Edição 222 | 04 Junho 2007

“Somente o conhecimento do coração abre as portas ao mistério de Deus”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

“Para Rûmî o intelecto, ou seja, a razão de filósofos e doutores da lei, é um instrumento imperfeito de conhecimento. Somente o conhecimento do coração abre as portas ao mistério de Deus.” A afirmação é de Carlo Saccone, da Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Padova, da Itália.

Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, Saccone afirma que “quando Rûmî louva Deus, consegue fazê-lo com palavras de grande simplicidade e imediatez, que conseguem transmitir-nos grande parte de sua extraordinária emoção mística, o vivo sentimento de comunhão com a natureza e com todas as criaturas. A este propósito, Rûmî recorda um pouco da poesia de São Francisco, sobretudo do sentimento de amor universal”. Carlo Saccone é autor de vários livros, entre os quais citamos I percorsi dell'Islam Dall'esilio di Ismaele alla rivolta dei nostri giorni (Padova: Edizioni Messaggero Padova. 2. ed., 2003).

IHU On-Line - Qual é o significado e a importância de Rûmî para a mística?
Carlo Saccone –
Certamente, ainda é grandíssima na mística dos países muçulmanos. As obras de Rûmî, escritas originariamente em persa, foram traduzidas para o turco, para o árabe e para outras línguas da ecúmena islâmica, sendo estudadas e amplamente meditadas, desde a Idade Média até hoje. No Ocidente, somente no século XX chegou-se a traduções integrais (inglesas, francesas e recentemente também em italiano) do Cancioneiro e do Poema Espiritual , mas sua difusão é ainda limitada ao restrito círculo dos estudiosos de literatura persa, ou de religiões e místicas comparadas, e aos apaixonados pela mística oriental.

IHU On-Line - Que importância foi atribuída por Rûmî ao diálogo inter-religioso? 
Carlo Saccone -
O diálogo inter-religioso é uma conquista contemporânea, muito recente. Na época de Rûmî, este conceito não existia nem no modo cristão nem no modo muçulmano. Com uma diferença, porém. O Corão admite que as religiões fundadas por um profeta e que se baseiem numa Sagrada Escritura ou num Livro Revelado sejam válidas. Assim, cristãos, judeus, zoroastas  (mais tarde até os hindus), já no Corão, são declarados pertencentes à “Gente do Livro” (ahl al-kitab): caso creiam em Deus e no Último Dia e façam obras boas, poderão se salvar. Os Cristãos, pelo contrário, ainda hoje afirmam o princípio nulla salus extra ecclesiam [nenhuma salvação fora da igreja]: embora um tanto mitigado nos últimos tempos, este princípio – que pelo menos contém um germe de intolerância – jamais foi desmentido.

Com freqüência, encontra-se na poesia sufi  a idéia de que quem ama sinceramente Deus, não importa se cristão ou muçulmano, será também amado por Deus e salvo. A idéia foi afirmada desde os tempos de Hallaj  (+922), e é retomada por muitos sufi até o grande Ibn ‘Arabi, o místico andaluz que viveu no século XIII, e continua a ser corrente em várias confrarias. Também Rûmî compartilha desta idéia, e, em seu cancioneiro, são freqüentes imagens e personagens cristãos (a cruz, Jesus, Maria). Particularmente cara à poesia sufi e, portanto, também a Rûmî, é a figura de Jesus, que sempre é trazido como modelo de pobreza e santidade. Este último aspecto, a veneração de Cristo entre os sufi (e também no Islã em geral), é bastante desconhecido no Ocidente, o qual, no entanto, desde a Idade Média, sempre tratou com grande superficialidade a figura de Maomé, fundador do Islã. Enquanto os monges sufi veneravam e “imitavam” a pobreza de Cristo, os nossos monges, na Idade Média, escreviam com freqüência obras polêmicas, repletas de ódio, insultos e ofensas gratuitas a Maomé, as quais, ao lê-las hoje, nos fazem sentir vergonha... Para um diálogo inter-religioso mais eficaz, dever-se-ia rever este passado. Rûmî pode ser uma útil leitura também neste sentido.

