Edição 222 | 04 Junho 2007

Rûmî: um apóstolo do ecumenismo

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IHU Online

“O amor é a matriz geradora de todo o pensamento poético-místico de Rûmî”, afirma Mario Werneck em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line.

Mario Guimarães Werneck Filho possui graduação em Filosofia, pela Universidade Federal de Juiz de Fora, e mestrado e doutorado em Ciências da Religião, pela mesma instituição.

IHU On-Line - Qual é a importância concedida por Rûmî ao Diálogo Inter-Religioso?
Mario Werneck -
Rûmî é por muitos considerado um apóstolo do ecumenismo. Em suas histórias, encontram-se mensagens que, de uma maneira clara, ou por vezes alusiva, conduzem o leitor a descobrir o sentido mais pleno da alteridade, pelo reconhecimento, através da via do Amor, da Verdade maior que abarca as tradições. É importante também lembrar o ambiente cultural em que Rûmî viveu. Kônya era uma cidade cosmopolita por excelência, onde sábios, filósofos e figuras eminentes das mais variadas tradições para lá confluíam, trazendo ensinamentos do Oriente e do Ocidente. Os biógrafos de Rûmî sempre lembram os colóquios amigáveis que ele mantinha com monges cristãos. Isso transparece em alguns de seus textos, onde ele evoca sabedorias cristãs de maneira singular.

No vinho do cristão estão escondidas cem substâncias espirituais,
 do mesmo modo que a soberania espiritual está oculta sob o fraque do derviche.

Creio que a mensagem que Rûmî traz para o diálogo inter-religioso hoje, seja a de um respeito ingente pelo outro, vivido numa dinâmica relacional de amor. Isso aponta para a existência de formas dialogais que se situam para além das convencionais. Rûmî aponta para a existência de uma significação pré-formal constitutiva de toda criatura, um transfundo que a tudo recobre e que é percebido como halo envolvente que a tudo abarca. Este sopro primordial ao nascer continuamente na criação opera nesta as transformações que a fundamentam. Ao identificar esta força com o Amor, Rûmî traz para o mundo fenomênico um aspecto relacional transcendente. É isso que ele diz no Masnavi :

Visto que o objeto do louvor Ele-mesmo
Não é mais que Um,
Deste ponto de vista todas as religiões não são mais que uma só religião.
 
IHU On-Line - Como dimensionar o lugar do amor na obra poética de Rûmî?
Mario Werneck -
O Amor é a matriz geradora de todo o pensamento poético-místico de Rûmî. É, pois, tema-chave para se entender toda a dinâmica de sua mística. Porém, quando ele fala do Amor, este não deve ser entendido, apenas, como um sentimento físico ou categoria psicológica. Amor, para Rûmî, é um princípio gerador que emana diretamente do Criador (quando da palavra criadora: Kun = Seja!). Portanto, é algo que engloba todas as coisas criadas e têm o poder de transformá-las, já que delas é parte integrante. Vive nelas como memória sagrada de um tempo (trans-histórico) onde só havia o Uno indiferenciado. Toda a criação em seus múltiplos aspectos está fervilhando de Amor e isso pelo fato d’Ele ser o plasmador de todo cosmos. Assim, o universo todo inteiro em profusão e movimento é impelido pelo Amor. Por isso Rûmî sempre relembra que fomos gerados no Amor, crescemos no Amor e morremos tendendo ao Amor.

Mas, paradoxalmente, ainda que para Rûmî o Amor seja o centro de toda sua poesia mística, ele afirma no Masnavi:

Se eu continuasse a descrever o amor,
uma centena de ressurreições passariam
e  minha descrição restaria incompleta.

Em muitos versos do Divān  ele termina em silêncio (khamush). Por exemplo, ele diz:

Silêncio, dizes muito
E ninguém entende
De qual morada ressoa este tambor?
D’onde vem esta palavra?

Eis aí os mistérios do Amor, talvez seja por isso que o Amor tenha sido colocado no coração da criação, como uma partícula latente. Desvelo é seu signo.

