Edição 223 | 11 Junho 2007

“Para negar autoritarismos, temos nos tornado freirianos”

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IHU Online

Para o filósofo Gomercindo Ghiggi, docente na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), os Fóruns Estudos: Leituras de Paulo Freire reúnem “diversos pedacinhos, vários fragmentos e pessoas que refletem e atuam no mundo também a partir de referências políticas e pedagógicas de Freire”. Segundo ele, os temas discutidos por Paulo Freire “expressam as urgências do nosso tempo” e destaca que seu texto “fala do presente, aprendendo com o passado, divisando o futuro na forma de utopia”. As idéias podem ser conferidas na íntegra a seguir, na entrevista exclusiva, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Pelotas (Ucpel), Ghiggi apresentou a monografia Implicações antropológicas na pedagogia de Paulo Freire. É especialista em Pesquisa Educacional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Fenomenologia da Educação, pela UFPEL, e em Filosofia da Educação, pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Cursou mestrado em Filosofia na PUCRS e doutorado em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com a tese A pedagogia da autoridade a serviço da liberdade: diálogos com Paulo Freire e professores em formação.

É um dos autores de Implicações antropológicas na Filosofia de Paulo Freire (Pelotas: Seiva Publicações, 2004) e um dos organizadores de Diálogo crítico-educativo. Um debate filosófico - no prelo para 2007 (Pelotas: EDUCAT, 2007). Escreveu A Pedagogia da Autoridade a serviço da liberdade: diálogos com Paulo Freire e professores em formação (Pelotas: Seiva Publicações, 2002). Atualmente, Ghiggi é professor do PPGE da UFPEL.

IHU On-Line - Você acompanha os “Fóruns Estudos: Leituras de Paulo Freire” desde sua primeira edição em 1999. Poderia descrever um pouco de como funcionam esses Fóruns? Quais as novas leituras que surgiram a partir da obra de Freire?
Gomercindo Ghiggi -
Sim, participei de todos os “Fóruns de Estudos: Leituras de Paulo Freire”, dos nove que aconteceram. O próximo estará sendo realizado em maio de 2008, na Unisinos, ocasião na qual celebraremos os 10 anos de atividades do Fórum.

De minha parte, tenho afirmado que o Fórum tem reunido pessoas que encontram na biobibliografia de Paulo Freire referências importantes para a realização de suas tarefas de estudo e pesquisa e, em geral, seus trabalhos, escolares ou não. Do Fórum tem participado pessoas que têm mantido Freire como fonte vivificadora para pensar o mundo e organizar práticas de produção da vida. Além disso, penso que há uma pergunta que tem organizado nossas vidas no Fórum: o que tem levado pesquisadoras e pesquisadores, anualmente, a participar do Fórum? Temos defendido que nos encontramos no Fórum e retomamos Freire porque sua teoria político-pedagógica ganha importância e vigor, em especial num tempo não raro tomado por incertezas e vazios. São razões as mais diversas que têm nos reunido, a cada ano, sem notórios conferencistas, através do diálogo crítico, a expressar nossas convicções e achados em nossos cotidianos investigativos, sempre no Fórum. E o Fórum, assim, ganha sentido, pois foi criado não para ser oposição a qualquer outra instituição, mas para reunir diversos pedacinhos, vários fragmentos e pessoas que refletem e atuam no mundo também a partir de referências políticas e pedagógicas de Freire.

IHU On-Line - O que significa o Fórum para as práticas educativas e também para o estudo de Freire?
Gomercindo Ghiggi -
Retomando a trajetória do Fórum e nela a minha própria trajetória, e colocando-me ante a tarefa de expor indagações acerca da sua importância para as “práticas educativas”, assim como outras e outros o fazem, pergunto novamente: por que mais um Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire e por que (ainda) Paulo Freire? Temos buscado respostas e percebido que um expressivo tempo das nove edições do Fórum tem sido justamente reservado para responder a perguntas como a acima formulada. Respostas? Sabemos? Tenho percebido que sabemos algumas respostas ainda bastante guardadas nos nichos investigativos de cada um de nós, é provável. Nos Fóruns, temos percebido que Freire tem sido refletido para organizar imperativos acadêmicos e sociais que põem em cena compromissos e solidariedades, que passam a compor o trabalho cotidiano em nossas respectivas instituições. Tomando o dito como desafio, é possível indicar tarefas que o Fórum tem assumido, relativamente ao movimento de pensar nossas práticas educativas, juntar descobertas, reflexões pessoais e escritos de autores diversos, com as diversas leituras de realidade que se apresentam, em diálogo com Freire. Temos afirmado, por exemplo, que o texto freiriano é vigoroso e complexo, embora, é provável, demasiadamente absorvido pela devoradora porta do senso comum. O principal, afirmamos, é que Freire é um texto que fala do presente, aprendendo com o passado, divisando o futuro na forma de utopia, algo que é imperativo realizar, enquanto condição de necessidade. Por isso, buscamos entendê-lo, lendo realidades, (1) fazendo falar nossas próprias subjetividades, (2) conversando com pessoas com as quais convivemos cotidianamente, e (3) lendo livros, artigos e autores diversos que ainda têm buscado nesse autor referências para pensar o que pensam e o que fazem.