IHU On-Line - Por que a poesia de Rûmî é tão admirada? 
Carlo Saccone -
Tantos poetas persas da Idade Média se exercitaram, sobretudo, no panegírico, ou seja, nos louvores do príncipe ou rei, de quem dependiam economicamente e que, por isso, eram generosamente gratificados com louvores efusivos e títulos hiperbólicos. Este gênero de poesia é de difícil degustação para o leitor contemporâneo; igualmente o é a poesia narrativa (épica e romanesca), que, no máximo, pode interessar ao especialista de literaturas medievais comparadas. Rûmî, pelo contrário, dedicou-se à lírica de inspiração religiosa, direcionando seu panegírico não a um soberano terrestre, mas sim a Deus, ou àquele que – em sua visão e experiência espiritual – lhe parece ser um luminoso intermediário entre Deus e ele mesmo, ou seja, Shams-e Tabriz, ou seu venerado amigo espiritual. Quando Rûmî louva Deus (ou Shams), consegue fazê-lo com palavras de grande simplicidade e imediatez, que conseguem transmitir-nos – mesmo em tradução e não obstante as distâncias culturais e religiosas – grande parte de sua extraordinária emoção mística, o vivo sentimento de comunhão com a natureza e com todas as criaturas. A este propósito, Rûmî recorda um pouco da poesia de São Francisco, sobretudo do sentimento de amor universal, que nos foi transmitido através do célebre “Cântico das criaturas ”.

IHU On-Line - Qual é o lugar do amor na execução poética de Rûmî?
Carlo Saccone –
Certamente, o amor é um tema, talvez o mais importante da mística islâmica. Como é sabido, a mística islâmica, ou sufismo, procura integrar o islã da lei e dos doutores – sentido como demasiado árido ou limitante pela experiência religiosa – com o sentido vivo do amor de Deus pelas criaturas, e destas por seu Criador. Rûmî apenas aprofunda esta direção, chegando a acentos quase paulinos  quando diz, em substância, que a religião sem o amor não é nada. Porém, há, sem dúvida, também um lado muito pessoal em toda a questão: a misteriosa relação entre Shams, o amigo e “iniciador”, e o próprio Rûmî. Sabe-se que Shams, talvez um dervis errante, chegou à pequena comunidade sufi fundada em Konya por Rûmî como um ciclone, tumultuando tudo. Rûmî, que dirigia a tranqüila comunidade de sufi devotos, ficou completamente perturbado e começou a freqüentá-lo quase exclusivamente. Rapidamente, os discípulos de Rûmî se enciumaram, conseguindo, numa primeira vez, afastar Shams de Konya, ou talvez constrangê-lo à fuga. Mas Shams retornou, retomando, no interior da comunidade, e sobretudo no coração de Rûmî, a posição privilegiada de que gozara antes. Uma segunda vez Shams foi embora, desta vez para não retornar. Segundo algumas fontes, teria sido vítima de um complô. Rûmî, dilacerado pela dor, dedicou a Shams o seu Cancioneiro poético, chamado precisamente de Divan di Shams e Tabriz. A relação com Shams foi indubitavelmente uma relação humana e espiritualmente fortíssima, que se pode definir como “amorosa”, pelo menos no sentido de que Rûmî admirou, com entusiasmo e sem remorso, em Shams um ser luminoso e, em certo sentido, quase “divino”: para ele, amar Deus é amar Shams, ou seja, aquele que lhe havia feito experimentar uma nova dimensão da vida religiosa e do significado da existência terrena, que, em suma, o havia “iniciado” numa nova dimensão do espírito.

IHU On-Line - Como entender, na obra de Rûmî, o tema do coração? Qual é a importância desta questão para a reflexão sobre a mística do sufismo?
Carlo Saccone -
O coração, como em todas as místicas, é visto também na islâmica como uma sede privilegiada do encontro entre Deus e a criatura. Numa tradição muçulmana (hadith), Alá em pessoa diz: “Não me contêm os céus e a terra, só me contém o coração do Meu servo fiel”. O coração é com freqüência comparado pelos místicos muçulmanos à Kaaba , à “Casa de Deus”, que os peregrinos muçulmanos visitam em Meca. Hallaj dizia provocadoramente: “o que ides fazer, ó peregrinos, em Meca? A verdadeira ka’ba está aqui no coração!”.

Entre os poetas místicos persas, o coração é, muitas vezes, representado como um espelho: se está enferrujado, não reflete nada; mas se o místico se preocupa em poli-lo com a renúncia e a ascese cotidiana, então Deus se olhará naquele espelho e poderá ser visto. Na poesia persa, os místicos são chamados muitas vezes de “gente do coração”, talvez um pouco polemicamente em relação aos doutores, ou seja, a “gente da lei”, ou aos filósofos, ou seja, à “gente da razão”. Todos estes lances retornam também na poesia de Rûmî e de inumeráveis poetas persas. Também para Rûmî, o intelecto, isto é, a razão de filósofos e doutores da lei, é um instrumento imperfeito de conhecimento. Somente o conhecimento do coração abre as portas ao mistério de Deus. Também em Rûmî encontramos a idéia agostiniana  de que Deus habita in interiore homine [no homem interior].

