Edição 221 | 28 Mai 2007

“Uma dor comum na consciência”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

“Cem anos de solidão certamente pode ser o resumo de toda uma obra”, comenta o professor e teólogo Waldecy Tenório, que em seguida explica: “nele, Garcia Márquez se procura e se decifra”. Citando pequenos trechos e falas do livro, Tenório analisa a obra a partir do olhar teológico, e afirma que direta ou indiretamente, a presença da religião, especialmente da Igreja Católica, “se impõe ao leitor quase como uma marca textual de Cem anos de solidão”. O professor ressalta que “a grandeza dessa extraordinária rede escritural montada por García Márquez está na sua capacidade de nos enredar num vínculo que não podemos esquecer: uma dor comum na consciência”.

Waldecy Tenório é graduado em Letras Clássicas e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor pesquisador visitante na mesma universidade e está vinculado ao Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA). Pesquisador da Associação Latino-americana de Literatura e Teologia (ALALITE), também é autor de vários livros, dos quais destacamos A Bailadora Andaluza: a Explosão do Sagrado na Poesia de João Cabral (Ateliê Editorial/Fapesp), O amor do herege, resposta às confissões de Santo Agostinho (Edições Paulinas). Tenório também é co-autor de O Evangelho Segundo Terceiros (Humanitas, USP) e Borges Centenário (Educ). Em 19-05-2007 Tenório palestrou em 19-05-2005 no Simpósio Internacional Terra Habitável – um desafio para a humanidade, falando sobre Literatura e teologia: Teilhard de Chardin, Saint-Exupéry e a Terra dos homens. Na edição 142 da IHU On-Line, de 23-05-2005, concedeu a entrevista Teilhard de Chardin, Saint-Exupéry, e na edição 135, de 04-04-2005, a entrevista Chardin revela a cumplicidade entre o espírito e a matéria. Abaixo, confira a entrevista concedida por email, à IHU On-Line:

IHU On-Line - Sabe-se que a religião católica é predominante na Colômbia. Há uma relação entre os personagens de Cem anos de solidão com a religião, especificamente a católica? Há críticas ou elogios, evidentes ou subjetivos, a ela no desenvolvimento desse romance?
Waldecy Tenório -
Se ficarmos apenas no grau zero da escritura , para lembrar uma fórmula de Roland Barthes, já se percebe a presença marcante da Igreja Católica nesse romance de García Márquez. Direta ou indiretamente, de maneira diluída ou não, essa presença se impõe ao leitor quase como uma marca textual de Cem anos de solidão. E se impõe de diversas maneiras: em temas, como, por exemplo, a importância dos filhos legítimos de casamentos católicos; em paródias, como a subida de Remédios aos céus; em costumes, como transformar o rito do almoço numa missa solene etc. E há sempre um padre para ministrar os sacramentos aos moribundos, para indicar um bom pensionato destinado às jovens católicas, para dizer o que as pessoas devem ou não devem fazer, se podem ou não ver aquele filme etc. E tudo isso se torna compreensível se considerarmos a história do mundo ocidental e, mais ainda, o contexto do processo de colonização da América Latina e os elementos sociológicos embutidos, nessa época, no catolicismo rural.

Agora, se aprofundarmos um pouco a leitura, confirmaremos a presença da Igreja Católica no romance, só que, dessa vez, formulada como crítica,  apresentada como denúncia, e sempre  banhada em ironia, usando uma expressão do poeta Carlos Drummond de Andrade. Mas certamente nem tudo é negativo, deve haver também algum elogio.

Pensando em termos de crítica, a figura do padre quase sempre aparece associada a doenças. Os padres sofrem de artrite ou são senis, como se o narrador quisesse dar a entender que representam uma instituição envelhecida que não tem muito mais a dizer aos homens. A crítica se torna mais forte quando o texto faz referência às “artimanhas teológicas” daqueles (padres) que sabem consultar um “dicionário de pecados”, para enquadrar os penitentes nesse ou naquele pecado sexual, mas fingem não saber que eles próprios são cúmplices dos pecados sociais cometidos pela “companhia bananeira”, que infelicita a vida de Macondo.