Novas leituras

As práticas educativas das pessoas que se encontram no Fórum ganham destaque quando: (1) são sistematicamente expostas, (2) são problematizadas pelo diálogo crítico, e (3) reconfiguram-se para continuar, não como meras repetições do mesmo, mas recriações do mundo vivido e partilhado. Assim, temos apostado que, com Freire, através dos Fóruns, buscamos a explicitação de evidências que dêem visibilidade à idéia de que as elites, que organizam e distribuem o poder institucional, têm mecanismos de formação para a geração de instrumentos de manutenção e consolidação do modelo em andamento. E é por isso que ainda refletimos nossos trabalhos com Freire: porque ele é um filósofo que dá consistência à pedagogia e fomenta práticas coletivas que possibilitam sustentar a idéia de que a educação pode servir à transformação; porque constrói e teoriza a prática, não reduzida à experiência imediata, combatendo absolutismos dogmático-autoritários e relativismos licenciosos; e porque quer que seu pensamento seja recriado, não almejando contar com discípulos ou seguidores, mas recriadores curiosos de suas próprias curiosidades. O Fórum, temos afirmado, tem provocado incursões para desbanalizar, quem sabe, a própria compreensão licenciosa da Pedagogia da Libertação. Retomamos Freire porque é um pensador que, tomando as vertentes teórico-filosóficas da dialética e da fenomenologia, busca superar o relacionamento oposto entre teoria e prática, desafiando e propondo a desdogmatização (igualmente) do estatuto de verdade da pedagogia crítica. Reunimo-nos aqui, no Fórum, em torno e a partir de Freire, porque o autor busca refundamentar a educação em sua base pedagógica, epistemológica, política, ética e estética. É assim que Freire, contra erudições em torno da negação da possibilidade da conscientização, é um pensador que mexe com práticas educativas diversas, talvez porque seja um educador que continua gravando no coração de muitas pessoas referências de esperança e inconformismos permanentes em relação à injustiça.

IHU On-Line - Que temas da teoria pedagógica de Paulo Freire são relevantes hoje?
Gomercindo Ghiggi -
Penso que as questões que Freire aborda nas Cartas Pedagógicas, publicadas no Livro Pedagogia da Indignação (São Paulo: Ed. UNESP, 2000), bem expressam as urgências do nosso tempo. O tema central, expresso no próprio título, é o tema da indignação: “Cinco adolescentes mataram hoje, barabaramente, um índio pataxó, que dormia tranquilo, numa estação de ônibus, em Brasília. Disseram à polícia que estavam brincando” - assim inicia o texto de Freire. A indignação com a “brincadeira” de jovens, que já não sabem o que fazer com tanta liberdade que presumem ter, vai apontando para os emergentes temas do nosso tempo, tanto para a escola como para a educação não formal e, muito particularmente, para a sociedade e para os nichos familiares onde se articulam os jovens e adolescentes que à escolarização chegam, muito porque a instituição escolar é, compulsoriamente, o lugar e o tempo das aprendizagens, que, por sua vez, hão de garantir a assunção ao regramento necessário à “boa convivência social”. Conforme afirma o próprio Freire, desdobrando a sua indignação, a mesma é central à sociedade, à família e à escola, tomando a ética como referência central. Portanto, os temas da indignação, das marchas, da ética, da responsabilidade, da imperativa ação a favor da mudança e não apenas da atuação a favor de “ajustes” no sistema, da solidariedade etc. têm, na teoria pedagógica de Freire, destaque, não apenas para a escola, como dito, mas, centralmente para atuar, radicalmente, a favor de uma sociedade justa. Na minha tese (A Pedagogia da Autoridade a serviço da liberdade: diálogos com Paulo Freire e professores em formação. Pelotas: Seiva Publicações, 2002), abordei, em amplo diálogo com Professores em Formação Inicial, “confrontos teóricos, centralmente produzidos a partir dos conceitos autoridade e liberdade, fecundados por reflexões que cercavam, naquele momento, temas como: ética, competência, poder, autonomia, conscientização, esperança, disciplina, diálogo e formação”.