IHU On-Line - Como entender, na obra de Rûmî, o tema do coração e qual a centralidade desta questão para a reflexão mística do sufismo?
Mario Werneck -
Para o sufismo, e também para a mística cristã, por exemplo, em Marguerite Porete , Basílio de Cesaréia  e João da Cruz , o coração é um lugar central, posto que é identificado com o espelho, que, se polido, é capaz de refletir toda beleza do Amado pelos olhos do amante. Assim, o sufismo identifica o coração (qalb) como o lugar das manifestações teofânicas. É nele — enquanto portador da centelha divina do Amor - e através dele - pelo processo de profunda purificação, onde se transcende a dualidade eu-tu - que o místico ascende a um estágio que Rûmî chama de ressurreição espiritual, ou segundo nascimento. Nasce-se uma primeira vez enquanto forma e espírito. Com o progressivo exercício dos ensinamentos espirituais, pode-se atingir a mirada de Deus, pois como diz Rûmî no Fīhi-mā-Fihī : “O ser humano é o astrolábio divino”.
O coração é, portanto, este lugar de possibilidade de mudança. É lá onde estão as matrizes ancestrais que irmanam a criação em um princípio único. É lá que se deve postar a alma (nafs) para que reconheça sua qualidade angélica. Por isso, Rûmî sempre convida a que se observe o universo criado, pois:

Cada ar, cada átomo está ligado à visão de Deus.
Mas até que ela seja aberta, quem dirá:
‘Lá embaixo se encontra uma porta’!
A menos que o Observador abra a porta,
Esta idéia não nasce no coração dos homens.

Mas, para abrir esta porta e iluminar esta idéia seminal, é preciso passar pelas etapas profundas da via mística.
 
IHU On-Line - Como sinalizar a centralidade da oração no conjunto da obra de Rûmî?
Mario Werneck -
Toda obra de Rûmî é uma oração. Basta dizer que na província do Sind, no Paquistão, alguns místicos se alimentavam espiritualmente com três livros: O Corão, o Divan de Hafiz  e o Masnavi de Rûmî.
A oração reveste-se para Rûmî no mais curto caminho para Deus. Certa vez. um discípulo perguntou a ele qual era o caminho mais curto para se aproximar de Deus, e Rûmî respondeu: “A Oração”.  A oração (dhikr) é um modo de clarear a luz do espírito, pois a palavra dhikr (ato interior de relembrar e pensar) é rememoração constante dos nomes de Deus.
No Corão é dito: “Ó Crentes, mencionai freqüentemente a Deus”, esta é a força da oração. É por meio desta salmodia encadeada que se atualiza a presença de Deus, e aqui que se pode sentir o ser de Rûmî mais candentemente apaixonado; fervendo, como ele diz, de paixão (ishq) pelo Amado. Seu dhikr tornou-se samāʿ, a dança cósmica da Unidade; o bailado celestial movimentador do cosmos, equacionando a ação feita no plano deste mundo fenomênico com a harmonia cósmica. Unificando as forças antagônicas que regem o movimento dos corpos celestes: o Todo e a parte mesclados naquilo que têm de divisível e indivisível.
 
IHU On-Line - Como situar o lugar do despojamento na reflexão de Rûmî?
Mario Werneck -
O despojamento está sempre relacionado com o desapego de si. É importante ressaltar que Rûmî não prega uma vida monástica nem, tampouco, uma pobreza material. A pobreza de Rûmî tem um sentido ontológico, semelhante àquela de Eckhart . Ele sempre relembra que “não há monges no Islã”, o que não significa que seus métodos sejam menos piedosos. Casado e com filhos, passava horas em recolhimento e oração. Estando junto ao seu mestre Shams de Tabriz, passava dias em profundo jejum e união mística. O despojamento em Rûmî, portanto, é o desapego a pensamentos e desejos que distanciam o buscador da meta. Importante também lembrar que Rûmî, em seus belos poemas, canta as maravilhas da criação. Não existe nele nenhuma idéia de “saída” do mundo, mas existe, sim, uma contundente crítica aos seres humanos (criados à imagem e semelhança de Deus), que se deixam levar por suas próprias criações, que mais não são que simulacros que funcionam como véus para a visão da Verdade. Por isso, é preciso perceber em sua mensagem que é necessário estar no mundo, sem se identificar com o mundo. O verdadeiro desprendimento é saber que:

Quando o ar da pobreza está no interior de alguém
Este repousa em paz sobre as águas desse mundo.
Pela pobreza de cunho ontológico a criatura percebe sua pequenez ante o Criador.

