Edição 221 | 28 Mai 2007

O ícone do regionalismo colombiano

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IHU Online

Para o professor Alfredo Laverde Ospina, da Universidade de Antioquia, Colômbia, a obra de García Márquez, especialmente Cem anos de solidão “se constituiu na obra principal de uma série de escritores colombianos empenhados em dar voz aos oprimidos e reflexionar em torno das origens da violência nacional”. Na entrevista que segue, o professor enquadra Cem anos de solidão como um dos livros “mais importantes do regionalismo que foi caracterizado pelas literaturas marginalizadas de todo o continente”.

Laverde é mestre em Literatura Hispano-americana pelo Instituto Caro y Cuervo – Seminário Andrés Bello, na Colombia e doutor em Letras (Língua Espanhola e Literatura Espanhola e Hispano-americano) pela Universidade de São Paulo (USP). É autor da tese “Afinidades y oposiciones enla narrativa colombiana. Una lectura de Jorge Isaacs, José Asunción Silva, Gabriel García Márquez y Alvaro Mutis”. Atualmente, ele é professor da Universidade de Antioquia da Faculdade de Comunicações, Departamento de Literatura e Lingüística. Confira a seguir a entrevista concedida por ele à IHU On-Line, por e-mail.

IHU On-Line - De que maneira, na obra Cem anos de solidão, García Márquez contribuiu para a construção da literatura nacional e popular colombiana?
Alfredo Laverde Ospina -
No contexto dos movimentos sociais, inspirados pelo idealismo esquerdista, no que resultou numa luta entre os partidos tradicionais (liberais e conservadores) na década de 1940, e que, posteriormente, daria origem às organizações guerrilheiras urbanas e campesinas, tanto na Colômbia como na América Latina, surge uma forma de literatura que tem suas más conseqüências, antecedentes aos resultados obtidos no Primeiro Congresso de Escritores da União Soviética, em 1934, que advogava pela representação da realidade com o fim de despertar o espírito revolucionário. De fato, e longitudinalmente amplo por todo o continente latino-americano, aparecem obras seriamente comprometidas com os processos revolucionários das classes oprimidas. O que inicialmente dá origem a uma produção panfletária, sob influência da literatura inglesa e norte-americana (Virginia Woolf, James Joyce e William Faulkner, respectivamente), adquiriu, com o tempo, técnicas narrativas metropolitanas que deram qualidade estética às produções escritas no realismo crítico. Apesar disso, a beligerância e a brutalidade da guerra civil colombiana, acentuada em 1948 com o assassinato do líder popular Jorge Eliécer Gaitán, obriga grande parte dos intelectuais a serviço da literatura a denunciar o que os meios de comunicação ignoravam. Essa literatura, denominada, na Colômbia, “da Violência”, devido a sua temática, se caracterizou pela emergência de sua função, pela falta de preparação de seus cultos e pela quase nula elaboração estética; o resultado acabou numa certa escatologia na descrição dos massacres e as perseguições afetadas por ambos bandos comprometidos com o conflito.

Nesse contexto, a obra de García Márquez, em especial Cem anos de solidão, constituiu-se na obra principal de uma série de escritores colombianos empenhados em dar voz aos oprimidos e refletir sobre as origens da violência nacional, tomando como fonte e instrumentos narrativos as técnicas da literatura ora os conteúdos do imaginário coletivo. Daí a obra de García Márquez, inscrita no denominado “realismo mágico”, constituir-se na melhor expressão do popular e do nacional. Não é errado afirmar que este realismo “descarnado” passou, inevitavelmente, a conformar um estilo cultural de elite. Em conseqüência, a partir de García Márquez, começou a se efetuar um deslocamento cultural capitalista até as regiões que até o momento careciam de representação.

IHU On-Line - Qual é a importância de Cem anos de solidão no contexto da literatura da América Latina?
Alfredo Laverde Ospina –
Cem anos de solidão (1967) é uma das obras mais importantes do regionalismo que foi caracterizado pelas literaturas marginalizadas de todo o continente. Sua importância, junto com as outras obras de seus contemporâneos, se deve ao tratamento estético indiscutível de problemáticas continentais, que até o momento haviam sido tema da crônica vermelha ou adaptavam a obras de caráter panfletário. De acordo com Ángel Rama, a matéria utilizada por García Marquéz provém tanto da tradição escrita quanto da tradição oral.
 
IHU On-Line - O senhor afirma, na tese “Afinidades y oposiciones en la narrativa colombiana”, que García Márquez se concentra em dar forma aos sentimentos populares depois de tê-los vivido e assimilado. Como isso se traduz em Cem anos de solidão?
Alfredo Laverde Ospina –
As técnicas provenientes da literatura metropolitana deram aos escritores latino-americanos, pertencentes ao realismo crítico, os elementos suficientes para expressar a realidade que até este momento haviam sido excluídas da literatura nacional culta. Contudo, é importante afirmar que estas técnicas foram adaptadas a partir dos procedimentos tradicionais das literaturas orais. Neste caso da estrutura temporal, vemos que as obras de García Márquez fazem uma previsão de uma estrutura mítica (circular progressiva), própria dos relatos orais. É importante ressaltar, além disso, a presença das narrações próprias de contextos muito limitados que, devido a seu tratamento, adquiriram a conotação universal característica deste tipo de literatura. Por exemplo: a legenda de Francisco o Homem, a Cândida Erêndira, a figura do Coronel Aureliano Buendía – inspirada no líder liberal general Rafael Uribe  etc. Assim, as coisas, os procedimentos são múltiplos, desde o tratamento da matéria narrativa (tempo circular) até a consciência fabuladora coletiva (adjetivação discordante, redução das anedotas da frase, fórmula e piada), entre outros.