IHU On-Line - Você se ocupou com a questão da liberdade e da autoridade em Freire. Considerando a sociedade individualista que se apresenta atualmente, como seria a educação pela liberdade de acordo com os ensinamentos de Freire?
Gomercindo Ghiggi -
A autoridade em relação ao conhecimento (I) constitui-se a partir da dimensão básica da atividade pedagógica: a relação dá-se sempre entre (1) pessoas que carregam consigo capital cultural de origem, com capacidade para (2) exposições conceituais primárias. A tarefa dirige-se à (3) sistematização desse capital cultural, (4) à investigação e ao confronto permanentes com outros saberes e teorias. A autoridade moral (II) toma como solo básico a inserção no mundo das pessoas envolvidas e a fundamental dimensão ontológica do homem à humanidade. Tendo presente o projeto de sociedade justa para todos, a tensão histórica que Freire traz para o seu texto diz respeito à qualificação das ações postas como necessárias no tempo presente e ao imperativo do devir que deve realizar-se. A tarefa seguinte da autoridade, profundamente coerente com a prática cotidiana, é a geração de condições, pelos sujeitos envolvidos em formação, à disponibilização ao diálogo, à crítica e a trocas, para olhar o mundo para além do que há, em determinado momento histórico, de imediato e previsto, orientando axiologicamente movimentos humanos. A tarefa, não separada da epistêmica, é qualificar a análise a partir do senso comum, do mundo já produzido. Freire propõe confrontos axiológicos como tarefa da autoridade docente. A autoridade pedagógica (III) deve garantir condições a todos à exposição do que sabem, exigindo o máximo de cada um. Deve propor e ajudar a organizar ações coletivas que possibilitem trocas regradas e provoquem a produção de referências para confrontos entre comportamentos individuais e sociais. A autoridade política (IV), enfim, tem a tarefa de organizar relações entre educação, comunidade e sociedade, de tornar visíveis e disponíveis, em sala de aula, elementos contextuais que dão origem às referências com as quais a sociedade se organiza. A elaboração de tais referências contribui para a identificação de construções culturais evitáveis, não pouco expostas como inevitáveis.

IHU On-Line - Ainda sobre o mesmo assunto, como é possível na sociedade contemporânea, exercer a autoridade sem cair em autoritarismo?
Gomercindo Ghiggi -
Tenho afirmado que, para negar autoritarismos, muitos temos nos tornado freirianos. E Freire, de fato, tem representado mais liberdade, possibilidades de instauração de processos de produção da libertação também a partir da educação, mais democracia etc. Mas o nosso reencontro com Freire, pelo Fórum, por exemplo, dá-se em função da busca de outra leitura: há um projeto político-pedagógico que se impõe e legitima-se desde a necessidade da avaliação ética e de juízo de valor possíveis dos projetos, hoje particularmente presentes na defesa, por exemplo, da diferença, quando a reflexão isola tal discussão do debate sobre igualdade. Ocorre que Freire fala da realidade que educadores enxergam com os olhos, escutam com os ouvidos e tocam com as mãos; fala da realidade que educadores experimentam, e sentem com o coração. Freire fala de novo conceito de autoridade, que deve ser capaz de superar autoritarismos e licenciosidades; de novo conceito de autonomia, que nega e ultrapassa a concepção requerida pelos atuais modelos de produção e consumo e que vai ao encontro da produção crítica da cidadania; enfim, de novo conceito de liberdade, não abstrato, formal ou análogo a livre-arbítrio.

IHU On-Line - Qual é a contribuição de Paulo Freire para a formação de professores? Como o senhor avalia, de maneira geral, os novos educadores do Brasil? Eles estão preparados para trabalhar com a diversidade de alunos que estão nas salas de aula das escolas brasileiras?
Gomercindo Ghiggi –
Inicialmente, quero afirmar a importância das políticas de formação (aqui formação toma o sentido original de modo de formar, constituir; de criação, construção, constituição) que avançam no Brasil. Os caminhos são os mais diversos, mas há vigorosos movimentos no sentido de propiciar à educadora e ao educador alguma condição para que possam, no cotidiano do seu trabalho, refletir o que fazem. Penso que Freire, nesse contexto, não apenas ajuda repensar práticas, mas provoca docentes a se tornarem pesquisadores de si mesmos e de suas próprias práticas educativas, e, como tal, possam participar de sua própria formação. Freire, assim, é um conceito que toma importância na formação de professores. E eles sentem-se seguras e seguros sem autoritarismos e licenciosidades quando, admitindo ignorância, aceitam inserção em processos de formação mediante o desafio com os quais se deparam. Passam a entender e a assumir a tarefa docente como autorização que recebem e conquistam para trabalhar formando pessoas para a vida. As professoras, aceitando a mediação conceitual e dialogal, assumem-se portadoras de experiências que podem ser socializadas, porque escutam outras experiências, o que as torna “gente fortificada”. Desafiadas pelo diálogo permanente, as professoras vão tornando curricular o conhecimento cotidiano que produzem a partir da imersão no “mundo cultural” dos alunos e das comunidades, lá onde se localiza o seu ethos, produzindo tanto alternativas à violência pela negação à negação da cultura de origem das pessoas envolvidas quanto lugares e tempos político-epistemológicos sustentadores de projetos de resistência e produção de vida mais qualificada.

 

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