos juntos por 10 anos. Entretanto, sinto-me plenamente gratificada por tê-la escrito.

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