Edição 221 | 28 Mai 2007

“Cem anos de solidão foi uma revelação”

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IHU Online

Para o professor e escritor Luís Augusto Fischer, a obra Cem anos de solidão, de García Márquez, “dá notícia de um mundo fenecido, um mundo soterrado pela modernização das relações de mercado”. Segundo ele, essa obra se destaca devido à força com que foi contada.

Luís Augusto Fischer é mestre e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é professor adjunto de Literatura Brasileira do Instituto de Letras da UFRGS, onde leciona desde 1984. Entre suas obras, destacamos: Para fazer diferença (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999); Contra o esquecimento (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001); Rua desconhecida (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2002); Literatura brasileira - modos de usar (São Paulo: Abril, 2003); Literatura gaúcha – história, formação e atualidade (Porto Alegre: Leitura XXI, 2004); 50 anos de Feira do Livro – vida cultural em Porto Alegre, 1954-2004 (Porto Alegre: L&PM, 2004); De ponta com o vento norte (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2004); e Quatro negros (Porto Alegre: L&PM, 2005), que lhe rendeu o Prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) em 2005.

A entrevista que segue foi concedida por e-mail à IHU On-Line.

IHU On-Line – O sucesso da obra Cem anos de Solidão, de García Márquez se deve a quais elementos? É possível, por exemplo, perceber singularidades em seu estilo, no tom com que relata suas histórias? Quais seriam elas?
Luís Augusto Fischer -
O sucesso de Cem anos tem a ver com muita coisa: é um livro sedutor pelo enredo, com várias gerações se sucedendo diante do leitor, num desses romances com sopro épico que sempre funcionam bem, como, por exemplo, em O tempo e o vento, para usar um caso local de grande interesse. Mas é também um livro que dá notícia de um mundo fenecido, um mundo soterrado pela modernização das relações de mercado, mundo que no romance aparece na forma de uma consciência irracional, ou pré-racional, presente em grande parte dos personagens. E tem também o estilo do texto, mas isso eu colocaria como um elemento até secundário, para o caso concreto: García Márquez escreve bem, belamente, mas no caso de Cem anos a força vem mesmo é da história contada.
 
IHU On-Line – De que maneira podemos entender a tirania do Coronel Aureliano em Cem anos de solidão? Ele pode ser visto como o retrato do coronelismo existente ainda em cidades ou povoados da América Latina?
Luís Augusto Fischer -
Sim, é um dos grandes retratos do coronel arbitrário que existe por toda parte de nosso continente, o coronel que é um tirano, mas é amável e eventualmente terno, sempre, porém, despótico e atendendo apenas a seus caprichos pessoais. É um retrato que figura ao lado de outros, como se lê na obra do mexicano Juan Rulfo, do brasileiro Guimarães Rosa  etc., cada qual com suas marcas e peculiaridades, mas todos compondo uma geração de grandes narradores empenhados em contar como funciona o mundo do que nós, no Brasil, conhecemos como "sertão", a terra ainda não alcançada pela lógica do Estado, da Lei e da Mercadoria.

IHU On-Line – De alguma maneira, Cem anos de solidão contribuiu para modificar a visão que o restante do mundo tinha da América Latina?
Luís Augusto Fischer -
Seguramente, porque fez parte daquele "boom" dos anos 1960 e 1970, quando grandes escritores latino-americanos, particularmente hispano-americanos, entraram em circulação na Europa e nos Estados Unidos, algumas vezes em tradução para o francês e o inglês. Foi uma revelação para os europeus cansados de narrativas por assim dizer pálidas, autocentradas, ligadas a um mundo solipsista, de indivíduos sem rumo vivendo em cidades opressivas etc. Esses escritores sopraram nas brasas do romance e deram um novo fôlego para a narrativa ocidental, enquanto narravam as mazelas do continente americano, contando as histórias locais que estavam soterradas, que nunca tinham encontrado voz literária, porque se tratava de imaginário muito ligado ao mundo indígena, de gente miserável que não se tinha integrado à cidade moderna.
 