Em termos de denúncia, o romance é muito forte. Em certo momento, ficamos sabendo que o governo conservador, com apoio dos liberais, “havia assinado o acordo com a Santa Sé, e que tinha vindo de Roma um cardeal com uma coroa de diamantes e um trono de ouro maciço, e que os ministros liberais se fizeram fotografar de joelhos no ato de lhe beijar o anel”. No contexto político da situação descrita pelo romance, acordos como esse tinham sua contrapartida na ação dos “decrépitos advogados”, aqueles juristas, como há tantos, capazes de encontrar brechas na lei e justificar todas as arbitrariedades de seus patrões. No fim de tudo, os conchavos envolvendo a Santa Sé e os “ilusionistas do direito” servem para fazer prevalecer “a versão alucinada da história”, ou seja, aquela que os governos inventam para apagar a realidade. Houve um massacre da população, duzentos vagões de mortos, mas ninguém viu, ninguém percebeu nada porque Macondo – só os revolucionários negam isso – é uma aldeia feliz...

Daí o romance banhar-se em ironia. Nos bordéis, as camas das mulheres são enfeitadas “com dossel de arcebispo”, assim como as poltronas do americano diretor da “companhia bananeira” têm um “veludo episcopal”. Temos a história do sujeito que quer ir a Roma “beijar as sandálias do Sumo Pontífice” com o objetivo de obter licença especial para viver maritalmente com a própria tia. Há ainda a “patranha da vocação pontifícia” do menino que é enviado para o seminário a fim de ser papa, o que leva um membro de sua família a resmungar: “Esta era a última amolação que estava nos faltando – um papa”. Mas enfim, entre muitas “sutilezas apologéticas”, há um momento – raro, mas há – em que o romance parece dizer:  Olha, talvez nem tudo esteja perdido. É quando mostra que o padre intercede em favor dos grevistas da “companhia bananeira” por achar  justa a reivindicação de não trabalhar aos domingos.

IHU On-Line - No livro O cheiro da goiaba, García Márquez cita a seguinte frase: “El que no tenga Dios, que tenga supersticiones”. Essa afirmação é um indicativo à importância que García Márquez dá à religião ou a necessidade de cada ser humano acreditar em algo sobrenatural?
Waldecy Tenório -
Desde o começo do romance, o patriarca José Arcádio Buendía sabe que há em Macondo uma “ressonância sobrenatural”. De modo que quando García Márquez diz “El que no tenga Dios, que tenha supersticiones” está simplesmente confirmando a idéia segundo a qual que há sempre uma alternativa para a fé que perdemos. Somos todos assim. Os demônios ainda nos assombram?  Não faz mal: a ciência está aí para nos ajudar. Um pouco de imaginação, e temos a física da imortalidade, o pó vital, o novo Éden prometido pelo DNA. E depois, o Mercado está aí também para nos dizer que os mil anos de felicidade de Jean Delumeau  já eram, e nos prometer outros mil. Enfim, quem acha o Deus de Abraão absolutamente superado pode escolher outros caminhos, até mesmo o dos gnomos e ser feliz. E se, de um lado, existe a necessidade de crer, como nos recorda a psicanalista Mijolla-Mellor, de outro a religião faz parte da cultura, nos ensina Merleau-Ponty, não como dogma, nem mesmo como crença, mas como grito. E este romance, podemos resumi-lo, é o grito dos homens de Macondo e do mundo contra “uma viagem absurda”, a vida, e em busca do “executante invisível” da música que fascina o coronel Buendía.  Deve estar aí a razão pela qual a Igreja pode ser criticada e ironizada, mas Deus, não. E Úrsula, a grande matriarca do romance, o invoca nos momentos mais difíceis da vida.

IHU On-Line - Temos a possibilidade de ligar a metafísica e a teologia, como em Aristóteles, à narrativa de Cem anos de solidão, permeada pelo “realismo maravilhoso”? Ao ligar seus personagens a uma realidade fantasiosa, o autor pretende colocá-los em contato também com um pensamento divino, que consiga chegar à subjetividade do ser, confrontado com uma sublimação ocorrida também a partir de elementos do cotidiano?
Waldecy Tenório -
Em toda narrativa, há sempre alguém em busca de alguém ou de alguma coisa. Em Cem anos de solidão, os homens enlouquecem procurando o mar, seguindo o cheiro de pólvora das revoluções ou então indo atrás do rastro de perfume que Remédios, a bela, deixa ao passar. O que os atrai é o terror e o deslumbramento. Por quê?  Octavio Paz nos diz, no livro Signos em rotação,

