Edição 220 | 21 Mai 2007

Um véu de integrismo e fundamentalismo ameaça o mundo pluralista de hoje

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IHU Online

Recebemos e publicamos o artigo a seguir, de Luiz Alberto Gómez de Souza, sociólogo. Eis o texto, que foi publicado nas notícias diárias no site do IHU no dia 18 de maio de 2007. Os subtítulos são nossos.

Souza é graduado em Direito pela PUCRS e pós-graduado em Ciência Política pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso), Santiago do Chile e doutor em Sociologia pela Universidade de Paris Sorbonne Nouvelle. Atualmente, ele é diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Candido Mendes. No sítio da IHU On-Line podem ser conferidos artigos do sociólogo. No dia 11-05-2007, publicamos A chegada do Papa: palavras simplificadas e afirmações editadas, no dia 15-02-2007, o artigo “O que fazer com eles?”. A violência que gera mais violências. Luiz Alberto Gómez de Souza também concedeu uma entrevista à IHU On-Line, publicada no dia 19-08-2006, intitulada Com Lula, onde ele estiver. O material está disponível em www.unisinos.br/ihu

No primeiro dia da visita do papa, escrevi um texto criticando a unilateralidade da mídia, que até melhorou nos dias subseqüentes. Mas, ao final da visita, o questionamento virou-se para minha própria Igreja. A estadia do papa provocou emoções no mundo católico, como os aiatolás mobilizam multidões muçulmanas. Mas e os não-católicos? Afinal, neste país, católicos realmente praticantes são uma minoria. Somos uma sociedade plural, com muitos católicos nominais, um número crescente de evangélicos, um número maior das religiões afro do que as estatísticas indicam, uma forte corrente espírita, outras religiões ameríndias ou asiáticas, os sem religião etc. Aliás, o papa disse que não se podia convencer por imposição, mas pelo testemunho.

Como católico, fiquei vendo na televisão uma manifestação asfixiante de poder eclesiástico, vestes aparatosas, declarações contundentes. Tudo isso convencendo e, talvez, fortalecendo emocionalmente os já convencidos. Confesso que me senti bastante incomodado. Meu primeiro texto ainda era esperançoso, mas depois de um dia respondendo por telefone a entrevistas de jornais, revistas e tvs, e vendo a mídia ocupada por um papa categórico, foi subindo um cansaço pelas afirmações petrificadas e as certezas sem reticências, mais perto dos guardiães do templo  do que de um Jesus que não ditava orientações, porém conversava com os menos respeitados, fazia perguntas e contava historinhas – parábolas. O papa começou tímido, mas o sorriso foi se abrindo aos poucos, influenciado pelo clima dos católicos arrebatados, especialmente no encontro com ex-drogados, um dos poucos momentos de humanidade. Porém, no sentido contrário, os pronunciamentos, por exemplo, aos bispos brasileiros, foram se fazendo mais inflexíveis. Minha mulher e eu fomos respirar e ver A alma imoral, com texto do rabino Milton Bonder e interpretação fantástica de Clarice Niskier. Ali as certezas pétreas se dissolviam em vida e ternura, em dúvidas revigorantes, no rompimento de uma razão fechada nela mesma. Como seria bom se a Fé convivesse com esse clima de liberdade e de ousadia!

Por outra parte, do outro lado do mundo, mais de um milhão de turcos saíram à rua para defender um estado secular, livre de um governo islâmico fundamentalista. Ali os cristãos torcem para evitar o perigo. O patriarca cristão de Jerusalém, o segundo em dignidade depois do bispo de Roma, acuado no seu bairro pobre do Fanar, teria ainda menos liberdade num estado islâmico.

Criação de consensos?

E aqui, os não católicos não terão razão de temer as investidas velhas de pedidos de acordos ou de caducas concordatas? O Papa falou de um “sadio” laicismo. Quais suas fronteiras? Por que pespegar um adjetivo vago e ambíguo? Por que não dizer que uma sociedade laica e plural é mais favorável à exemplaridade do Evangelho? O papa indicou a necessidade de criar consensos em torno a uma sociedade menos desigual e com estruturas justas. Mas consensos com quem? Consenso conosco mesmos é um solipsismo que não se agüenta em pé. Para criar consensos há que estar aberto e ouvir os outros. Não se trata de negar nossa identidade, que deve ser afirmada sem medos, mas esta, enrijecida, vira fundamentalismo, ou na nossa linguagem, integrismo.