IHU On-Line – Parece haver características que aproximam uma obra como Cem anos de solidão, do escritor colombiano, de sagas como O tempo e o vento, de Erico Veríssimo. Há, em primeiro plano, uma multiplicidade de personagens, cujas histórias são contadas por várias gerações. Ainda sob esse ponto de vista, pode-se fazer uma aproximação entre o fato de García Márquez compor a cidade de Cem anos de solidão, Macondo (que já havia aparecido, por exemplo, na obra O enterro do diabo), com características da cidade onde nasceu, Aracataca, assim como em O tempo e o vento pode-se estabelecer uma ligação entre Santa Fé e Cruz Alta?
Luís Augusto Fischer -
Sim, as coisas têm bastante relação. Um escritor e roteirista brasileiro chamado Doc Comparato  relata que García Márquez conheceu O tempo e o vento e admirou muito o modo como Erico Verissimo  tinha equacionado o relato das várias gerações e tempos; o colombiano teria mesmo afirmado que depois da leitura do clássico de Erico é que ele teria encontrado o caminho para escrever Cem anos. Quanto ao aspecto biográfico, seguramente há algo de depoimento verdadeiro nas cidades imaginadas pelos dois grandes narradores.
 
IHU On-Line – Fazendo referência a uma tradição do romance brasileiro, podemos aproximar a obra de García Márquez, em alguns pontos (como o foco no universo dos coronéis, a preferência por contar histórias de famílias e sua transformação ao longo de anos), daquela feita por Jorge Amado?
Luís Augusto Fischer -
Sim, tem todo cabimento a relação, mas eu pensaria mais em escritores menos efusivos e mais profundos, por exemplo, José Lins do Rego e suas melancólicas narrativas sobre o fim do mundo dos engenhos, ou Guimarães Rosa e as profundezas do sertão bravio, ainda que este, claro, seja muito superior a García Márquez em realização literária (o que acaba sendo um empecilho para sua leitura, tanto em português quanto em alguma língua para a qual tenha sido traduzido; quer dizer: sendo mais artístico, Guimarães Rosa é mais exigente para sua compreensão e sua fruição do que García Márquez).
 
IHU On-Line – De que modo a literatura de García Márquez pode ter causado influência no cinema ou nas teledramaturgias? Algumas novelas da Globo, por exemplo, tentaram lidar com elementos do fantástico em suas tramas. No cinema, um filme como Chocolate, por sua vez, tem uma influência visível das lendas e do universo de fantasia de Cem anos de solidão, além de concentrar sua trama numa pequena cidade fictícia, em que os personagens interagem... Também pode haver uma influência do cinema em sua obra?
Luís Augusto Fischer -
Essa suposta influência é mais confluência do que outra coisa. Claro que a narrativa trivial da televisão aproveita conquistas da grande arte narrativa, e mesmo escritores de bom nível, como Isabel Allende (ou, em escala nacional, Letícia Wierzchowski ), podem ser vistas como descendentes de certas conquistas de García Márquez, como a coisa do sobrenatural agindo etc. Ocorre que muitos outros escritores dos anos 1950 e 60 operaram nessa mesma faixa, a de colocar em cena mentalidades pré-racionais, ou pára-racionais, ou irracionais (que um ótimo crítico como José Hildebrando Dacanal  chama de "consciência mítico-sacral", termo muito bom que aparece em seu livro "Nova narrativa épica no Brasil") . Foi o caso de García Márquez, do peruano Manoel Scorza, do citado Juan Rulfo, e dos brasileiros Guimarães Rosa, Mário Palmério, José Cândido de Carvalho e do dramaturgo (e teledramaturgo também) Dias Gomes, para não ir muito longe. Mesmo o Erico Verissimo do final de carreira andou arriscando algo na área, com seu Incidente em Antares, em que mortos ressuscitam e voltam à cidade. Quer dizer: essa idéia estava no ar da América Latina naquela altura, e alguns artistas a captaram no ar e deram a ela uma forma literária competente.

IHU On-Line – Como você apresentaria o livro Cem anos de solidão aos jovens leitores do século XXI?
Luís Augusto Fischer -
Como uma saga familiar, mas também profundamente histórica, que dá notícia interna do funcionamento da opressão e do funcionamento do choque radical entre um mundo que funciona pela lógica pré-mercantil e outro em que essa regra já está no comando, tudo isso contado com maestria, misto de lirismo, caráter épico e humor.

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