“Más  allá  de ti, más allá de mi, por el cuerpo,
En nel cuerpo, más allá del cuerpo, queremos ver algo”

Sim, não há dúvida, como nos lembra ainda Merleau-Ponty, a literatura é uma passageira clandestina dentro da metafísica e da teologia. Não saberia dizer se García Márquez quis ou não colocar seus personagens em contato com o “pensamento divino”. Aventurar-se por aí é correr o risco de resvalar na famosa falácia da intencionalidade do autor. Parodiando Paul Valéry, García Márquez não quis dizer, quis fazer, e foi a intenção de fazer que quis o que ele disse. Em outras palavras, queira ou não o autor, suas personagens, por força da linguagem, entram em contato com o Absoluto.

IHU On-Line - As figuras representativas do bem e do mal, que em sua maior parte lembram, com suas histórias, casos, lendas, mitos greco-romanos, são claras em Cem anos de solidão? Quais seriam elas e de que forma elas agem, sob um ponto de vista teológico?
Waldecy Tenório -
Mais do que em lendas e mitos, em Cem anos de solidão o mal está delineado na representação dos horrores que, pior do que a chuva, caem sobre Macondo: o horror político, econômico  e social, o horror religioso e o horror antropológico. Mas talvez nem seja possível fazer essa distinção de maneira assim tão clara, de maneira que podemos simplificar dizendo simplesmente que o mal é o horror. O impacto social, econômico e político das “companhias bananeiras” na região é um fato por demais conhecido. A promiscuidade entre os interesses econômicos das empresas norte-americanas e os programas políticos, muitas vezes com as bênçãos da hierarquia católica, constitui uma das páginas mais perversas da história da América Latina. Ela é tão forte, essa promiscuidade, que o romance deixa bem claro: “a única diferença atual entre liberais e conservadores é que os liberais  vão à missa  das cinco  e os conservadores à das oito”.

O resultado disso, obviamente, é o horror antropológico. A insônia. “Mas a índia explicou que o mais temível da doença da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço nenhum, mas sim a sua inexorável evolução para uma manifestação mais crítica: o esquecimento”. Ou seja, quando o doente se acostumava a conviver com a insônia, “começavam a apagar-se de sua memória as lembranças da infância, em seguida o nome e a noção das coisas, e por último a identidade das pessoas e ainda a consciência do próprio ser, até se afundar numa espécie de idiotice sem passado”.

Então, o tempo dá voltas e mais voltas, procura-se refúgio na solidão, há quem fique na porta de casa esperando o próprio enterro passar e há ainda aquela personagem - o avesso de Penélope – que borda uma interminável mortalha. Fazer para desfazer: é essa a desmoralizadora ocupação das pessoas. Há nelas, claro, um profundo mal-estar, a “saudade dos sonhos perdidos”, mas, como lembra o narrador, a procura das coisas perdidas é dificultada pela situação de rotina e apatia.

O romance reage contra isso. Fernanda, que foi educada para rainha, acha que pessoas de bem não podem se envolver com a “companhia bananeira”. “Ianques de merda”, grita o coronel Buendía. Era de se esperar que aquele padre que timidamente apoiou a greve dos bananeiros evoluísse para a construção de uma teologia que não fosse apenas “uma lenda” mas  um pensamento generoso capaz de defender os que vivem, como diz o narrador, a “pastoral do desengano”. Mas isso infelizmente não acontece.

IHU On-Line - As aventuras da família Buendía-Iguarán, ao longo do livro, com os seus milagres, fantasias, obsessões, tragédias, adultérios são a representação ao mesmo tempo do mito, da tragédia e do sentimento humano?
Waldecy Tenório -
A literatura nos implica, o romance, de uma maneira especial. Tivesse García Márquez escrito uma pesquisa sociológica sobre a América Latina, nós poderíamos manter um certo distanciamento. No caso do romance, vale o dito de Flaubert: Madame Bovary c’est moi. Todos estamos implicados, de modo que,  sem  esquecer as  questões estéticas do “realismo fantástico”, a saga da família Buendía, essa sucessão de milagres, tragédias, adultérios, mortes, taras, devoção, blasfêmia, tudo isso, de fato, pode ser visto como representação da grande aventura humana. Assim somos feitos.  E no caso de Cem anos de solidão, podemos dizer mais: a grandeza dessa extraordinária rede escritural montada por García Márquez está na sua capacidade de nos enredar num vínculo que não podemos esquecer: uma dor comum na consciência.