O Papa convoca os chamados leigos – porque não dizer os cristãos em geral? – a construir uma nova sociedade. Mas, para isso, são necessárias as mediações – movimentos sociais e culturais, opções de idéias, partidos. Tirando-lhes importância, o que nos sobra? Simples argumentos éticos, uma cruzada de consciências ou reviver uma cristandade? Estou de acordo com a crítica a ideologias – como expressão de falsa consciência –, sejam as velhas ideologias de um marxismo que encolheu em idéias abstratas e experiências sufocantes, seja de um capitalismo que destila o que pensa e faz as elites acuadas e iníquas. Mas, então, qual seria a saída? De nenhuma maneira uma ideologia social-cristã, que historicamente também fracassou, resvalando para a direita liberal, ou para uma esquerda cristã de que sempre desconfiei. No Chile, nos anos 1960, eu dizia que porque tinha Fé não podia ser ideologicamente democrata-cristão - ou socialista cristão -, encolhendo a Fé em ideologia. Isso aprendera com Emmanuel Mounier, em seu livro A cristandade morta. Porém, o cristão, iluminado pela Fé, tem de procurar com outros, respostas concretas. Uma nova sociedade exige colar-se na realidade, a partir de análises, para chegar a programas, idéias e práticas novas. Mas se dissermos que o real só nós o possuímos, em Deus e em seu filho Jesus, de saída fechamos o diálogo, já que temos a solução no bolso. Para os possíveis interlocutores, não deixaria de ser prova de arrogância e de falta de abertura à diferença. O discurso do papa, na inauguração da conferência dos bispos, muito bem encadeado e com aparentes perguntas, na verdade foi um desdobramento de respostas e de certezas asfixiantes para um diálogo e para a busca de consensos.

“No futuro, teremos pudor de algumas declarações que ouvimos agora?”

A começar por afirmações terríveis sobre a história do encontro das culturas na América, ocultando o conflito e a imposição do cristianismo pela espada e pela cruz, como uma certa leitura das cruzadas, vistas do lado de cá, apenas como defesa solícita dos lugares sagrados. Um papa que virou santo, Pio V, perto daqueles tempos da conquista da América, chegou a dizer, justificando a inquisição, que matar hereges podia ser um ato de defesa da fé. Hoje, temos vergonha de uma afirmação destas. Em alguns anos teremos pudor de algumas declarações que ouvimos agora?
A imprensa e alguns comentaristas disseram tolices, como que a crítica ao marxismo era interpretada como uma crítica à teologia da libertação. Essa reflexão latino-americana, que se abre a muitas dimensões e com novos participantes, se às vezes usou parcialmente mediações da teoria marxista, há muito as relativizou, descobrindo sua unilateralidade e limitações. Entretanto, essa teologia tem no seu cerne a opção preferencial pelos pobres, que, segundo o mesmo papa, é central na vida de Fé. Eu diria que aí ele confirmou, querendo ou não, a caminhada de uma Igreja da libertação, com suas pastorais sociais e suas comunidades eclesiais de base. Mas, ao mesmo tempo, não pronunciou nem uma só palavra sobre elas, apenas fazendo a menção indireta de novos movimentos, que vão em outras direções.

A multiplicação da Eucaristia

Há uma contradição que dificilmente se mantém em pé. Ao afirmar a centralidade da Eucaristia, fica claro que a Igreja precisa de muitos espaços de celebração eucarística. Mas isso será impossível mantendo apenas a figura cada vez mais minoritária e marginal, no mundo de hoje, do sacerdote obrigatoriamente celibatário, que o papa magnifica a seguir. Faz logo adiante um apelo voluntarista a vocações para entrar nessa mesma fôrma, historicamente em crise, ou produzindo um novo clero conservador, inseguro e meio deslocado do mundo. Multiplicar a Eucaristia é multiplicar seus ministros e ministras, para isso ordenando cristãos e cristãs das próprias comunidades. O celibato obrigatório está mais ligado à vida consagrada do que à categoria dos presbíteros, que presidem a celebração eucarística. Mais e mais bispos e cristãos dizem isso em voz baixa, num sussurro que vai aumentando, mas que é ainda abafado por censuras e auto-censuras. Novos pontificados ou novos concílios terão que tratar corajosamente deste e de outros pontos ainda congelados (celibato obrigatório, a mulher na Igreja, reprodução e sexualidade, diálogo interreligioso etc.)

Para isso, há que enfrentar a esquizofrenia entre uma doutrina da sexualidade e da reprodução, em discordância crescente com a prática real dos católicos, no que Pietro Prino chama um “scisma sommerso”. O cardeal Newman , que esse papa admira, falava do desenvolvimento da doutrina. Em tantos campos, até agora bloqueados para uma discussão serena e corajosa, não se trata de negar dogmas, que são muito menos do que alguns crêem, mas de rever regulamentações historicamente datadas e passíveis de mudanças. Com isso, não quero dizer que a prática determina a doutrina, o que seria uma posição preguiçosa ou oportunista, mas ela a questiona com novas perguntas que exigem novas respostas. Repetir o de sempre é encerrar-se num mundo que está morrendo.

Fica também no ar um clima integrista, uma adesão quase idolátrica à figura do bispo de Roma, que só pode ferir nossos irmãos cristãos não-católicos e fazer sorrir quem vêm de outras tradições religiosas ou quem não as tem.

Jesus: exemplo do samaritano heterodoxo

Jesus, um rabi que várias vezes se escondeu quando o queriam mitificar ou coroar, dava como exemplo de Caridade não o sacerdote apressado que corria ao templo para cumprir seus deveres de profissional da religião, mas o samaritano heterodoxo, que não ia a Jerusalém, mas ao monte Garizim . Também se detinha para falar, à beira do poço, com outra samaritana, que tivera muitos homens em sua vida, e que poderia ser chamada por muitos de hedonista ou dissoluta. Os discípulos se escandalizaram. Os seguidores de hoje se esquecem disso.

Trago aqui o desabafo melancólico e triste de um católico que faz um balanço de tantos dias de triunfalismo, fechamento ao diálogo e alinhamento com fundamentalismos que apenas sabemos ver nos outros. Assim, não se visibiliza uma Boa Nova, mas se repetem prescrições rígidas saídas de manuais de uma catequese voltada para dentro. E, depois, os católicos se queixam da diminuição dos fiéis – ou ficamos em manifestações que revelam um emocionalismo aeróbico, que tem muito pouco a ver com a Fé em Jesus Cristo, mesmo se Marcelo Rossi  foi posto de lado por uns dias.

Uma reflexão bem armada de um teólogo europeu

Não tivemos atitudes duras como as de João Paulo II na declaração de abertura da conferência em Puebla que, aliás, os bispos não seguiram nas discussões subseqüentes. Mas, diante de um discurso bem articulado como o de Bento XVI, é mais difícil, em Aparecida, uma posição crítica dos bispos, pois envolve por sua lógica e se torna mais complexo descobrir ali os pontos frágeis e contraditórios.
Teria sido muito bom ter ouvido alguém aberto a escutar, trazendo misericórdia e compaixão, e não uma reflexão bem armada de um teólogo europeu, com seu discurso tradicional, aberto ao diálogo com a academia ou com Habermas, mas não com as comunidades latino-americanas, com seus pobres, índios, negros, cada vez mais protagonistas na história social e política. Não senti um papa de todos, pronto realmente – não teoricamente – a criar consensos, ao desafio de novas culturas e de novas sensibilidades, ele que poderia parecer atento às cultura de hoje. Não que tivesse que aceitar passivamente o que o mundo diz, mas uma visão pessimista desse mundo o vê unilateralmente marcado pelo individualismo ou pelo hedonismo. Há que estar aberto ao pluralismo das diferenças, e não ter medo do que há de prazeroso na busca de ser feliz – tão longe dos complexos culposos de uma espiritualidade ainda marcada pelo medo, por um jansenismo que paira no ar, e um agostinismo mal digerido.

Um testemunho coletivo de humildade e simplicidade para a Igreja

A Igreja precisa hoje não só de profetas, de místicos, de mártires e de santos, e penso em Hélder Câmara  ou Romero , mas de um testemunho coletivo de humildade e de simplicidade, para saber conviver com a alteridade e aí apresentar a Boa Nova, na construção plural, com os outros, de um mundo sem injustiças e sem desigualdades escandalosas. O que dirá a conferência de Aparecida? Seguirá mecanicamente e sem um discernimento adulto os passos indicados por Bento XVI ou saberá também ouvir o consensus fidelium de suas igrejas locais, como mostrou Newman em outra fase crítica da Igreja, no século IV? Assim, poderá abrir-se à construção, na linha de João XXIII, de um consenso com outros homens e mulheres de boa-vontade, que realmente responda às necessidades e aos anseios de liberdade, de qualidade de vida e de felicidade, num mundo ao mesmo tempo rodeado de fundamentalismos, violências, fanatismos e ameaças ao próprio planeta.

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