Edição 340 | 23 Agosto 2010

Nem melhor, nem bem: viver em plenitude

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Moisés Sbardelotto | Tradução de Moisés Sbardelotto

O Sumak Kawsay é conjugado no plural. Para os povos indígenas, a plenitude é construída na comunidade, diferentemente do culto ao individualismo próprio do capitalismo, defende a bióloga equatoriana Esperanza Martínez

Já dizia Thomas Merton: “Nenhum homem é uma ilha”. Vivemos em comunidade, sejam elas locais ou nacionais. Mas, acima disso, somos filhos de uma mesma Mãe Terra, a Pachamama, como a chamam os índios andinos. Em outras palavras, pertencemos a uma comunidade mais ampla, que abrange todas as comunidades: a natureza.

Por isso, um desafio ético que a situação atual nos coloca é retomar os vínculos com a terra e a natureza. Nesse sentido, os índios andinos também oferecem uma outra perspectiva, formulada no conceito Sumak Kawsay, que, em português, se aproxima de Bem Viver. Mas, para a bióloga equatoriana Esperanza Martínez, “o Bem Viver é mais do que viver melhor, ou viver bem: o bem viver é viver em plenitude”.

É possível fazer isso hoje, dentro de nossas condições sócio-culturais? “Como diria Bolívar Echeverría – afirma Martínez –, ‘viver no e com o capitalismo não significa viver para e pelo capitalismo’”. Por isso, defende a estudiosa, precisamos reconhecer que, muito acima do dinheiro, nossa riqueza é a própria natureza: precisamos aprender “a viver na e com a natureza e para e por ela”, afirma, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Esperanza Martínez é bióloga equatoriana e fundadora da ONG ambiental Acción Ecológica, com sede em Quito, no Equador. Ela também é especialista em auditoria ambiental e petróleo, tendo co-fundado a Oilwatch, uma rede internacional de organizações que defende os ecossistemas delicados e os direitos das populações indígenas contra o impacto da extração de petróleo. No ano 2000, Martínez recebeu o prêmio Casa de la Cultura Ecuatoriana e, em 2002, o Prêmio Internacional Alexander Langer, concedido pela fundação italiana homônima, que, dentre outras coisas, homenageia pessoas que defendem os direitos dos grupos minoritários.

Como consultora da Assembleia Constituinte do Equador em 2008, Martínez trouxe para o debate as questões do meio ambiente e dos direitos humanos para o texto da nova Constituição. Em janeiro deste ano, Martínez foi uma das conferencistas do simpósio latino-americano Pachamama, pueblos, liberación y sumak kawsay, promovido pela Universidad Andina Simón Bolívar, do Equador.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o Bem Viver (Sumak Kawsay) nos ajuda a compreender e a viver uma nova relação com a terra e com a natureza?

Esperanza Martínez – A proposta do Bem Viver provém de um sujeito histórico, cujos vínculos com a terra e a natureza não estão quebrados, mesmo apesar de todo o sofrimento histórico, do despojo e da destruição da natureza: os índios. O bem viver, para eles, é mais do que viver melhor, ou viver bem: o bem viver é viver em plenitude. De fato, o termo utilizado não é alli kawsay (alli = bem; kawsani = viver), mas sim Sumak Kawsay (sumak = plenitude; kawsani = viver). Só o fato de nos atrevermos a pensar que a meta é a plenitude e que a plenitude supõe relações de harmonia, não de hostilidade; condições de saúde, não de doença; relações de solidariedade, não de competição, nos leva a repensar a nós mesmos com a natureza e a superar a ideia cultivada na modernidade e santificada pela ciência ocidental (a religião) de que a natureza é algo hostil, que devemos dominar para sobreviver, e que aqueles que sobreviverão sempre serão os mais fortes.

Duas coisas são centrais no Bem Viver: o sentido de pertença à natureza e o sentido da comunidade.

IHU On-Line – A senhora diz que há “uma grande diferença em como a sociedade capitalista se aproxima da natureza e como os indígenas fazem isso”. Em traços gerais, quais são essas diferenças?

Esperanza Martínez – Para os índios, a natureza é um sujeito, não um objeto. Os índios reconhecem que a natureza está viva e têm um sentido de pertença, reconhecem a si mesmos como filhos da Mãe Terra (a Pachamama). Têm uma maior compreensão sobre os ciclos da vida das diferentes espécies, e por isso aplicam diferentes práticas e restrições. Sua visão de longo prazo compreende o ciclo da vida.

Para a sociedade capitalista, a natureza é um objeto de propriedade que temos o direito de explorar e destruir para o nosso benefício exclusivo. Importam apenas os ganhos rápidos. Acredita-se que é a tecnologia que irá reparar qualquer problema. E, embora haja respostas de preocupação pelos impactos e as desordens ambientais, estes continuam sendo vistos como algo distante.

IHU On-Line – Na América Latina, vivemos em regiões com uma natureza muito rica e abundante. Como o Bem Viver compreende as noções de abundância e acumulação?

Esperanza Martínez – Na América Latina, encontra-se uma diversidade de ecossistemas muito amplos, muitos dos quais são conservados graças ao fato de serem territórios indígenas, outros foram degradados ou diretamente destruídos, principalmente pela exploração de minerais e petróleo, que são as riquezas naturais mais cobiçadas, porque são justamente as que geraram abundância e acumulação.
 Sob o paradigma capitalista na América Latina, estamos sentados em um saco de ouro. Seria estupidez não explorá-la. No entanto, sob o paradigma do Sumak Kawsay, a riqueza é a própria natureza, a biodiversidade com as infinitas possibilidades de interagir com ela. De todas as formas, foi filtrado, sim, em todos os níveis, inclusive em muitos setores indígenas, o sentido de riqueza e pobreza próprias do capitalismo, porque, quando se fala desses termos, a referência imediata é o dinheiro. O Sumak Kawsay permite ir além dessas noções – riqueza e pobreza –, porque o fato é que a geração da riqueza provoca pobreza para a maioria. Inclusive a noção de explorar a natureza para pagar a dívida social acaba por destruir as bases de subsistência da população local e, portanto, acaba por aumentar os sujeitos dessa mesma dívida social. É um círculo vicioso que se quebra quando são colocados no centro das decisões a sustentabilidade, a saúde, a solidariedade, isto é, o Sumak Kawsay.

IHU On-Line – A modernidade capitalista e a cultura ocidental trouxeram às nossas regiões grandes mudanças no campo e à agricultura praticada pelos povos originários. Como entender a relação com a terra a partir do Bem Viver?

Esperanza Martínez – A produção de alimentos é a atividade prioritária dos povos e dos países, e é verdade que a modernidade introduziu técnicas e produtos que desempenharam um papel na alimentação e na agricultura. Na maioria dos casos, as empobreceram, e principalmente perdeu-se o controle sobre o processo. As sementes híbridas, os agroquímicos, as monoculturas determinaram que se perdesse a soberania alimentar. O mais grave é que são desprezadas e desconhecidas as tecnologias de culturas que fizeram avanços impressionantes nessas questões: o manejo da água, o cultivo em terraços, a associação e a rotação de cultivos, a domesticação das plantas são invenções geniais dos índios.

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