IHU On-Line - García Márquez disse algumas vezes que retratava em suas obras da realidade da América Latina. Ele conseguiu retratar o povo latino-americano, especialmente em Cem anos de solidão?
Alfredo Laverde Ospina –
Efetivamente, uma das frases mais citadas de García Márquez é aquela que se refere ao resto da riqueza da realidade frente à literatura. Digamos que esta é uma verdade em partes, pois ele se refere especificamente aos imaginários coletivos, que, no fundo, são mais “reais” que as versões da história oficial. Apesar disso, na obra do escritor colombiano predomina a visão popular dos feitos. Neste Nossos povos vivem em outras coordenadas temporais, e assinalamos, para este caso, as mítico-religiosas. Apesar disso, isso não significa que suas obras não tragam consigo uma profunda reflexão sobre a marginalidade e os desenvolvimentos econômicos desiguais de nossos países.

IHU On-Line - O senhor afirma que Cem anos de solidão é uma modernização da literatura colombiana. A narrativa de García Márquez transcende o localismo sem abandonar as aspirações de fundar uma literatura nacional?
Alfredo Laverde Ospina –
O tratamento permitido pela reelaboração de técnicas narrativas provenientes de literaturas forasteiras e a educação de procedimentos narrativos próprios da oralidade, além de enriquecer a aproximação estética das problemáticas nacionais – originadas pelos desenvolvimentos socioeconômicos desiguais, comum a todos os países do terceiro mundo -, permite aos autores do “regionalismo” alcançar o estatuto do antropológico. É um feito, que toda literatura se valorize de ser “nacional” deve ser “necessariamente” incluidora. A fórmula que se refere ao localismo tratado de maneira tal que adquire universalidade não pertence a García Márquez, pois já William Faulkner o havia exposto com respeito a seus povos natal no sul dos Estados Unidos.

IHU On-Line - Você afirma que Cem anos de solidão, Os funerais da mamãe grande, Ninguém escreve ao coronel e A má hora são novelas de violência e que relatam bem a realidade da Colômbia da época. Especificamente em Cem anos de solidão, o escritor colombiano tentou destacar algum aspecto histórico mais relevante?
Alfredo Laverde Ospina –
É evidente que as primeiras obras de García Márquez, desde Jocasta até Cem anos de solidão, se apresentam como a superação de um realismo um tanto ingênuo e escatológico da grande maioria das novelas “da Violência” anteriores a ele. Assim, os manifestos do escritor em seus poucos textos críticos se tratam de ir à raiz do assunto: a “Violência”. Ao enfrentá-la, García Márquez encontra nela quase todos os problemas do país, que tem sido submetido a processos socioeconômicos característicos de um capitalismo dependente. Quer dizer, a dissolução do que poderia vir a ser o vínculo societário, sem alguma vez existido, foi produzido pela invasão da ordem capitalista que, com suas diversas etapas impostas, não haviam permitido desenvolvimentos plenos de fases anteriores. Do meu ponto de vista, tanto Jocasta como Cem anos de solidão se centram na incapacidade que tem a classe dirigente de assimilar os processos econômicos internacionais. Como conseqüência, a massa e o povo têm sido oprimidos e são tomadas as armas ante a indolência dessa nobreza.

IHU On-Line - García Márquez fez uma crítica aos escritores amadores. Segundo ele, a única expressão literária que a Colômbia tem de sua história mostra uma realidade de um país literalmente frustrado. Ele diz ainda que para que a digestão literária política se cumpra é necessário um conjunto de condições culturais preeestabelecidas. O senhor concorda com esta afirmação?
Alfredo Laverde Ospina –
García Márquez sempre tentou ser hiperbólico em suas afirmações. Tem parcialmente razão. Se bem é certo que a literatura hegemônica colombiana, na segunda metade do século XX, sofria de espécie de paralisia devido à impossibilidade de afrontar os embates de um capitalismo internacional agressivo, também é inegável que a renovação da literatura colombiana estava se efetuando há muito tempo. Hernando Téllez, César Uribe Piedrahita, Jorge Zalamea  etc. são alguns dos nomes de escritores cujas obras são verdadeiramente inovadoras no contexto da literatura colombiana, isto com respeito à prosa, porque na poesia León de Greiff, Eduardo Carranza, Aurelio Arturo, entre outros, haviam se destacado. As condições culturais existiam desde a década de 1920, mas, devido aos embates políticos e à ordem internacional, como a luta anticomunista e o surgimento do fascínio doméstico, haviam gerado, em toda América Latina, uma espécie de paralisia nos intelectuais. O que a literatura de ficção não podia fazer estava fazendo no ensaio. Resumindo, estou de acordo com as teses do “país frustrado”, mas me parece que isto deve ser extensivo a todo o terceiro mundo. O realismo socialista foi uma escola comum a toda América Latina e, sobretudo, deve ter-se dado conta que, naqueles tempos, a literatura comprometida era a que tinha mais prestígio. Inclusive, García Márquez afirma ter sido vítima da emergência da literatura comprometida, quando assinou que seu projeto combativo representado por Ninguém escreve ao coronel e A má hora: o veneno da madrugada. Uma década depois desse projeto, segundo a crítica, chegaria a sua plenitude com Cem anos de solidão. Pessoalmente, não concordo com o escritor quanto à interrupção de seu projeto estético, mas creio que, para argumentar sobre isso, precisaria de mais tempo.

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