IHU On-Line - Qual é a influência do Corão sobre a poesia de Rûmî?
Carlo Saccone -
Como em todo poeta persa, é uma influência enorme. Deve-se recordar que no mundo islâmico a educação de base ocorria através do estudo do árabe – língua sagrada, e “língua de Alá” – e através do estudo do Corão, que freqüentemente era aprendido de cor. Como os poetas da Idade média e outros – de Dante  a Milton – conheciam muito bem as Sagradas Escrituras e com freqüência as citavam ou as comentavam, assim o poeta persa medieval ama citar e talvez comentar indiretamente passagens do Corão ou do hadith. Na Pérsia alguém disse – e muitos o repetiram – que a outra grande obra de Rûmî, o Mathnavi-ye ma’navi  (“O poema espiritual”), uma vasta enciclopédia de temas espirituais, é um “segundo Corão” ou um Corão em versos. Não se pode entender nem apreciar de modo autêntico e aprofundado a obra de Rûmî, nem a de milhares de poetas persas da Idade Média até o século XX se não se conhece a fundo o Corão e a cultura religiosa fundada por Maomé. Poder-se-ia, aliás, entender Dante ou Milton sem conhecer a Bíblia e a história do cristianismo?

IHU On-Line - Rûmî é um daqueles místicos que acentuam os traços da generosidade divina. Que importância tem esta questão nestes tempos de fundamentalismo religioso? 
Carlo Saccone -
O fundamentalismo é um camaleão capaz de qualquer disfarce. Nas sociedades economicamente ou socialmente pouco desenvolvidas, tende a usar uma linguagem religiosa (extremismo islâmico, extremismo hindu...); naquelas mais ricas, usa uma linguagem político-ideológica. Os movimentos fundamentalistas da Europa cristã se chamam: Liga Norte  (Itália), Front Nacional (França), e depois há vários grupos filo-nazistas na Áustria, Holanda, Alemanha, os grupos nacionalistas na Rússia, Polônia... e assim por diante. Não se parecem com movimentos religiosos, não têm etiquetas religiosas, é verdade. Além disso, são, na realidade, movimentos estranhos ao valor do amor evangélico. Porém, usam amplamente o “cristianismo” e seus símbolos (sobretudo a cruz) como fator identitário fundamental, para levar avante o ódio ou o desprezo dos “outros”, dos “estrangeiros”, sobretudo dos muçulmanos, que chegaram a milhões na Europa nos últimos trinta anos. Para estes movimentos, os estrangeiros muçulmanos, africanos, chineses etc. ameaçam as bases da “cultura cristã”, da própria civilização ocidental. Na Itália, por exemplo, fizeram um grande estardalhaço em torno da “questão dos crucifixos”  nos lugares públicos.

O fundamentalismo islâmico tem uma história diversa, freqüentemente feita de violências e intolerâncias, que, no entanto, jamais foi ligada a fatores raciais ou racistas. Todavia, sua visão da relação entre as religiões tende, por motivos óbvios, a exaltar o primado do Islã sobre outras crenças. Também por isto, talvez, os fundamentalistas muçulmanos não gostam muito dos sufi ou da poesia mística. Rûmî é, certamente, um muçulmano e crê profundamente na palavra de Maomé, mas, como dissemos mais acima, a “religião do amor” místico supera para ele as barreiras confessionais. O místico é chamado a amar todas as criaturas, todos os homens, assim como a providência de Deus se dirige não só aos crentes de Maomé, mas a todo o gênero humano. A generosidade, em suma, deriva em Rûmî de um sentimento cósmico do amor, que faz sentir todos – homens e animais, montanhas e estrelas – vinculados reciprocamente e mantidos unidos pelo amor divino. Quem não vê esta “mística Unidade” de tudo o que é criado não pode ser “generoso” (nem mesmo com os companheiros de fé), no fundo, sequer pode ser um autêntico sufi.

“Ele é mar, nós somos nuvem.
Ele é um imenso tesouro,
nós ruínas; não passamos
de átomos diante do Sol...”

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição