Edição 222 | 04 Junho 2007

“Rûmî se utiliza do poder soberbo das metáforas”

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IHU Online

Inspirado na poesia e na mística sufi, o professor e poeta Marco Lucchesi concedeu a entrevista que segue à IHU On-Line por e-mail, falando sobre a importância e a contribuição de Rûmî e sua obra poética.

Lucchesi é graduado em História pela Universidade Federal Fluminense, mestre e doutor em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutor pela Universidade de Colônia. Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, atuando principalmente com temas que envolvem filosofia, literatura italiana, neoplatonismo e teoria literária.

Marco Lucchesi é autor de vários livros, entre os quais citamos A sombra do Amado (Rio de Janeiro: Fisus, 2000); Caminhos do Islã (Rio de Janeiro: Record, 2002); e Esphera (Rio de Janeiro: Record, 2003). Está para ser lançado nos próximos meses, pela Editora Fissus, o livro O canto da Unidade, em parceria com Faustino Teixeira, com poemas de  traduzidos ao português.

IHU On-Line - Como avaliar o significado e a atualidade de Rûmî para a mística contemporânea?
Marco Lucchesi -
Como a de um Oceano. A longa superfície é uma escolha. A outra é a do abismo. E ambas guardam seus riscos. A obra de Rûmî sabe a vastidão. E nela não são pequenos os desafios. Tanto os de interpretação quanto os de tradução. Eles têm a força de um enigma. E de um raio. Talvez mil. A alegria de quem encontra um tesouro submerso. E que não canta apenas uma parte, uma língua, um povo. Mas, acima de tudo, a humanidade. Místico que diz ter vencido o dois e beijar com seus lábios o Um. Em tempos atrozes como os nossos, vencer o Dois  parece a tarefa mais dramática...

IHU On-Line - Rûmî é um místico que retoma os valores mais essenciais do cristianismo e do islã, sem deles nada renegar, favorecendo a percepção de uma dimensão integralmente fraterna e ecumênica. Qual é a importância concedida por Rûmî ao diálogo inter-religioso?
Marco Lucchesi -
Exatamente. Quem sabe se não o transformamos nesse Patrono do Diálogo. Ele com Juan de la Cruz  - por tardes infindáveis - conversando. Massignon e Ibn Arabi. Permita-me esses devaneios.  E o maravilhoso é que Rûmî não se anula para dialogar. E nem tampouco se fecha para a maravilha do Outro. Ele vai ao seio da tradição abrâmica. Mas não com argumentos espessos, do tipo matéria e matéria de quantidade, ou do tipo causa eficiente e causa final. Não. Ele se utiliza do poder soberbo das metáforas. Vinho. Ebriedade. Amor. Riachos. Oceanos e Moinhos.

IHU On-Line - Como decifrar a paixão de Rûmî pela Unidade? E como ele articula esta paixão com sua abertura generosa à pluralidade do real?
Marco Lucchesi -
Não aumenta nem diminui. Não apequena. Nem distorce. O perigo? Devastar a beleza das diferenças. Outro, ainda?  Dissolver a beleza e a saudade do Todo. Ele está no centro desse desafio. Ama a parte e o todo. O rosto atual e o rosto futuro. Todas as línguas. E aquela de Deus. Essa é a parte mais bela e essencial de sua obra. O canto da Unidade. A beleza de cada pérola. De uma só pérola. E o universal latente que se esconde (ou se revela) em cada concha aberta.
 
IHU On-Line - Como dimensionar o lugar do amor na obra poética de Rûmî?
Marco Lucchesi -
Da tradição persa, Rûmî assume todas as metáforas conhecidas, ou todas as expressões consagradas sobre o amor para torná-las suas. Como fez San Juan de la Cruz com o Cântico Espiritual. Nenhuma novidade diante da tradição. Mas o selo de sua profunda beleza nasce de uma compreensão difusa de um mundo banhado de luz, atravessado pelo amor da unidade que se articula em todos os plurais.
 
IHU On-Line - Como sinalizar a centralidade da oração no conjunto da obra de Rûmî?
Marco Lucchesi -
Faustino Teixeira, o meu querido amigo e tremendo teólogo, já respondeu a essa questão de modo belíssimo. Já não me atrevo a dizer mais. A não ser a respeito do efeito multiplicador da oração de Rûmî, da flauta, da poesia e da dança. Como uma masbaha  profunda, cravada em seu espírito, em que o estado de oração não se constitui numa interrupção diante do real. Mas o real em si mesmo é um canto de amor jamais interrompido.
 
IHU On-Line - Como situar o lugar do despojamento na reflexão de Rûmî?
Marco Lucchesi -
Como não lembrar aqui de São Francisco ? Como não evocar a liberdade de todas as solidões? O salto no abismo. A entrega total e absoluta. Tão necessária e tão incomparável nas solidões de todos os desertos. Não só os de pedra e a areia. Mas o estado de deserto, seja qual for a sua geografia. Porque o deserto não é uma questão de geografia.
 
IHU On-Line - Quais são algumas das mensagens mais importantes deixadas por Rûmî e que permanecem atuais para o nosso tempo?
Marco Lucchesi -
Insisto na relação entre beleza e verdade. Sentimento de pertença a uma tradição. E, ao mesmo tempo, de liberdade e criação, a partir desse ponto de vista. Morrer. E morrer de amor. Pela diferença, das línguas (por ele freqüentadas). E todos os rostos. Quaisquer. E cada um deles. Mas desde que rostos. E como disse Faustino, o canto da Unidade...
 
IHU On-Line - Rûmî destaca-se como um dos místicos que mais acentuou o traço da generosidade divina. Qual é a importância desta questão nestes tempos de fundamentalismo religioso?
Marco Lucchesi -
Absoluta. E mesmo que através de Rûmî se propusesse uma releitura do Alcorão. Distinguindo-se a pequena da grande Jihad. Ou, então, a idéia de que cada comunidade tem o seu profeta. Que todos os profetas são portadores da mensagem de Deus. Que Jesus (Rûmî dizia: o Doutor Jesus, de doutor, médico que cura) é o maior santo de todos os tempos (para o Islã). Bastava ler o Alcorão com atenção e amor, que os melhores muçulmanos dedicam à surata  da Gruta! A dimensão da Esperança.
 
IHU On-Line - O senhor traduziu cerca de 30 poemas de Rûmî para o livro que está sendo lançado no Brasil. Poderia falar sobre a questão da tradução de Rûmî para o
português? Qual é a especificidade da tradução da poesia mística? 
Marco Lucchesi -
Eu já havia traduzido um livro antes. A sombra do amado , para a editora Fissus. Trabalhei agora com o texto persa original, de Furuzanfar. E, a meu lado, uma figura  indispensável, um homem nobre e um grande conhecedor da poesia persa, Rafi Mussavi. Assinamos juntos a tradução. Rafi nasceu no Irã e domina igualmente o português. Estudou na Sorbonne. Respeitamos o original. Mas decidi por manter os 30 rubaiatas  com as formas livres, mas com a métrica bem severa. A dificuldade é a de trazer para uma língua aglutinante outra não-aglutinante. E depois, a leitura de Rûmî se constitui num desafio. Estudei o persa como um desesperado. Mas a dificuldade é sempre imensa. Abraçar e traduzir o Pensamento. O canto de seu pensamento.


“Teu sol é hoje nosso guardião,
não somos mais que a sombra de teu rastro;
sem tua graça andamos solitários...”


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