IHU On-Line - Quais são algumas das mensagens mais importantes deixadas por Rûmî e que permanecem atuais para o nosso tempo?
Mario Werneck -
Acho que são várias e que se resumem a uma: Amor. A história da evolução do espírito descrita por Rûmî é uma narrativa que convida a pensar no itinerário da criação, como sendo uma composição de conhecimento de leituras de linguagens, e conhecimento de leituras de formas, já que ambas confluem, ou se plenificam, no “ápice da criação”, como ele mesmo diz, que é o gênero humano. A mística de Rûmî é atual, porque toda mística é atual. Toda mística somente faz sentido quando é presença; para o místico não há passado ou futuro, posto que tudo é presença. Esta é uma das mensagens de Rûmî: a de que tudo é presença. É por este motivo que tudo deve ser cuidado. “Tudo é uma gota de Sua beleza, que por causa de Sua plenitude não pode ser contida sob a pele”. Face aos tempos de tribulações Rûmî escreve: “Tudo tem diferentes partes”. E essa observação remete a que se pense com ele: “Se estás em peregrinação busca um peregrino como companheiro, seja ele hindu, turco ou árabe. Não considere seu aspecto ou sua cor, considera seu desígnio e sua intenção”. Pois no mundo criado é primordial observar que “todas as criaturas, dia e noite revelam Deus”. Isso remete à ecologia e a um tipo de conhecimento relacional. O ser humano guarda a memória sagrada (“o amor das estrelas foi implantado na alma”), e, então, cada parte desse organismo vivo, que é o ser humano, compartilha com o cosmos. E nessa perspectiva, o pensamento de Rûmî abre a possibilidade para a fundação de uma nova realidade, isso sem falar também da noção de equilíbrio entre os opostos, tão cara ao mestre. Mas acho que, primordialmente, Rûmî acena para uma revolução criativa na relação Eu-Tu, a partir da palavra amorosa.

IHU On-Line - Rûmî destaca-se como um dos místicos que mais acentuou o traço da generosidade divina. Qual é a importância desta questão nestes tempos de fundamentalismo religioso?
Mario Werneck -
Rûmî, às vezes, refere-se a Deus como sendo “mina de generosidade”. Isso, para nossos tempos, implica em mudança radical no trato com o outro, ou seja, em reaprender a generosidade (assim como outras virtualidades), tirá-la dos grilhões que insistem em mantê-la num estado de inércia até seu pleno esquecimento pelo gênero humano, em comportamentos de absoluta irresponsabilidade. Se a generosidade é traço do divino, ela é, pois, força potencial na criação. Não é, então, a máxima generosidade de Deus o ato da criação? Na criação, Deus gera um diferente para com Ele se comunicar. A criação é, em si, a máxima abertura ao Outro. Ora, um tal ensinamento, quando trazido do nível ontológico para o prático, tem profundas e ricas implicações. Uma delas (ligada diretamente ao monoteísmo) é que, enquanto criaturas, nos sabemos oriundos da mesma Fonte primeira. Um traço que nos faz fruto de um mesmo núcleo; núcleo que, ao se disseminar, soltou seus fragmentos que se fizeram modos diferentes de existir. Veja! Modos diferentes de um mesmo Núcleo e Rûmî dirá: “Se o mundo te parece vasto e sem fundo, saiba que para o Onipotente ele não é mais que um átomo”.
Em tempos de fundamentalismo, a grande generosidade Divina ensina compartilhar; ensina que não há eu em si independente, e que a relação é fundamento de existência.

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