IHU On-Line - Alguns especialistas dizem que o tema dominante em Cem anos de solidão é, exatamente, a solidão. No decorrer da história, todos os personagens vivem juntos, mas, ao mesmo tempo solitários, vivem uma solidão coletiva. Será que o autor tenta relacionar o dia-a-dia dos personagens com a solidão de cada indivíduo?
Waldecy Tenório -
Como chove em Macondo!  O narrador diz: “Fernanda não teria se importado com a chuva, porque afinal de contas toda a sua vida tinha sido como se estivesse chovendo”. E o pior é que as pessoas ficam esperando que a chuva passe, mas apenas “para morrer”. Também acho que a solidão é um tema dominante nesse romance. Estamos sozinhos e desamparados. Mas há um momento no qual se vislumbra, além da solidão, uma esperança. É um momento de revolta (teológica?) protagonizado por Úrsula: “Perguntava a Deus, sem medo, se realmente acreditava que as pessoas eram feitas de ferro para suportar tantas penas e mortificações; e perguntando e perguntando ia atiçando a sua própria perturbação e sentia desejos irreprimíveis de se soltar e não ter papas na língua ...e de se permitir afinal um instante de rebeldia, o instante tantas vezes desejado, e tantas vezes adiado, para cortar a resignação pela raiz”. A cena termina com Úrsula soltando um palavrão e o alívio que sente é como se Deus lhe dissesse que afinal é ali que ele está, naquele palavrão, naquele instante da rebeldia humana.

IHU On-Line - Quais elementos referentes à ciência podemos encontrar em Cem anos de solidão? Há alguma oposição, nesse sentido, entre a ciência e a religião no romance de García Márquez, como vemos acontecer na realidade, principalmente nos dias de hoje?
Waldecy Tenório -
São muitos os elementos que mostram a presença da ciência e da tecnologia nesse romance. O fascínio pela pesquisa, o deslumbramento diante de invenções como a “máquina múltipla”, que pregava botão de camisa e baixava a febre, o emplastro para perder tempo “e mil outras invenções tão engenhosas e insólitas, queJosé Arcádio Buendía queria inventar a máquina da memória para poder se lembrar de todas”.

A sensação geral era essa: estão ocorrendo “coisas incríveis pelo mundo”, duplicação do ouro, tapete voador, e por aí vai, de modo que os homens se sentiam  “dotados de recursos que em outra época estavam reservados à Divina Providência”. A empolgação é tanta que, como o daguerreótipo  não capta a imagem de Deus, um dos personagens simplesmente desiste de acreditar em sua existência. Não que haja oposição entre a Ciência e a religião. É que Deus simplesmente não é mais necessário. Mas como Deus sempre faz “suas trapaças”, muitos caem na “armadilha da saudade” quando percebem que estão viajando para “uma terra que ninguém lhes havia prometido” e que tudo aquilo não passa de uma “alucinada lucidez”. E então surge aquele cartaz enorme, bem no centro de Macondo, anunciando que “Deus existe”.

IHU On-Line - Em Cheiro de goiaba, García Márquez afirma que o escritor costuma escrever apenas um livro, embora esse apareça “em muitos tomos, com títulos diversos”. Cem anos de solidão é um livro que pode conter toda sua obra, assim como a comunidade enfocada por ele no romance pode representar um continente? Há, nisso, a idéia – provinda do romantismo de Iena, de filósofos como Novalis – de que o escritor é um “mediador” da humanidade e a põe em contato com um sentimento divino, metafísico?
Waldecy Tenório -
Como dizia Camus, um grande escritor sempre traz consigo seu mundo e sua prédica. Ele tem seus temas recorrentes e suas obsessões. “Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo com fatos conhecidos demais e começou a decifrar o instante que estava vivendo, decifrando-o à medida que o vivia, profetizando-se a si mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse vendo a si mesmo num espelho falado”.  Cem anos de solidão certamente pode ser o resumo de toda uma obra. Nele, García Márquez se procura e se decifra, e assim também o leitor.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição